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Postado em 11/11/2014 - 5:28
Desafios da grande escala
Mario Gioia

Expografias da Bienal de São Paulo mostram partidos diferentes para conciliar estratégias curatoriais e as linhas do edifício projetado por Oscar Niemeyer

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Legenda: Arquibancada de madeira aproveita a ondulação do mezanino e cria áreas de convívio na 31ª Bienal de SP (foto: Pedro Ivo Trasferetti / Fundação Bienal de São Paulo)

É um componente fundamental de uma grande exposição e que, ao mesmo tempo, se for pouco percebido, torna-se seu trunfo. O contrário, ou seja, caso seja muito ostensivo, também pode fazer com que uma mostra fique malvista tempos depois. Na 31ª Bienal de São Paulo, a expografia – em resumo, a estratégia espacial concebida para distribuir as obras exibidas, em diálogo com as desafiadoras linhas e escalas do pavilhão de autoria de Oscar Niemeyer – é colocada em relevo e lança mão de novidades. Entre as principais, uma arquibancada no andar térreo e o “envelopamento” de um bloco central nos pisos do prédio, onde ficam as escadas rolantes.

“Foi desafiador projetar tudo isso, pois o edifício tem grandes escalas e muitos elementos arquitetônicos de destaque”, afirma o israelense Oren Sagiv, que assina a expografia desta edição. O arquiteto dividiu o pavilhão em três ambientes, cada um com imersão própria. No térreo, alinhado à grande atividade recreativa e de esporte do Parque do Ibirapuera, o destaque recai sobre a construção de uma espécie de arquibancada de madeira, baixa, que aproveita a ondulação do mezanino superior e cria espaços de convívio. Haverá mais portas abertas para o entorno. “Imagino que as crianças e os adolescentes, muitos deles passeando ou andando de skate na marquise, possam se juntar e ser acolhidos numa estrutura generosa”, diz.

Essa permeabilidade é elogiada por profissionais que trabalham com expografia. “Vi a construção no térreo da Bienal para a nova montagem, em que o arquiteto claramente se inspira nas curvaturas do pavilhão. É uma beleza, fiquei animadíssimo”, avalia Álvaro Razuk, que assina importantes projetos na área, como exposições internacionais e feiras de arte. “Considero o projeto de Oren Sagiv uma surpreendente ocupação. Ele reconhece a força do edifício para subvertê-lo, reinventa o espaço sem, entretanto, se distrair dele. Ao contrário, leva ao extremo certas qualidades presentes lá, que ficam encobertas pela ilusão de continuidade homogênea. Resulta em uma expografia elegante e muito potente em sua diversidade”, diz a arquiteta Marta Bogéa, responsável pelas expografias da 27ª e da 29ª edição da Bienal paulistana.

Sagiv optou pelo enclausuramento de boa parte do segundo andar, em que salas e caminhos de circulação têm uma dimensão mais intimista e são encerrados por paredes altas, em cinza-escuro, dando um ar museológico ao grande espaço. “É uma grande área horizontal. Opõe-se à verticalidade do centro do pavilhão, marcada pela escada rolante, também encapsulada. É outro momento dado ao público, com muitas salas com vídeos e trabalhos que demandam um foco maior”, explica. O setor, chamado de Colunas, tem em um de seus lados um corredor extenso, onde é possível o diálogo com o verde exterior do parque. Já nas cercanias das rampas, num terceiro momento da mostra, é proposta uma nova fruição do público, com ambientes abertos e que não brigam com as fortes linhas modernistas projetadas por Niemeyer. “O vão, as rampas, os guarda-corpos, tudo é um conjunto tão marcado que é quase uma obra de arte”, considera Sagiv.

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Legenda: A Grande Tela (1985), da curadora Sheila Leirner, uma das mais marcantes montagens já feitas em bienais (foto: Arquivo Histórico Wanda Svevo / Fundação Bienal de São Paulo)

História

As ousadias programadas por Sagiv não são lances isolados dentro da história da Bienal. Marcou época a edição de 1985, a 18ª, em que a curadora Sheila Leirner criou o que ficou conhecido como Grande Tela. As paredes expositivas de três longos corredores exibiam, a pouca distância das pinturas umas das outras, centenas de trabalhos de artistas do mundo inteiro. Entre eles alguns novíssimos nomes naqueles anos, como os integrantes do Casa 7 e artistas hoje consagrados, como Daniel Senise e Leda Catunda. “A Grande Tela representou, pelo menos aqui, no Brasil, uma ruptura com o paradigma moderno. Foi assustador participar daquilo. Imaginávamos uma montagem em grandes salas ou praças, como foi a Bienal de 1983, com Lüpertz, Baravelli, Jorge Guinle. Ao contrário, caímos num grande corredor ‘versalheano’, infelizmente sem os espelhos”, lembra o paulistano Fabio Miguez, ex-Casa 7. “Na década de 1980, havia um tipo de pós-modernismo radical que colocava a expografia e a curadoria como protagonistas máximos de qualquer exposição. Lembro-me que não gostamos muito de ficar na Grande Tela. Tentamos sair, mas acabamos ficando”, afirma o artista Paulo Monteiro, também ex-Casa 7. Ambos, porém, elogiam o esforço da curadoria em apresentar nomes ainda emergentes no circuito. “Foi decisivo para mim”, fala Miguez.

Em edições recentes, o mesmo arquiteto pôde projetar duas estratégias completamente distintas para o espaço, de acordo com os objetivos dos titulares da curadoria e dos artistas. É o caso de Bogéa, que foi parceira de Lisette Lagnado (27ª) e Moacir dos Anjos e Agnaldo Farias (29ª). “Considero-os projetos opostos, resultado de diálogo com duas curadorias muito distintas. Com Lisette e equipe, um dos valores espaciais fundamentais era a transparência, um traço que teve bons momentos no desenho das praçascom piso de madeira, aproximando segundo e terceiro andares do núcleo Broodthaers e nos planos enxutos que organizavam as projeções abertas no primeiro pavimento. Já na 29ª, ocorria exatamente o contrário, trabalhamos com a opacidade.”

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Legenda: Detalhe da expografia de Marta Bogéa na 29ª Bienal de São Paulo, em que a opacidade era um valor e surgiram salas com formatos diferentes e paredes de altura variada (foto: Arquivo Histórico Wanda Svevo / Fundação Bienal de São Paulo)

Escolhas a serem feitas

Moacir dos Anjos defende a expografia da sua edição. “Em cada ‘cidadela’ ou agrupamento denso de salas com formatos diferentes e com alturas de paredes variadas (além de pintadas em três tons distintos de branco), o visitante não possuía um único caminho a tomar, por vezes tendo de fazer opções por um trajeto e abandonar outro, de modo que talvez até não tivesse acesso a algumas das salas da mostra. Assim como na vida, escolhas tinham de ser feitas.”

Lagnado recorda de mudanças ocorridas no decorrer do projeto. “A mostra de Marcel Broodthaers precisava estar no ambiente com ar condicionado porque era um acervo de museu. Minha vontade inicial era colocá-lo na entrada do pavilhão. Sempre trabalho escutando os artistas para compreender, de saída, o que seria a situação ideal. À medida que as obras vão se definindo, imagino diálogos inesperados para estabelecer aproximações malucas, estranhas. Prefiro criar tensões, hiatos, saltos de significados.”

A expografia realizada pelo arquiteto Martin Corullon para a 30ª edição do evento, com curadoria do venezuelano Luis Pérez-Oramas, foi muito elogiada por profissionais do circuito. “Ao mesmo tempo que fizemos recintos mais reservados e densos de informação, nos espaços fora desses ambientes, os de circulação, quase não havia obras à vista. Esse silêncio visual era importante para permitir alternância entre descanso e foco. O desafio foi conseguir criar, ao mesmo tempo, ambientes reservados e fluidez de percurso. Esse era o nó do projeto”, conta Corullon, que ironiza quem considerou seu trabalho museológico em excesso. “Por ter um trabalho 90% focado em projetos urbanos e de edifícios, tenho a possibilidade de fugir do repertório da expografia tradicional. Em geral, acho-a pesada e careta, sem nenhuma graça construtiva e com poucos recursos arquitetônicos, e sim muito museológicos.”

*Crítica publicada originalmente na edição #20