Ressuscitamos a Internet dos anos 1990 nesta nossa coronavida! A febre das “visitas virtuais”, a compulsão pelos “videochats” (travestidas agora de reuniões online no Zoom e afins) e a glória das webcams são alguns dos sintomas. A principal diferença é que nos anos 1990 nada funcionava. Por isso, não sabíamos como tudo isso era chatíssimo e venerávamos essas benesses do Universo Paralelo.
Universo Paralelo resgatei das catacumbas da Internet. Mas, na onda de retrocessos políticos e comportamentais que estamos vivendo mundo afora (e adentro, nem se fale), aguardo o momento em que voltaremos a falar “internautas”, “telepresença” e “ciberespaço”. E aguardo, muito mais, um pause no tsunami de vídeos dos “quarenteners” animados.
Estou como a @nazereamarga: Com medo de ir na cozinha e encontrar uma live.
Mas o ponto “alto” de tudo são as webcams tortas que, dos telejornais às reuniões (todo mundo resolveu fazer uma reunião agora?), dominam o espectro midiático de ponta a ponta. E que outro espectro restou a quem (pode) estar em casa, não é mesmo?
Comentei semana passada nesta série sobre as novas estéticas do confinamento, focando o levante das janelas, que vem ocorrendo via as projeções nas empenas de todo Brasil. Pois bem. A outra estética do confinamento é a das webcams e da segunda câmera do celular.
Webcams tortas
À parte da intimidade forçada que a telequarentena impõe, todos vendo a casa de todos, numa cultura naturalizada da vigilância, sobre a qual ainda vou escrever, as estéticas da câmera do computador e do celular são dignas de nota. Entrevistas dos grandes serviços de mídia são um ótimo caso para pensar o fenômeno. Por motivos óbvios _a quarentena_, transformaram esse expediente em padrão e são um verdadeiro repositório das linguagens audiovisuais da câmera mal posicionada. No seu léxico, identifiquei alguns procedimentos que anoto aqui:
Neo-pós-expressionimo alemão: um estilo sui generis, mas muito comum nos tempos de coronavida. Com um simples notebook e sua tela inclinada gera distorções assombrosas no espaço. As paredes anunciam a iminência de um desabamento, convergindo assustadoramente para o centro da cena. Sustentam uma arquitetura em formato trapézio, de modo que o teto aparece como se estivesse à beira de um estrangulamento e a base (o solo) se mantem mais ou menos no lugar.
Filhos bastardos de Orson Welles
Muito popular entre os mais criativos, demanda um banquinho onde se assenta o computador ou o celular. De frente para a câmera e de corpo inteiro, a figura aparece tipo um gigantesco triângulo humano, gravado de baixo para cima dominando o mundo como se fosse um verdadeiro Cidadão Kane.
Sem pescoço
Essa é uma linguagem muito complexa. Apesar de extremamente popular, não consegui identificar como é possível criar, ao vivo, o incrível efeito de suprimir o pescoço com o uso de uma reles webcam. O fato é que com o notebook aberto em um ângulo “x” e com o rosto bem próximo câmera, o pescoço desaparece.
Don’t stop the memes
Apesar da enxurrada de mal gosto, a coranavida poderia ser pior. Poderia não ter memes, a dádiva da Internet no tempo das redes sociais. E como aprendi com um “coronameme” outro dia: imagine se você tivesse que passar por isso há 15 anos atrás, trancado em casa com um Nokia 3310, um pacote de 20 SMSs, 10 horas de ligação e só com o jogo da minhoquinha?
Giselle Beiguelman é artista e professora da FAUUSP. Autora de Memória da Amnésia: políticas do esquecimento (Edições Sesc, 2019), é colunista da Revista Zum e da Rádio USP. Foi editora-chefe da seLecT de 2011 a 2014 e é editora convidada do seu próximo número “Cidades”.