Seguindo um verso de Da Calma e do Silêncio, poema de Conceição Evaristo, o curador-geral da 36ª Bienal de São Paulo, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, propõe uma perspectiva sobre o que é ser humano: Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática.
A prática da humanidade, ainda que valha a todos, está longe de uma ideia universalizante. Pelo contrário, ela evoca fazeres materiais, particulares e coletivos que surgem de todas as direções, e se afasta da humanidade como categoria acima de todas as outras, ao redor da qual giraria o mundo. Isso é o que está aparente nos três “fragmentos” que estruturam o projeto curatorial de pesquisa desta edição e enfatizam a pluralidade cultural, a coexistência entre pessoas e mundos e as formas coletivas de se viver. O primeiro situa-se dentro do poema de Evaristo, explorando mundos submersos e naturais e as maneiras de acessá-los por meio da poesia. No segundo fragmento/eixo, a Bienal convida o público a se ver no reflexo do outro, propondo uma coexistência mais atenta às necessidades coletivas. O terceiro eixo traz espaços de encontros, evocando o estuário (onde o rio converge com o mar) como metáfora principal. Nele convergem as águas, mas também colonizador e colonizado; é onde diferentes espécies se reproduzem e convivem em simbiose. A metáfora baseia-se no manifesto Caranguejos com Cérebro do movimento manguebit, uma representação de um cérebro social coletivo.
A poucos meses da abertura no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, prevista para 6 de setembro de 2025, e em meio às Invocações – ciclos de conversas, palestras, oficinas e performances afluentes da edição, em quatro cidades diferentes: Marrakesh, Guadalupe, Zanzibar e Tóquio –, o curador, autor e biotecnologista Prof. Dr. Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, nascido em Camarões e residente em Berlim, conversa com a celeste diretamente de Tóquio, via e-mail.
celeste: Você utiliza a metáfora dos estuários como um dos principais guias da proposta curatorial da 36ª Bienal de São Paulo. O estuário é uma espécie de utopia e, nesse sentido, queríamos saber como a utopia, ou, melhor, uma pluralidade de utopias, seria invocada? E qual é o papel da arte em evocá-la ou mesmo torná-la realidade? Como a arte pode pensar a humanidade como estuário?
Bonaventure Soh Bejeng Ndikung: Agradeço pelo interesse e pelas perguntas tão atentas e provocativas. Embora eu compreenda a referência ao estuário como utopia, não sei se estou de acordo com a sua analogia. A etimologia da palavra “utopia” sugere a ideia de um não topos/lugar, embora tenha passado a significar um espaço ou contexto imaginado ou idealizado. Já o estuário é um espaço muito concreto. Sua concretude reside na negociação entre ambientes de água doce e salgada. Está também no esforço constante de adaptação dos animais e plantas que o habitam. Eu entendo que, do ponto de vista humano, especialmente em tempos de conflitos econômicos e guerras, a ideia de negociação, compromisso e cuidado pode soar como utopia, mas, para todos os outros seres que habitam esse espaço, é realidade. Não é um espaço fácil, mas nos lembra dos fluxos da vida e da necessidade de questionar, adaptar, negociar, conjugar, e mais.

Todo o projeto curatorial é um convite para que os humanos escutem o mundo ao seu redor, para entenderem o que e quem são. Os humanos tendem a estar voltados para si próprios e, quando levantam a cabeça, parece que só querem extrair dos outros. Mas os humanos são apenas uma pequena parte do mundo e precisam estar em simbiose com os outros seres que compõem o nosso planeta, em vez de viverem de forma parasitária, como é o modus operandi atual. Reconhecer a multiplicidade dos seres à nossa volta e a pluralidade de epistemologias desses seres, para mim, não é antropocêntrico. Na verdade, é o oposto. No exemplo dos caranguejos com cérebros do Manifesto Manguebit, o humano não está no centro. É um processo cíclico em que o humano é apenas uma unidade. E é isso que precisamos aprender. Talvez a humanidade seja uma prática de humildade.
Na era das redes sociais, vemos uma ascensão de exposições imersivas com caráter espetacularizado. Como se afastar dessa lógica mercadológica ao inserir elementos artísticos sônico-esculturais e construir uma experiência sensível no Pavilhão da Bienal?
A única resposta que posso dar a essa pergunta é: venha visitar a Bienal de São Paulo. O que pretendemos fazer é uma experiência reflexiva, imersiva e sensorial para todos. Uma experiência cognitiva corporificada. Não sei e não posso comentar sobre exposições voltadas ao marketing nas redes sociais. Em geral, acho que há espaço para todos, e as pessoas devem fazer o que têm de fazer, enquanto nós fazemos o que temos de fazer. E, se tudo for feito sem dogmas, talvez até possamos aprender uns com os outros.

Essas são as contradições que tornam a prática curatorial interessante. Não há muito que possamos fazer, em 15 meses de trabalho para uma bienal, para mudar o status de uma concessão privada. Mas o que podemos fazer é criar incentivos para tornar o parque mais aberto. Uma coisa é certa: a Bienal de São Paulo é uma das poucas bienais do mundo que podem ser visitadas gratuitamente. Isso já é um grande avanço em termos de acessibilidade. Além disso, temos algumas obras espalhadas pelo parque, e algumas são participativas. Esses são gestos pequenos, claro, mas mesmo o oceano é feito de pequenas gotas d’água.
E como as Invocações propostas pela equipe conceitual se materializam e se tornam acessíveis nos diferentes contextos geográficos e culturais locais? Por exemplo, para quem comparecer à Bienal de São Paulo, o que será reverberado dessas experiências?
As experiências das Invocações em diferentes geografias ao redor do mundo se materializarão em livros que estarão disponíveis durante a Bienal de São Paulo, além de fazerem parte da própria exposição. O que continuará ressoando não só em São Paulo, mas também em Marrakesh, Guadalupe, Zanzibar e Tóquio são as performances, poesia, palestras, música, e mais, que deixarão um impacto energético nesses lugares. Sua simples presença nesses espaços permite mapear esses espaços e culturas entre si, uns para os outros.

Bem, o SAVVY Contemporary está na base de tudo isso. Muitas das questões que estamos trabalhando para esta bienal são questões que começamos a propor no SAVVY. Até o formato das Invocações, em vez de um simpósio ou um painel de debate, deriva-se do SAVVY. Por isso, devo muito ao SAVVY, mas também a todas as outras organizações com as quais trabalhei em todo o mundo nos últimos 20 anos, incluindo a instituição de que sou atualmente diretor, o HKW (Haus der Kulturen der Welt). Talvez esta Bienal não tivesse acontecido se Lisette Lagnado não tivesse convidado o SAVVY para vir a São Paulo há alguns anos. Ela realmente abriu para nós muitas possibilidades.