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Retrato do Prof. Dr. Bonaventure Soh Bejeng Ndikung [Foto: João Medeiros / Fundação Bienal de São Paulo]
Postado em 10/06/2025 - 11:52
Da humanidade como prática de humildade
Curador-geral da 36ª Bienal de São Paulo detalha projeto de pesquisa da edição e aponta os desafios de transformar humano em verbo

Seguindo um verso de Da Calma e do Silêncio, poema de Conceição Evaristo, o curador-geral da 36ª Bienal de São Paulo, Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, propõe uma perspectiva sobre o que é ser humano: Nem todo viandante anda estradas – Da humanidade como prática

A prática da humanidade, ainda que valha a todos, está longe de uma ideia universalizante. Pelo contrário, ela evoca fazeres materiais, particulares e coletivos que surgem de todas as direções, e se afasta da humanidade como categoria acima de todas as outras, ao redor da qual giraria o mundo. Isso é o que está aparente nos três “fragmentos” que estruturam o projeto curatorial de pesquisa desta edição e enfatizam a pluralidade cultural, a coexistência entre pessoas e mundos e as formas coletivas de se viver. O primeiro situa-se dentro do poema de Evaristo, explorando mundos submersos e naturais e as maneiras de acessá-los por meio da poesia. No segundo fragmento/eixo, a Bienal convida o público a se ver no reflexo do outro, propondo uma coexistência mais atenta às necessidades coletivas. O terceiro eixo traz espaços de encontros, evocando o estuário (onde o rio converge com o mar) como metáfora principal. Nele convergem as águas, mas também colonizador e colonizado; é onde diferentes espécies se reproduzem e convivem em simbiose. A metáfora baseia-se no manifesto Caranguejos com Cérebro do movimento manguebit, uma representação de um cérebro social coletivo.

A poucos meses da abertura no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, prevista para 6 de setembro de 2025, e em meio às Invocações – ciclos de conversas, palestras, oficinas e performances afluentes da edição, em quatro cidades diferentes: Marrakesh, Guadalupe, Zanzibar e Tóquio –, o curador, autor e biotecnologista Prof. Dr. Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, nascido em Camarões e residente em Berlim, conversa com a celeste diretamente de Tóquio, via e-mail.

Delta na Baía de Bengala em Bangladesh, Índia [Foto: Reprodução/ NASA via Wikicommons]

celeste: Você utiliza a metáfora dos estuários como um dos principais guias da proposta curatorial da 36ª Bienal de São Paulo. O estuário é uma espécie de utopia e, nesse sentido, queríamos saber como a utopia, ou, melhor, uma pluralidade de utopias, seria invocada? E qual é o papel da arte em evocá-la ou mesmo torná-la realidade? Como a arte pode pensar a humanidade como estuário?

Bonaventure Soh Bejeng Ndikung: Agradeço pelo interesse e pelas perguntas tão atentas e provocativas. Embora eu compreenda a referência ao estuário como utopia, não sei se estou de acordo com a sua analogia. A etimologia da palavra “utopia” sugere a ideia de um não topos/lugar, embora tenha passado a significar um espaço ou contexto imaginado ou idealizado. Já o estuário é um espaço muito concreto. Sua concretude reside na negociação entre ambientes de água doce e salgada. Está também no esforço constante de adaptação dos animais e plantas que o habitam. Eu entendo que, do ponto de vista humano, especialmente em tempos de conflitos econômicos e guerras, a ideia de negociação, compromisso e cuidado pode soar como utopia, mas, para todos os outros seres que habitam esse espaço, é realidade. Não é um espaço fácil, mas nos lembra dos fluxos da vida e da necessidade de questionar, adaptar, negociar, conjugar, e mais.

Registro de Hadra, performance final com Lalla Khala e as Gifted Mothers of Dar Bellarj durante a primeira Invocação em Marrakech, Marrocos [Foto: Youssef Boum / Fundação Bienal de São Paulo]
A proposta da bienal também questiona as assimetrias construídas socialmente pelo processo colonizatório; mas queríamos saber sobre os caranguejos (ou seja, sobre outras espécies, fazendo referência ao Manifesto Manguebit). No Fragmento I, aparece o convite para observar o não humano e o projeto curatorial coloca-se nessa perspectiva, de buscar novas humanidades. Não existiria aí um antropocentrismo, por se tratar de arte, artistas e construtos humanos?

Todo o projeto curatorial é um convite para que os humanos escutem o mundo ao seu redor, para entenderem o que e quem são. Os humanos tendem a estar voltados para si próprios e, quando levantam a cabeça, parece que só querem extrair dos outros. Mas os humanos são apenas uma pequena parte do mundo e precisam estar em simbiose com os outros seres que compõem o nosso planeta, em vez de viverem de forma parasitária, como é o modus operandi atual. Reconhecer a multiplicidade dos seres à nossa volta e a pluralidade de epistemologias desses seres, para mim, não é antropocêntrico. Na verdade, é o oposto. No exemplo dos caranguejos com cérebros do Manifesto Manguebit, o humano não está no centro. É um processo cíclico em que o humano é apenas uma unidade. E é isso que precisamos aprender. Talvez a humanidade seja uma prática de humildade.

“OS HUMANOS SÃO UMA PEQUENA PARTE DO MUNDO E PRECISAM ESTAR EM SIMBIOSE COM OS OUTROS SERES QUE COMPÕEM O NOSSO PLANETA, EM VEZ DE VIVEREM DE FORMA PARASITÁRIA”
Delta do Amazonas no encontro com o Atlântico, Brasil [Foto: Reprodução / European Space Agency via Copernicus Sentinel-2]

Na era das redes sociais, vemos uma ascensão de exposições imersivas com caráter espetacularizado. Como se afastar dessa lógica mercadológica ao inserir elementos artísticos sônico-esculturais e construir uma experiência sensível no Pavilhão da Bienal?

A única resposta que posso dar a essa pergunta é: venha visitar a Bienal de São Paulo. O que pretendemos fazer é uma experiência reflexiva, imersiva e sensorial para todos. Uma experiência cognitiva corporificada. Não sei e não posso comentar sobre exposições voltadas ao marketing nas redes sociais. Em geral, acho que há espaço para todos, e as pessoas devem fazer o que têm de fazer, enquanto nós fazemos o que temos de fazer. E, se tudo for feito sem dogmas, talvez até possamos aprender uns com os outros.

Registro de performance de dança Gwoka com Raymonde Torin durante a segunda Invocação da 36ª Bienal de São Paulo em Les Abymes, Guadalupe [Foto: Philippe Hurgon / Fundação Bienal de São Paulo]
Após sua nomeação como curador-geral, você ressaltou a importância da Bienal como um evento público e acessível, de entrada gratuita. No entanto, o Parque do Ibirapuera – que abriga o Pavilhão Ciccillo Matarazzo – está atualmente sob concessão privada, e têm surgido debates sobre sua possível elitização e sobre a acessibilidade para a população local. Em termos de projeto curatorial, como essas preocupações com a democratização da experiência da Bienal se concretizam nas escolhas de obras, artistas e formatos expositivos?

Essas são as contradições que tornam a prática curatorial interessante. Não há muito que possamos fazer, em 15 meses de trabalho para uma bienal, para mudar o status de uma concessão privada. Mas o que podemos fazer é criar incentivos para tornar o parque mais aberto. Uma coisa é certa: a Bienal de São Paulo é uma das poucas bienais do mundo que podem ser visitadas gratuitamente. Isso já é um grande avanço em termos de acessibilidade. Além disso, temos algumas obras espalhadas pelo parque, e algumas são participativas. Esses são gestos pequenos, claro, mas mesmo o oceano é feito de pequenas gotas d’água.

Registro de sessão de escuta por Leila Bencharnia durante a primeira Invocação em Marrakech, Marrocos [Foto: Youssef Boum / Fundação Bienal de São Paulo]

E como as Invocações propostas pela equipe conceitual se materializam e se tornam acessíveis nos diferentes contextos geográficos e culturais locais? Por exemplo, para quem comparecer à Bienal de São Paulo, o que será reverberado dessas experiências?

As experiências das Invocações em diferentes geografias ao redor do mundo se materializarão em livros que estarão disponíveis durante a Bienal de São Paulo, além de fazerem parte da própria exposição. O que continuará ressoando não só em São Paulo, mas também em Marrakesh, Guadalupe, Zanzibar e Tóquio são as performances, poesia, palestras, música, e mais, que deixarão um impacto energético nesses lugares. Sua simples presença nesses espaços permite mapear esses espaços e culturas entre si, uns para os outros.

Registro de batalha de poesia e instalação visual por Dory Sélèsprika e Anaïs Verspan durante a segunda Invocação em Les Abymes, Guadalupe [Foto: Philippe Hurgon / Fundação Bienal de São Paulo]
Por fim, gostaríamos de saber como a sua experiência no SAVVY Contemporary, em Berlim, informa as suas práticas curatoriais? A participação do SAVVY na exposição A Parábola do Progresso (2022) informa de alguma forma o seu projeto para a Bienal de São Paulo?

Bem, o SAVVY Contemporary está na base de tudo isso. Muitas das questões que estamos trabalhando para esta bienal são questões que começamos a propor no SAVVY. Até o formato das Invocações, em vez de um simpósio ou um painel de debate, deriva-se do SAVVY. Por isso, devo muito ao SAVVY, mas também a todas as outras organizações com as quais trabalhei em todo o mundo nos últimos 20 anos, incluindo a instituição de que sou atualmente diretor, o HKW (Haus der Kulturen der Welt). Talvez esta Bienal não tivesse acontecido se Lisette Lagnado não tivesse convidado o SAVVY para vir a São Paulo há alguns anos. Ela realmente abriu para nós muitas possibilidades.

“TALVEZ ESTA BIENAL NÃO TIVESSE ACONTECIDO SE LISETTE LAGNADO NÃO TIVESSE CONVIDADO O SAVVY PARA VIR A SÃO PAULO HÁ ALGUNS ANOS”