Falar sobre sexualidade já é falar a partir de um discurso de origem médica, já é assumir um regime de olhar que classifica, que mede, que estabelece diferenças como um botanista procura catalogar diferenças em um herbário. Estas são proposições de Michel Foucault e elas não poderiam ser esquecidas em uma discussão sobre arte e sexualidade. Elas problematizam a passagem da experiência do sexual ao discurso, a assunção de uma gramática que permitirá não apenas falarmos sobre um determinado objeto, mas também paradoxalmente constitui-lo. Pois ninguém expressa sua sexualidade impunemente.
Uma leitura apressada nos levaria a acreditar que tal ausência de impunidade não está simplesmente vinculada às consequências reativas que a exposição da sexualidade pode provocar. A resiliência de tais resistências até os dias atuais, e o Brasil contemporâneo é um espaço privilegiado para observá-las, pode nos dar a impressão de que expressar sua sexualidade seria, por si só, um eixo fundamental de crítica e emancipação. No que as manifestações artísticas deveriam, acima de tudo, fortalecer regimes de visibilidade de sexualidades historicamente submetidas à violência social, retirar a mácula da degradação a que tais sexualidades foram objeto, contribuírem para a produção de um orgulho reparador. Nesse horizonte, a arte poderia fornecer as formas para afirmação de identidades excluídas, colaborar para a modificação da sensibilidade em relação ao que parece não se adequar aos padrões hegemônicos de reprodução de nossas formas de vida.
No entanto, poderíamos nos perguntar se a arte contemporânea não teria a força de propor uma operação ainda mais radical. Já a ideia de “expressar sua sexualidade” tem um conjunto de pressupostos muitas vezes não tematizados. O primeiro deles nos leva a crer que a experiência do sexual se submete a algo que responde a coordenadas de propriedade. “Temos” uma sexualidade, como se tratasse de definir um conjunto específico de atribuições que permitem a produção de uma verdadeira taxonomia a partir de predicados possíveis. “Temos” uma sexualidade como aquilo que nos identificaria, que nos permitiria constituir vínculos e identidades. Mas podemos sempre nos perguntar se a experiência do sexual não seria, exatamente, este espaço no qual encontramos, algo que não nos é próprio, algo que não poderíamos de forma alguma “ter”.
De fato, haveria uma forma de lembrar que, no sexual, nos deparamos com algo que nos é radicalmente impróprio, inapropriável, produzindo sempre instabilidade nas tentativas de determinação e identificação. Ou seja, poderíamos sempre lembrar daquilo que, no interior da experiência do sexual, não se conforma aos regimes de uma sexualidade. Poucas foram as artistas que entenderam tão bem esse ponto quanto Cindy Sherman. Pois um dos eixos de sua produção será exatamente a emergência de algo que, na constituição de identidades sexuais, parece refratar-se à possibilidade de ser apropriado. Daí a necessidade de mostrar o excesso sob a forma fetichizada de si, o informe que parece emergir do seio da imagem de si submetida ao olhar desejante do outro. Seus autorretratos aprisionados nas formas femininas hiperfetichizadas, nas representações clássicas da história da arte nunca, são apenas a configuração de um campo de tensões que a todo momento pode explodir. Porque a experiência do sexual migra continuamente para aquilo que desestabiliza nossos sistemas de imagens, que saem para fora dos frames das cenas, como algo naturalmente ob-cena. Há sempre aquilo que des-identifica no sexual. E uma das mais impressionantes compreensões de Jacques Lacan foi exatamente esta, a saber, a ideia de que: “A sexualidade é exatamente este território onde não sabemos como nos situar a respeito do que é verdadeiro”.
Por isso, mesmo a ideia de “expressar” pede um esforço suplementar de destituição. Normalmente, entendemos por “expressão” a exteriorização de determinações psicológicas de uma egoidade, sejam elas sentimentos, julgamentos ou vontades. Mas talvez devamos admitir que a experiência do sexual nos coloca diante de algo que não sabemos exatamente como expressar, pois coloca em questão a própria gramática de nossas expressões. Há nesse sentido sempre uma força de destituição na emergência do sexual. Uma destituição que não é alguma forma de estetização deceptiva do fracasso, mas maneira de afirmar que o contato dos corpos, quando eles ocorrem, sempre nos retira da nossa posição de indivíduos. O contato dos corpos é a abertura para um regime de existência confusa, de limites em desabamento, de determinações impróprias nas quais angústia e gozo aparecem indissociáveis.