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Frame de Batman Cavaleiro Das Trevas (2008), de Christopher Nolan (Foto: Reprodução)
Postado em 07/04/2020 - 11:10
Coronavida 04
A naturalização da “coronavigilância” é um dos efeitos perversos da Covid-19, implica novos sistemas de controle e hierarquias sociais
Giselle Beiguelman

Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008) mostra uma cena inimaginável à época em que foi lançado. Um painel de controle monitorava Gotham City inteira a partir dos sinais de celulares de seus habitantes. Os aparelhos funcionavam como microsonares e a emissão de seus sinais permitia inferir uma quantidade tão monstruosa de dados, que o sistema de controle devolvia o resultado do rastreamento na forma de imagens 3D da paisagem e do seus habitantes.

A tecnologia “testada” no Cavaleiro das Trevas não está ainda disponível no nosso cotidiano. Contudo, os avanços das formas de controle via dados provenientes das redes, especialmente pelo uso do celular, indicam que entramos de cabeça na era da Sociedade de Controle sobre a qual escreveu Gilles Deleuze nos anos 1990. 

Sociedade de Controle
Nesse ensaio, Deleuze discute a emergência de uma forma de vigilância distribuída, que relativiza o modelo de controle panóptico, conceituado por Michel Foucault. A esse sistema, que vai encontrar seu símbolo mais bem acabado no Big Brother orwelliano, superpõem-se processos de rastreamento que operam a partir de um mundo invisível de códigos, de senhas, de fluxos de dados migrantes entre bases computadorizadas de algumas poucas corporações de tecnologia. 

São esses dados, combinados às estatísticas dos sistemas públicos de saúde, que gerenciam os movimentos da pandemia. Eles alimentam desde as plataformas de monitoramento do Estado, como a do governo de São Paulo, a aplicativos como o Private Kit Save Paths, desenvolvido no MIT Lab, e o israelense HaMagen, entre vários outros

Mas a esfera da vigilância que estamos vivendo hoje, no âmago da coronavida, não se resume somente à esfera da invisibilidade do controle dos minibrothers que habitam em nossos bolsos e bolsas. Ela é uma vigilância molecular, que se introjeta no corpo sem tocá-lo, como os termômetros com sensores infravermelhos que se tornaram icônicos da pandemia. Mas é também macro-ocular, expandindo-se em direção ao voyeurismo compulsório a que somos submetidos na vida social e no trabalho remoto mediado por telas.

Corpos vulneráveis
Tudo isso ocorre, no entanto, em um momento paradoxal do processo de globalização, que se consolidou como um sinônimo da cultura da mobilidade. A socióloga Saskia Sassen mostrou, em mais de uma oportunidade, como a globalização engendrou uma geografia pautada pela dinâmica de dispersão (das atividades econômicas) e de centralização territorial do seu gerenciamento. Isso conflui para um desenho do espaço em que os centros (ou nós) de poder articulam-se diretamente a sua capacidade de dominar o fluxo, de modo que podíamos dizer que na contemporaneidade o excluído é o imóvel.

Digo podíamos porque o coronavírus inverteu bruscamente essa equação. Na coronavida, quem pode parar, ficar em casa, o imóvel, é o socialmente privilegiado. São esses os corpos que podem e são rastreáveis, computáveis, vigiáveis e curáveis… 

No atual contexto “laboratorial” que a coronavida impõe, no qual a cumplicidade com o monitoramento é também uma prerrogativa de sobrevivência, o não rastreado é aquele para o qual o Estado já havia voltado às costas. Na espiral da “coronavigilância”, o sujeito móvel é aquele invisível visível que nossa violência social teima em não enxergar.