“Inflamação”, do indiano Anish Kapoor, expõe corpos diariamente sacrificáveis, seja na guerra ou em esteiras de trabalho. Corpos dos quais se extrai, mais do que lucro, a própria força de vida, numa espécie de ritual econo-satânico que mergulha o espectador num filme de terror. Algumas obras, como “Inocentes”, são nauseantes. Massas de carne empilhadas parecem lembrar pedaços humanos – cabeças, braços pendurados.
Num primeiro momento, me perguntei qual seria a recepção do público – não reclamariam dos gatilhos, da violência explícita? É importante lembrar que essa é a exposição de estreia da Casa Bradesco, no coração da elite paulistana e integrada ao Hotel Rosewood, na Cidade Matarazzo. Enquanto me perco em elocubrações, uma família se aproxima, mãe, filho e mais uma companhia. O menino, de uns 12 anos, posa ao lado da pilha de corpos de Kapoor, e a mãe pede mais de uma vez que ele sorria para a foto.
É difícil saber, ao final, se o sangue e as carnes dilaceradas expostos em escala industrial são denúncia ou ode à violência. Os espelhos, muito frequentes na produção de Kapoor, e os jogos de perspectiva, nos convidam a preencher individualmente essa resposta. O vermelho, vida crua do espoliado, contrasta com o vazio niilista do preto vantablack, substância tecnológica que absorve 99,96% da luz visível e suga tudo para dentro de si. O fato é que a exposição ressignifica o espaço no qual está inserida. Ao deixar a Casa, atravesso um bosque de oliveiras “importadas”, em direção ao lobby do Rosewood.
Cocares, máscaras, cerâmicas e outros artefatos místicos indígenas estampam paredes e balcões. A espoliação cultural é também a absorção de todo encantamento e força de vida dos subalternizados. É o saldo de todos os genocídios. O que se rouba nunca é apenas a terra, os recursos. É a própria vida, com o seu encantamento, fetichizada, “feiticizada”. O vermelho está em todos os lugares, de tapetes a lustres, como expressão arcaica dessa realeza que se constrói pela submissão. Kapoor nos dá a gramática para compreender o nosso entorno.
Caroline Theml é formada em Letras e Linguística pela Universidade de São Paulo. Se especializou em Análise do Discurso e Linguística textual, com intercâmbios na Unicamp e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atua como professora de Linguagens e produção textual na Escola Gracinha.