Já é possível dividir a vida entre a.C e d.C? Antes do coronavírus e depois do coronavírus? Ninguém sabe quanto tempo viveremos no “regime de exceção” da pandemia, mas o fato é que o “corona” é pra lá de contemporâneo, transformando em cotidiano o panorama mais sombrio do futuro da cidade.
As medidas de precaução contra sua propagação enunciam uma cultura urbana do isolamento, da ojeriza ao contato físico, da consagração do trabalho remoto e da condenação do idoso a elemento disfuncional da atualidade.
https://www.instagram.com/p/B9w3Ii7h46q/?utm_source=ig_web_copy_link
O espaço público, tão vilipendiado pelos sistemas de vigilância, é sua primeira vítima fatal. Da categoria de lugar “perigoso”, das multidões amotinadas e do encontro com o inesperado, passa à de contagioso. A globalização, e todo o espectro de mobilidade que implicava, aparece como algoz de uma humanidade fragilizada pelos fluxos do capital. É preciso parar, ficar em casa, fechar fronteiras e abrir muitas torneiras…
A promessa da mobilidade infinita, da supressão das fronteiras, dos territórios porosos e da força dos nômades na requalificação social é brutalmente suprimida pela contenção, pelo emparedamento da quarentena, do isolamento, do nacionalismo.
Os mais otimistas identificam nesse cenário sinais positivos para um slow down geral, que nos faria repensar o modo de vida 24/7 do capitalismo tardio e os fins do sono e da Sociedade do Cansaço. É um chamado para acalmar-se, usar o que a tecnologia das redes tem de melhor, dizem, e fazer tudo o que é possível a distância: dar aulas, assisti-las, fazer compras, gerir galerias de arte, administrar finanças (pessoais e alheias), conversar… Que lindo, não?

Mas e as pessoas que não podem fazer o seu trabalho remotamente, como camelôs, faxineiras, trabalhadores da construção civil, montadores de exposição, frilas mil e o neo “lumpesinato digital” que abastece os Ifoods e Rappis da vida? E como assim se for inevitável sair, deslocar-se, “evitem usar ônibus e metrôs”? Oi? Em que planeta as pessoas que prescrevem essas regras vivem? Naquele que ainda é redondo e habito, isso é para poucos.
Ah, não é tão complicado assim. Basta abrir as janelas, deixar o ar circular… E quem vive em pequenos cômodos, com suas famílias e, muitas vezes, dividindo espaço com várias outras pessoas e não tem janela? Faz o quê? Liga o ar-condicionado?! (Não me espantaria com mais uma resposta a la “não tem pão, comam bolo” das autoridades e especialistas).
Não discuto a necessidade das medidas estabelecidas. Elas são a única alternativa para conter a pandemia. E estou mais que ciente que o Coronavírus não é exclusividade dos pobres. Até o Tom Hanks foi contaminado, argumenta-se. Contudo, é óbvio que são os socialmente mais vulneráveis os que sofrerão mais.
E a tranquilidade assertiva com que se fala que serão criados milhares de leitos, de um dia para outro, no sistema público de saúde, depois de décadas de massacre a esses serviços? E os jornais repensando a necessidade da presença do Estado? Ué… Mas não era esse o lugar de alojamento dos parasitas que comiam o bem-estar coletivo e a razão de toda nossa derrocada econômica? Agora é diferente. Temos que criar infraestrutura para atender os “infectados”.
E não é estranho que com tanta circulação midiática sobre o tema ainda não exista um adjetivo específico para os “coronados”? Termo com sentidos pejorativos, infecto é aquele que tem infecção, que exala mau cheiro, que é pestilento e, no sentido figurado, o que contraria a moral, é repugnante e repulsivo.
Palavras não são meras ferramentas de comunicação e expressão. São discursos históricos e sociais, já aprendemos com Michel Foucault, autor do referencial As Palavras e as Coisas. E por falar nesse filósofo francês, como não citar aqui a visão que teve o Professor Andre Lemos, contemplando as imagens dos navios presos nos portos do mundo todo e lembrando que Foucault dizia que “nas civilizações sem barcos, os sonhos se esgotam, a espionagem ali substitui a aventura e a polícia, os corsários”(Ditos e Escritos III, p. 422).
É cedo para dizer como será o “depois do coronavírus” e suas sequelas na cultura urbana, mas não consigo deixar de pensar nos anos 1980, quando entrei na FFLCH-USP para cursar História. Todo mundo feliz, na contagem regressiva para o fim da Ditadura, lendo e praticando a Revolução Sexual de Wilheim Reich e, de repente, o vírus HIV caiu como uma bomba na nossa cabeça, corpo e alma. Nunca mais fomos os mesmos. Parceiros fixos, preservativos, e toda um novo conjunto de normas de conduta sexual e social foram instituídas.
Não comparo uma coisa com a outra, mas o que vai sobrar do coronavírus e da coronavida a que estaremos fadados nos próximos meses?
https://www.instagram.com/p/B9o7GADBHDz/?utm_source=ig_web_copy_link
Coronavida: o que vai mudar no cotidiano d.C.
Memes
A melhor parte dessa odisseia estranha de (quem pode) ficar em casa, em quarentena, sem cinema, sem teatro, sem festa e sem viagem. Vida longa a esse jornalismo de comentário à queima-roupa de todos os acontecimentos cotidianos, um verdadeiro noticiário paralelo, baseado em imagens. Se antigamente valia o slogan: ‘Aconteceu, virou manchete’, hoje o correto seria dizer: ‘Aconteceu, virou meme’. Tendem a aumentar. Que sigam.
Idosos
Evite contato com os mais velhos, recomenda-se veemente. Não bastando ser tachado de inativo, improdutivo, incapaz de entender o mundo dos aplicativos, o idoso deve agora também ficar só. Faz sentido em um regime que quer negar a passagem do tempo, abomina as rugas e tudo o mais que não rime com juventude e produtividade. Que outras formas de ostracismo e punição aos idosos serão deflagradas?
Pautas ecológicas
A consciência ecológica e ambientalista que demoramos tanto para converter em políticas públicas e hábitos vai para o lixo. Vamos gastar muuuuita água, não só com higiene pessoal, o que é importantíssimo, mas também lavando roupa como nunca… Vamos ainda consumir muuuuuito álcool gel em tubinhos não biodegradáveis, aumentar a demanda de toalhas descartáveis de papel e voltar a usar copinhos plásticos impunemente. Quanto isso nos custará em termos comportamentais? Quantos anos serão necessários para reeducar para o futuro do planeta?
Bodes expiatórios
A desrazão humana não tem limites e momentos de crise se bifurcam em vários preconceitos. Enquanto o presidente dos EUA Donald Trump identifica o coronavírus como “vírus estrangeiro”, um psicanalista e advogado brasileiro lança a tese sobre a conspiração judaica e sua interminável vingança por terem sido escravos no Egito. “Provas” de sua tese são a Peste Negra Medieval e o H1N1, um golpe de Rockfeller, segundo o autor. Xenofobia e antissemitismo entre telas crescendo e prometendo mais manifestações racistas e nacionalistas.
Vigilância
Confinados na quarentena on-line apocalíptica, vamos dar vazão não apenas a uma torrencial quantidade de fake news e absurdas ideias, mas vamos ceder (quem pode, novamente) ao Estado-plataforma que controla e rastreia todas as nuances do cotidiano, transferindo para o Google e o Facebook, via recursos para trabalhar remotamente do G-Suite e do WhatsApp, uma incontável quantidade de dados sobre nossos hábitos, círculos profissionais, sociais (se for possível mantê-los sem nenhum contato físico por meses).
Capitalismo fofinho
Desde meados dos anos 1990, vêm sendo formuladas definições de diferentes matizes ideológicos sobre o capitalismo. Capitalismo informacional, capitalismo cognitivo, capitalismo criativo são algumas delas. A essas definições acrescento mais uma: capitalismo fofinho, um regime que celebra, por meio de ícones gordinhos e arredondados, um mundo cor de-rosa e azul-celeste, que se expressa a partir de onomatopeias, exclamações pueris e emojis, propondo a visão de um mundo em que nada machuca e todos são amigos. Nessa linha filantrópica, o Google passa a aceitar até 250 pessoas usando sua ferramenta de reuniões remotas (o Google Meet), devido ao surto de coronavírus. Deve se tornar “o” point acadêmico dos próximos meses. Na mesma sintonia, o PornHub liberou seu acesso premium a todos os residentes na Itália. Mais “gifts” a caminho. Aposto.
