Se o termo “crítica institucional” foi cunhado pelo historiador da arte Benjamin Buchloch, em artigo para a revista October, em 1989, para definir um tipo de trabalho interessado em expor as engrenagens políticas e ideológicas das instituições culturais, propomos aqui, como um passo seguinte, a “crítica infraestrutural’”. Ela se aplica aos processos de perfuração e erosão dos elos entre arte, mercado, instituições, políticas públicas e iniciativa privada. O conceito surge na celeste #1: arte e informação, durante os trabalhos de edição da redatora-chefe Juliana Monachesi sobre o texto Infraestrutura: Crítica e Forma, de Mateus Nunes sobre o trabalho de Daniel de Paula. “Em suas obras, o artista atenta para o modo como somos subjugados por decisões tomadas por representantes políticos e poderosos agentes econômicos, sobre o que temos, como indivíduos, mínimo ou nenhum poder de contestação efetiva”, escreve Nunes sobre as tramas de negociações que estruturam o trabalho do artista.
As dependências táticas e estratégicas que os artistas e os espaços autônomos de arte têm de assumir para continuar a existir foram abordadas por Benjamin Serroussi, em texto publicado na seLecT #39: política cultural (2018). O autor aponta que, no contexto de vazio institucional brasileiro, em que “raras são as políticas públicas que conseguem atravessar a gestão que as desenhou, que dão conta da dimensão pública da cultura na diversidade das suas manifestações”, a questão dos espaços independentes é menos deixar de depender e mais saber de quem e como depender. “É tecendo essas dependências táticas, criando alianças e estabelecendo associações que, apesar do poder público, surgem políticas culturais de guerrilha”, aponta. Isso se relaciona com o que escreveu Bernardo Mosqueira na seLecT #37: crítica (2018), acerca do segundo período da crítica institucional, a partir dos anos 1980/90, em que os artistas deixam de se posicionar em oposição direta às instituições e passam a se entender como parte delas e a fazer sua crítica a partir do contexto institucional.
Nesta celeste #2: crítica infraestrutural, a cobra morde o próprio rabo e voltamos a essas questões. Estamos nos perguntando aqui sobre que novos vocabulários podemos mobilizar para dar conta das novas estruturas que queremos? Com que outras formas de trabalhar podemos nos organizar? Que outras instituições podemos inventar?
A revista é resultado dos trabalhos da segunda edição da Residência Artístico-Editorial, que é possível graças ao patrocínio do Itaú e, portanto, faz parte dessa discussão sobre vínculos entre indivíduos e instituições. Com a participação de artistas, críticos e comunicadores convidados, a Residência Celeste é um caso exemplar de como reinventar uma redação de revista, transformando-a em laboratório de reflexão e experimentação sobre as relações entre arte, crítica e jornalismo cultural. A fim de continuar a existir. Trata-se, aqui, de criar associações com outros agentes atuantes, como fizemos na celeste #1 com comunicadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), e como fazemos na celeste #2 com a organização de comunicação Mídia Indígena e o convite ao crítico soteropolitano João Victor Guimarães (residente da primeira edição) a atuar como cocurador.
Participantes da segunda edição da residência, Priscila Tapajowara e Beka Munduruku, mulheres indígenas da Amazônia, experimentam uma nova linguagem – a fotonovela – para dar visibilidade à sabedoria dos povos indígenas e comunicar sobre suas lutas. As críticas residentes do coletivo Vozes Agudas – Bruna Fernanda, Sophia Faustino e Melissa Baltazar – ensaiam na edição os parâmetros conceituais que sustentam sua curadoria editorial sobre arte e ativismo feminista no Brasil, a ser instalada na área digital da residência; e a artista Laryssa Machada questiona, em dois trabalhos – uma fotoperformance e uma entrevista –, o sistema de pensamento extrativista colonial que sustentou a construção de coleções e museus no Brasil. Em entrevista com Sandra Benites e Xadalu Tupã Jekupé, ela conversa sobre a proposição de novas estruturas de pensamento nas artes e nas instituições, pensando a sustentabilidade dos trabalhadores das artes para além das regras do mercado.
Incorporam-se à discussão Mateus Nunes, que identifica a crítica infraestrutural nos modos como o trabalho de Wisrah C. V. da R. Celestino incorpora transações de transferência da propriedade privada; o artista Tiago Gualberto, que escreve sobre as brechas infraestruturais do circuito artístico; Felipe Molitor, que contribui com um texto crítico sobre a operação decolonial de reparação histórica acionada pelo artista Ilê Sartuzi no British Museum; e Yuri Sugai, em sua sagaz argumentação de por que a versão cinematográfica de Orlando, de Virginia Woolf, por Paul Preciado, não chega a terminar de derrubar a última pedra de sustentação da sociedade binária.
Portanto, em sequência ao exercício de autoimplosão das bases e linguagens do jornalismo de arte, que iniciamos na celeste #1, avançamos no problema, em uma edição em que nossa diretora de arte, Nina Lins, cuidadosamente desloca e desalinha as colunas de textos, para que, querido leitor, a sua experiência da crítica infraestrutural se faça completa.
Paula Alzugaray
Diretora de Redação