A “exposição de repertório” da artista Lygia Clark recém-inaugurada na Pinacoteca de São Paulo é um modelo de atualização historiográfica e crítica de uma obra para os dias de hoje. Gastamos tanto tempo debatendo se o dispositivo de museologização dos bichos de LC, assim como o dos parangolés de HO, neutraliza todo o potencial emancipatório da interação com esses objetos relacionais, que esquecemos de discutir as outras implicações relacionais deles. A mostra na Pina Luz começa com uma bancada baixa, com dez réplicas de esculturas de grandes dimensões da série Bichos (1965), para serem manipuladas. Dedique-se alguns minutos a interagir com um desses curiosos animais feitos de planos geométricos de metal articulados por dobradiças e note a resistência que o material – lúdico apenas em aparência – opõe à sua vontade de fazer o bicho ficar de pé. A experiência prepara bem o espírito para visitar a exposição.
Ao redor das reproduções de Bichos, um mundo de referências pictóricas contextualiza os experimentos que Lygia Clark fez entre 1948 e 1951 sobre a espacialidade da pintura, no percurso de afirmação da morte do plano, ou seja, da própria pintura como tradicionalmente entendida. Esta primeira sala está conectada à sala menor, à esquerda, por um mesmo tapete preto (ausente no restante das sete salas que abrigam a mostra), sugerindo que os dois espaços se complementam: “O branco da base museológica, a corda de separação preparam o ambiente para a apresentação das obras originais”, explica Ana Maria Maia, curadora, com Pollyana Quintella, da exposição Lygia Clark: Projeto para um Planeta. “Uma floresta de bestas inanimadas, mas que, se animadas, poderiam ser ativadas, como nas reproduções à entrada”, resume Maia, diante de um grupo de convidados, na sexta, 1/3, que já tinham se dividido entre a árdua lida com o Bicho-réplica, que tende a ficar plano nas primeiras tentativas de estruturação, e a sala com os originais.
Problema resolvido (é interativo, mas não pode interagir; agora pode, vida que segue), experiência vivida, o visitante pode prosseguir descobrindo a cada uma das sete salas uma artista inteiramente nova, transmutada pelo olhar e pesquisa das duas curadoras. A expressão “mostra de repertório” foi utilizada por Ana Maria Maia na apresentação aos convidados: “Ela está organizada sem priorizar um único aspecto da pesquisa, mas para formar repertório sobre Lygia Clark, para propiciar evidências, a cada etapa, de como o seu legado se manifesta nas novas gerações”. De maneira geral, existe uma cronologia seguida, das experiências com o plano, para fora do plano, para a vida e a participação, da passividade do espectador diante de um quadro ao engajamento de seu corpo nas instalações penetráveis e nos objetos de vestir ou interagir. “Em Clark, a participação existe como um convite a colocar-se no seu corpo, no seu lugar social, e não como entretenimento.”
Mas existe uma quebra da cronologia no meio da exposição: na sala onde está uma recriação, em escala natural, da Maquete para Interior n. 3 (1955), no centro do espaço, encontramos, nas paredes a seu redor, obras da série A Descoberta da Linha Orgânica, que informa, de um ponto de vista da fisiologia feminina, toda a relação entre dentro e fora nas obras posteriores da artista. Pollyana Quintella reforça o contexto histórico em que o salto do plano ao espaço ocorreu: “Lygia viveu a transição de paradigma da utopia dos anos 1950 para a opressão dos anos 1960 sob o regime militar. Diante desse horizonte que se encurta, as obras dos anos 1960 em seguida refletem o inacabamento de nós mesmos. Lygia radical é a que vai querer nos fazer reconhecer-nos bichos em nós mesmos”, afirma a curadora.
Serviço
Lygia Clark: Projeto para um Planeta
Pinacoteca de São Paulo
Praça da Luz, 2
Até 4/8
pinacoteca.org.br