Ao recuperar um dos trading pits, ou “rodas de negociação”, do Chicago Board of Trade, dos EUA, Daniel de Paula, Marissa Lee Benedict e David Rueter operaram um sequestro simbólico. O contexto é curioso apesar de, nos últimos anos, ter se tornado familiar: uma enorme estrutura foi tirada do cadafalso da obsolescência para se transformar na obra deposição (2020), ocupando lugar de destaque no centro narrativo da 34ª Bienal de São Paulo, encerrada no último domingo 6/12.
De feições sóbrias e geométricas, esse antigo “palco” das negociações de grãos foi usado pelos artistas com uma pretensão curiosa de estimular performances e debates. O anfiteatro, sem que sejam necessárias grandes mediações, seria capaz de recentralizar a ação humana na arte e na política. Do mercado à arena, dos negócios aos debates, essa nova centralidade seria, então, capaz de destronar os interesses do lucro?
A resposta não é confortável, mas seria imprudente ignorar essa nova camada de sentido ao demover esse “sequestro simbólico” da biografia do objeto. Ele foi, em tempo, removido de sua função utilitária original e reinserido em outra cadeia de significados, que o reorienta a uma crítica explícita ao sistema para o qual foi produzido para servir. Também seria lícito, em outra perspectiva, propor que os trading pits tenham sido deslocados do mercado financeiro para o mercado de arte, em um exercício mais parecido com um deslocamento do que com um “sequestro”?
Essas múltiplas camadas de sentidos são bem percebidas e operacionalizadas por De Paula, Benedict e Rueter. O trio também foi responsável por Repose (2020), obra instalada no Arts Club de Chicago. Nesse projeto, eles reorganizam fragmentos dos antigos pisos do edifício do Board of Trade (“Conselho de Comércio”), formando uma escultura feita por quatro placas geométricas, vazadas, e ressignificando uma atividade comercial outrora movida pelas commodities. As fissuras nas enormes placas de madeira promovem uma descontinuidade que desmonta sua geometria anterior e admite um olhar irregular sobre a obra.
Ao mesmo tempo, a verticalidade atribuída ao piso, combinada com as enormes fissuras, mostra que outros ângulos de observação podem existir: subvertendo a horizontalidade original e perfurando as diversas camadas de aparência sólida, é possível enxergar através.
Ao propor esses redimensionamentos de sentidos de objetos atrelados à vida do capital financeiro, as obras de De Paula, Benedict e Rueter suscitam um possível diálogo com Sociedade do Cansaço, do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han – talvez seu livro mais notório entre o público lusófono.
AUTOEXPLORAÇÃO
Ao refletir a respeito dos primeiros anos do século 21, Byung-Chul Han apresenta um diagnóstico da sociedade ocidental que, além de propor a releitura crítica de pensadores clássicos das Ciências Sociais e da Filosofia, como Michel Foucault e Martin Heidegger, estabelece um novo paradigma conceitual onde o sujeito promove sobre si mesmo a coação ao trabalho. Assim, seria impossível distinguir quem coage de quem é coagido, pois são o mesmo. Livre de uma pressão disciplinar externa, enclausura-se em uma forma de autoexploração.
Essa condição se desdobra, invariavelmente, segundo o filósofo, em patologias como a Síndrome de Burnout e a depressão, manifestações últimas de uma crise de liberdade. O “sujeito de desempenho” do sistema neoliberal seria impassível de relacionar-se livremente, fora de algum propósito. No livro Psicopolítica, inclusive, Byung-Chul Han o compara a um “servo sem senhor” cuja exploração voluntária conduziria a uma era do esgotamento marcada pelo colapso mental.
As obras mencionadas retiram objetos que metaforizam o capitalismo financeiro e os recolocam em perspectiva. Os títulos das peças, inclusive, dialogam com as novas formas de observação, valendo-se de diferentes sufixos para o verbo “por” que implicam em significados diferentes, ainda que partilhem o mesmo campo semântico. Em tempo, essa perspectiva artística de-põe o capitalismo financeiro e o re-põe (o sentido de “pousar” é o mesmo de “por”) em uma nova situação, promovendo um sequestro simbólico que é cristalizado no ato de ex-por.
Removendo o capitalismo financeiro do centro da cena, a obra deposição (2020) reabilita a materialidade do anfiteatro e lhe atribui alguns sentidos evocadores da criação humana, deslocadas da intenção meramente lucrativa. A obra de Daniel de Paula, Marissa Lee Benedict e David Rueter parece dialogar com essa “sociedade do cansaço” conceituada por Byung-Chul Han. Outros trabalhos de Daniel de Paula, na realidade, como power-flow (2019-2021), parece produzir uma metáfora dos sujeitos neoliberais – ao prender fulguritos (rochas de composição vítrea) a cabos de energia infraestruturais com tirantes, até mesmo a Síndrome de Burnout parece ganhar materialidade: presos a um sistema que exige uma alta performance constante, terminariam invariavelmente queimados?
Ao remanejarem as reminiscências materiais que servem como metáfora para o capitalismo financeiro, os artistas os reinserem em situação de crítica propositiva e reconduzem o sujeito e a criação humana ao centro da vida social. Mas seria meritório, como forma de avançar esse debate, compreender também a interface entre o capitalismo financeiro e o próprio sistema em que obras de arte também são negociadas: que sequestros simbólicos ela promove?