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Internal Object in Three Parts (2013-15), de Anish Kapoor [Todos os direitos reservados, DACS/AUTVIS, 2024/ Foto: Joana França]
Postado em 30/01/2025 - 2:45
De banquetes, altares e sacrifícios
Individual de Anish Kapoor na Casa Bradesco é carnificina despercebida no coração da elite paulistana

“Inflamação”, do indiano Anish Kapoor, expõe corpos diariamente sacrificáveis, seja na guerra ou em esteiras de trabalho. Corpos dos quais se extrai, mais do que lucro, a própria força de vida, numa espécie de ritual econo-satânico que mergulha o espectador num filme de terror. Algumas obras, como “Inocentes”, são nauseantes. Massas de carne empilhadas parecem lembrar pedaços humanos – cabeças, braços pendurados.

Num primeiro momento, me perguntei qual seria a recepção do público – não reclamariam dos gatilhos, da violência explícita? É importante lembrar que essa é a exposição de estreia da Casa Bradesco, no coração da elite paulistana e integrada ao Hotel Rosewood, na Cidade Matarazzo. Enquanto me perco em elocubrações, uma família se aproxima, mãe, filho e mais uma companhia. O menino, de uns 12 anos, posa ao lado da pilha de corpos de Kapoor, e a mãe pede mais de uma vez que ele sorria para a foto.

É difícil saber, ao final, se o sangue e as carnes dilaceradas expostos em escala industrial são denúncia ou ode à violência. Os espelhos, muito frequentes na produção de Kapoor, e os jogos de perspectiva, nos convidam a preencher individualmente essa resposta. O vermelho, vida crua do espoliado, contrasta com o vazio niilista do preto vantablack, substância tecnológica que absorve 99,96% da luz visível e suga tudo para dentro de si. O fato é que a exposição ressignifica o espaço no qual está inserida. Ao deixar a Casa, atravesso um bosque de oliveiras “importadas”, em direção ao lobby do Rosewood.

Cocares, máscaras, cerâmicas e outros artefatos místicos indígenas estampam paredes e balcões. A espoliação cultural é também a absorção de todo encantamento e força de vida dos subalternizados. É o saldo de todos os genocídios. O que se rouba nunca é apenas a terra, os recursos. É a própria vida, com o seu encantamento, fetichizada, “feiticizada”. O vermelho está em todos os lugares, de tapetes a lustres, como expressão arcaica dessa realeza que se constrói pela submissão. Kapoor nos dá a gramática para compreender o nosso entorno.

Caroline Theml é formada em Letras e Linguística pela Universidade de São Paulo. Se especializou em Análise do Discurso e Linguística textual, com intercâmbios na Unicamp e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Atua como professora de Linguagens e produção textual na Escola Gracinha.