No campo da arte, 2021 foi um ano de revisões e debates. Com a aproximação do centenário da Semana de Arte Moderna de 1922, instituições dedicaram-se ao longo do ano a revisar o modernismo brasileiro à luz das transformações teóricas, estéticas e sociais ocorridas e operadas em um século. Muito se debateu a respeito de como os modernos paulistas “inventaram” a centralidade cultural de São Paulo. Foram postas em revisão as noções dicotômicas entre erudito e popular, centro e periferia; e buscou-se um deslocamento do “mito de origem” da arte moderna brasileira. No campo social, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil decretou emergência indígena pelo crescimento de violações no período da pandemia, do garimpo ilegal e do desmatamento; e um Projeto de Lei (o PL 490) colocou em risco a demarcação de terras indígenas, prevendo que só seriam consideradas aquelas que já estavam em posse desses povos na data da promulgação da Constituição de 1988.
Enquanto cerca de 1.200 lideranças indígenas de 150 povos acompanhavam o julgamento do marco temporal, em vigília na Praça dos Três Poderes, em Brasília, e mais de 5 mil guerreiras se juntavam à II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, o Museu de Arte Moderna de São Paulo inaugurava as exposições Moquém_Surarî: Arte Indígena Contemporânea, com curadoria do artista indígena Jaider Esbell, e Moderno Onde? Moderno Quando?, organizada pelas curadoras Aracy Amaral e Regina Teixeira de Barros.
Ao promover essas duas mostras, a instituição coloca em evidência um fenômeno surpreendente: o fato de o centenário da Semana de 22 coincidir com a emergência do movimento da arte indígena contemporânea. Mas, mesmo que o intuito do museu seja alargar os marcos temporal e geográfico do Modernismo no Brasil, pela maneira com que posiciona e (não) relaciona diretamente as curadorias de Esbell e de Amaral e Teixeira de Barros, o MAM-SP perde a oportunidade de, efetivamente, promover uma revisão dos critérios que há pelo menos cem anos definem e demarcam os territórios do sistema de arte brasileiro.
Difícil reconhecer uma revisão de dicotomias e separações, ou uma retomada da questão moderna “sem respostas prontas, cristalizadas pela voz corrente” – como aponta o texto curatorial de Moderno Onde? –, quando uma curadoria sobre o modernismo não estabelece um entrelaçamento com uma curadoria que apresenta trabalhos de 34 artistas dos povos Baniwa, Guarani Mbya, Huni-Kuin, Krenak e Yanomâmi, entre outros. O projeto-parede de Ana Maria Tavares, instalado no corredor que separa modernos de indígenas, tem muito a dizer sobre o abismo e a dificuldade de comunicação. Campo Fraturado, SOS (2021) escreve a sigla de pedido de socorro em braile numa escala inatingível à mão humana, tornando-se, portanto, inócuo.
Em poucas palavras, será que as “posições enunciativas e relações de poder” – que Jaider Esbell afirma em seu texto curatorial estarem sendo reconfiguradas por uma ancestralidade mobilizada no agora – não estão sendo reiteradas por uma expografia que conduz o visitante a, necessariamente, atravessar o grande salão modernista para chegar à maloca indígena?


Campo fraturado, campo demarcado
Movida pela urgência de revisão de parâmetros de valor na história da arte brasileira que os tempos pedem, esta resenha se propõe, então, a pensar a interação entre as duas curadorias, arriscando parentescos, afinidades. Talvez, por que não, propondo uma versão “dilatada” das exposições, justapondo imagens de algumas das obras que se dividem entre a Grande Sala (rebatizada de Milú Villela) e a Sala Paulo Figueiredo.
Há relações incontornáveis. A começar pelo uso da geometria. É surpreendente identificar em Paisagem Brasileira (1925), de Lasar Segall, e em Crucifixão (1924), de Vicente do Rego Monteiro, uma geometria pautada pelo cubismo, pelo construtivismo – colonizada, portanto –, enquanto nas comunidades indígenas vizinhas há experimentações geométricas de maior diversidade, calcadas no uso ancestral de padrões que estruturam cestarias, desenhos corporais e adereços rituais. Assim, aos quadrados e ângulos retos da Grande Sala justapomos os triângulos, losangos, círculos e labirintos da sala seguinte. Em relação à geometria antropomórfica de Rego Monteiro, temos a geometria animal de Rivaldo Tapyrapé (Sem Título, 2017) e de Jaider Esbell (Sapo Boi, 2012), a geometria celeste de Yermollay Caripoune (Constelação de Escorpião Swarã, 2019) e a representação geometrizada da vida social, em Antonio Brasil Marubo (Patamares Terrestres e Patamares Celestes, 2004).



Os cruzamentos entre os temas que movem os dois grupos são mais interessantes, para além de uma análise formal. Afinal, como aponta um dos textos de Esbell, na parede de Moquém, trata-se aqui de “extrapolar o registro da materialidade plástica”. O que está em jogo na crítica de uma arte indígena, portanto, não é a fatura. Observamos, por exemplo, como se dá a atuação da mulher em ambos os grupos. Entre os modernistas, a exposição traz duas artistas que participaram da Semana de 22: Anita Malfatti e Zina Aita. E a representação da Floresta (1929), por Tarsila do Amaral, uma tela que, pelo tema, poderia ter tido mais centralidade na narrativa da exposição.
Em Moquém, há uma presença relativamente mais equilibrada entre gêneros e especial atenção para a “perspectiva feminina inovadora” de artistas como Daiara Tukano, Rita e Yaka Huni-Kuin em sua relação com a tradição gráfica da inscrição em corpos, cerâmicas, cestarias e pedras. Em Moderno?, como um dos propósitos curatoriais é se debruçar sobre uma produção artística inovadora, independentemente de data e local, estranha-se que não tenha incorporado artistas reveladas, por exemplo, na pesquisa de Ana Paula Simioni, Mulheres Artistas: As Pioneiras 1880-1930, que teve exposição na Pinacoteca em 2015.
Outra vizinhança a investigar nas duas mostras é o território das representações da vida social x vida comunitária. O álbum ilustrado A Realidade Brasileira (1933), de Di Cavalcanti, com sua abordagem caricata aos ricos, às prostitutas, políticos, Igreja e Exército, encontra um reverso complementar no livro O Xamã (2017), de Jaider Esbell, Davi Kopenawa e Fanor Xirixana. Na entrada de Moquém, Festa na Floresta (1998), pintura em acrílica e urucum, de Ailton Krenak, é indicativa das alianças afetivas e dos vínculos com outros seres que compõem o cosmo – o que se repete em outras poéticas da exposição, como a série fotográfica Yãmiy/Homem-Espírito (2009), de Sueli Maxakali.
Na sala anterior, modernos e acadêmicos fazem sua crônica de costumes representando bailes à fantasia (Rodolpho Chambelland, 1913,) e a vida do trabalhador urbano ou rural (Raimundo Cela, Saída da Oficina, 1929). O universo do “povo brasileiro” aparece ainda no olhar fetichista sobre Mulata (Volpi, 1927), ao lado do vaso com flores de Guignard, numa narrativa expográfica que não disfarça a objetificação da mulher.


Subjetividade vs. Cosmogonia
Há quatro telas modernistas que poderiam se situar num território “entre” as duas salas, que poderiam propor um diálogo mais franco e “novas formas de relação, dilatadas em outras dimensões de tempo e espaço”, com o conjunto de obras que são traduções visuais de cosmogonias – como Nai Mãnpu Yubekã (2017), do Mahku, e Desabrochar da Mata Atlântica (2021), de Carlos Papá. São as duas telas pintadas por Flávio de Carvalho após sua Experiência nº 2, sobre a psicologia das massas e da religião; Visão Interna – Agonia (1931), de Ismael Nery; e a pequena e notável O Kosmo (1919), de Manoel Santiago.
No âmbito das narrativas cosmogônicas, outra acareação que pede para ser feita com coragem é colocar frente a frente a obra literária Macunaíma, Um Herói sem Nenhum Caráter (1928), de Mário de Andrade, e Makunaimã, ou Makunaimî, divindade do tempo imemorial que habita o Monte Roraima. A acareação já foi feita com propriedade na obra Reantropofagia (2018), de Denilson Baniwa, e no ensaio Makunaima, o Meu Avô em Mim! (2018, Revista Iluminuras), com desdobramento no livro Makunaimã – O Mito Através do Tempo (2019, Editora Elefante).
No campo do enfrentamento em que se coloca Denilson Baniwa, Kéeroa Nhoa, Nhiníkon Hótshome Kaakó Karo Nhoa (Fiquei com Raiva e Levantei-me para Falar) (2021) demonstra bem a identidade transmídia do artista. É uma pintura, mas é também uma obra de arte digital, um vídeo e uma performance. O QR Code pintado na tela leva a um vídeo de 42’, registro de ação realizada em São Paulo, em 17 de novembro de 2018. Começa com Baniwa vestido como Pajé Onça caminhando ao redor do Monumento às Bandeiras, de Victor Brecheret, fazendo som com um chocalho. O desafio do artista à estátua que edifica a campanha genocida colonial e o deslocamento tempo-espaço promovido pela obra nos atiram de volta a uma dúvida surgida no interior do salão grande: por que a Fragmento: Templo da Minha Raça (1921-1998), escultura de bronze de Brecheret, não tem uma contextualização em relação ao Monumento?
“O tempo da arte indígena não é refém do passado”, aponta o texto curatorial de Esbell. Ser realmente investigativo e disruptivo em relação ao modernismo implicaria dialogar com Makunaimã e investigar o que acontecia no Cais da Gamboa e no Morro da Providência, quando Blaise Cendrars visitou o Rio com os modernistas. Por fim, questiona-se por que Moquém não se estendeu à sala antes dedicada a abrigar a Aranha de Louise Bourgeois. Será que não estamos aqui justamente para repensar espaços, pesos, medidas, divisões e dimensões de nossas certezas e saberes?


Moderno Onde? Moderno Quando?
até 12/12, MAM SP
Moquém_Surarî
até 28/11, MAM-SP
Parque do Ibirapuera, portões 1 e 3