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Postado em 24/04/2014 - 7:12
De coletivo a multidão
Giselle Beiguelman

Ruas, igrejas, museus e até shopping centers são reivindicados e ocupados por novos modos de pensar e fazer política, em movimentos que não cedem aos clichês de esquerda e direita

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Legenda: Um dos ícones das manifestações brasileiras, o Batman carioca evidencia que as manifestações em curso transformaram as ruas em uma batalha de linguagens (foto: Fernando Frazão)

Sai 2 mil e crazy, entra 2 mil e catarse. Foi assim que o ano começou no Brasil, turbinado pelo clima eleitoral, a Copa do Mundo e o sopro da hashtag que entrou para a nossa história: #vemprarua. Interpretada no contexto de revoltas e movimentos sociais que eclodem no mundo inteiro desde 2011, ela torna as manifestações brasileiras ainda mais interessantes. Da Tunísia a Wall Street, do Cairo a Madri, de São Paulo a Brasília, de Sochi, na Rússia, a Kiev, na Ucrânia, passando por Caracas e Rio de Janeiro, não só as ruas, mas as igrejas, os museus e até os shopping centers estão sendo reivindicados, disputados e ocupados por novos modos de pensar e fazer política.

Vadias, maconheiros, pacifistas, gays, jovens em busca de diversão, estudantes, professores, trabalhadores, senhoras, senhores e black blocs aparecem em marchas, paradas, manifestações e aglomerados de todos os portes e perfis. Com poucos denominadores comuns, suas ações e pautas evidenciam que uma das marcas do nosso tempo é a irrupção da multidão. Diferentemente das massas, a multidão não é uma unidade, mas segue princípios – temporários e provisórios – de auto-organização. As multidões dependem, ao mesmo tempo que fomentam, das instâncias micropolíticas e suas formas de tensionar e de se articular com as macropolíticas. Fala-se aqui não da luta dos pequenos contra os grandes, de quantidades, mas de qualidades. Às macropolíticas correspondem as estruturas estáveis, sedimentadas, como as instituições e os partidos. Às micropolíticas, os potenciais em aberto de toda uma série de forças sociais mutantes e fluidas que não cabem no aparato tradicional do Estado.

Não é preciso ir muito longe, nem no espaço nem no tempo, para visualizar essas teorias encenadas, vividas, testadas, disputando territórios físicos, informacionais e simbólicos. O Movimento Passe Livre e os rolezinhos são acontecimentos praticamente autoexplicativos desses conceitos. Eles vazam, escorrem, transbordam as pautas partidárias clássicas. Ações como o do G.U.L.F (Global Ultra Luxury Faction), que invadiu o museu Guggenheim de Nova York no dia da inauguração da exposição sobre o Futurismo, no fim de fevereiro, é outra evidência desse processo. O protesto que realizam é contra as condições de trabalho dos migrantes que constroem a sede desse museu em Abu Dabi. Ele traz à tona outros meandros ao artivismo contemporâneo, alargando os horizontes da crítica institucional, tão cara a artistas como Hans Haacke e Andrea Fraser. Por meio de ações diretas e via internet, discutem, desde outubro, aspectos pouco contemplados: as implicações sociais dos processos de implantação e exportação de um museu.

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Legenda: Ativistas invadem o Guggenheim de Nova York para protestar contra as condições de trabalhos dos imigrantes na construção de sua sede em Abu Dabi (foto: G.U.L.F.)

Geração pós-Muro

Multifacetados, esses movimentos arregimentam setores diversos que subvertem a ordem, trazendo novos extremos a um circuito que antes era compreensível entre clichês de esquerda e direita. Protagonizados pela chamada geração pós-Muro (nascida depois da queda do Muro de Berlim, em
1989), seus pais, no Brasil, dividem-se entre aqueles que acreditaram que viveríamos o fim das utopias e aqueles que nem sequer sabiam que Berlim existia. Globalizados, combinam máscaras com humor, cartazes com internet e violência com discursos bem articulados.

Sua forma de reivindicar a esfera pública é midiática e midiatizada. Midiática porque é produzida com consciência da importância de propagar-se nos veículos de comunicação internacionais. Faixas em inglês, por exemplo, apareceram em todas as grandes manifestações. Isso não é pedantismo nem acaso. É estratégia. De quem sabe que o vídeo do YouTube pode parar na CNN ou vice-versa. Mas é também midiatizada, pois é através e nos meios de comunicação que as ações e reivindicações se colocam. Não só porque as redes sociais têm em todos esses processos um papel fundamental de articulação e mobilização. Em alguns casos, como no de São Paulo, criam até uma nova geografia dos protestos, inserindo lugares como a Ponte Espraiada no seu mapa, para dali aparecerem no cenário ao vivo dos telejornais da Globo News. Produzem também novos vocabulários visuais.

https://www.youtube.com/watch?v=k8iy3eehwa8

Legenda: Durante um ‘rolezinho’, morador do Leblon hostiliza manifestante por não concordar com os protestos e com a figura do ‘Batman’

Quem imaginaria que a imagem mais bem acabada da mídia brasileira, a das grandes emissoras de tevê, incorporaria com tanta rapidez as imagens tremidas, fora de foco, a câmera “ofegante” dos ninjas nas suas reportagens ao vivo? Espaço cada vez mais evidente de pulsação das diferenças, as ruas são tomadas por todas as classes e tornam-se também o lugar de uma guerra de linguagens, de enunciados e de maneiras de ver o mundo. Disputa-se palmo a palmo não só o direito de ir e vir, mas o de ser visível. Para dar-se conta disso, basta lembrar do bate-boca entre o Batman de Madureira e um morador do Leblon no começo do ano que virou hit no YouTube ou das estarrecedoras imagens do jovem negro acorrentado por “justiceiros” a um poste no Flamengo.

Essa batalha simbólica não é um indicativo de curto-circuito social, como desejariam demiurgos das velhas esquerdas e direitas. É indicativa da pluralidade de vozes e novos protagonistas que entram em circulação. A bem-vinda overdose de imagens que circulam nas manifestações aqui e no mundo todo o comprova. As narrativas que projetam não fazem coro. São ruidosas e midiatizam as ruas. Que venha a catarse.

*Ensaio publicado originalmente na edição #17