Durante sua residência na AnnexB, em Nova York, Mano Penalva escolheu alguns espaços públicos para criar “desenhos” temporários, usando garrafas plásticas de água vazias que coletou durante sua visita, conferindo um caráter performático para suas ações em parques e calçadas da cidade, que aconteceram em 2018. Uma das regras dessa performance, intitulada Desenhos Interessados, era que Penalva arrumava as garrafas de plástico no chão, lado a lado, formando uma linha. Em seguida, o artista tinha que pegar uma garrafa do final da fila e colocá-la na outra extremidade para que assim a linha “caminhasse” pelos espaços públicos. Penalva alterava a organização dos desenhos a partir do grau de interesse e interações dos pedestres, fossem atos de contemplação ou alguma reação negativa. Ao atuar no espaço fechado de um parque, por exemplo, Penalva repetia pacientemente o gesto de movimentar as garrafas plásticas até que seu desenho o levasse a sair daquele espaço determinado e ele percebesse que a ação tinha atingido seu máximo grau de interesse, pela exaustão devido à repetição e ao tempo prolongado.

As fotografias das performances, tiradas no Columbus Park, Manhattan e Morgan Avenue (BMT Canarsie Line), no Brooklyn, mostram a delicadeza dessa simples ação estética. Pode-se ver Penalva, com cerca de 1,9 m de altura, inclinando-se para as pequenas garrafas no chão, enquanto os frequentadores do parque olham seu gesto com curiosidade. O desenho sugere relações visuais adjacentes: por exemplo, uma relação entre a verticalidade do corpo de Penalva e a horizontalidade da fileira de garrafas de água. O volume e o peso de seu corpo contrastam com a vulnerabilidade dos objetos vazios que caem com facilidade conforme o vento sopra com mais força, ou quando os transeuntes os chutam involuntariamente (ou intencionalmente).
Outras associações estéticas são formadas entre a linha “estrangeira” de garrafas e a paisagem original ou projeto arquitetônico do espaço público, já que, dependendo da configuração espacial, Penalva traçava linhas curvas, tortas ou retas que conversavam e alteravam temporariamente o desenho fixo do lugar. Por outro lado, os objetos plásticos, postos em fila, frequentemente formavam uma pequena barreira, não obstruindo o trânsito completamente, mas alterando as rotas que as pessoas poderiam tomar para se moverem naquele espaço. O desenho também delineava ou enfatizava elementos preexistentes no parque, como um caminho ou uma grade de jardim. Além disso, uma terceira relação estética se dava pelo contraste da fila de garrafas com os corpos dos transeuntes: havia aqueles que apenas observavam a construção do desenho de longe, enquanto outros frequentadores do parque interagiam de fato com o artista durante a performance, oferecendo garrafas adicionais à composição.
Penalva frequentemente constrói obras a partir de objetos que tiveram vidas anteriores como mercadorias. Ele costuma usar materiais “baratos”, como sacolas de náilon, sacos de ráfia, tapetes de borracha, tubos de plástico e até mesmo embalagens de Cheetos, ou objetos comprados em mercados populares ou informais, para criar composições tridimensionais – esculturais ou pintadas. Quando seus objetos habitam o cubo branco, eles flertam com as maneiras que artistas como Marcel Duchamp ou Andy Warhol usaram found objects. Seu diálogo, no entanto, não é com a mercadoria que é chamada de arte para se tornar um ready-made e nem sua prática é simplesmente uma crítica (ou celebração) da cultura capitalista, como eram algumas das poéticas Pop dos EUA. Penalva está interessado sempre na estética, mas o significado do seu trabalho se expande para os circuitos de troca dos quais esses objetos ou materiais participam, enquanto usados como mercadorias.
Nos Desenhos Interessados, é como se Penalva desse um novo significado para um objeto commodity – a garrafa de água. Colocadas em um arranjo estético, ocupando o espaço público como um grupo, os plásticos vazios continuam carregando o significado de nutrir a necessidade humana básica de hidratação. No entanto, como nos lembra o artista, em um sistema capitalista global, as garrafas de água como commodities também adquiriram outras camadas de significado: são feitas para se parecerem com produtos luxuosos, usados globalmente quase como lembranças turísticas que são descartáveis, consumidas rapidamente. Ao selecioná-las, arrumando-as e apresentando-as como uma espécie de “desenho social”, Penalva chama a atenção para sua aparência – a delicadeza de sua transparência azulada, a variedade de formas que assumem, a vulnerabilidade veiculada por um objeto levíssimo –, mas ele sugere também uma mudança na forma como vemos e atribuímos significado a esses objetos. A graciosidade do seu gesto, criando a partir de um “produto” cotidiano formas “inusitadas”, prolonga ainda a vida destes objetos, possibilitando relações estéticas e simbólicas que passam a existir para além da sua formação capitalista e aprisionamento. Os frequentadores do parque não olham apenas para a ação de Penalva, mas prestam atenção ao que podem fazer com esses suportes esquecidos.

Na Morgan Avenue (BMT Canarsie Line), no Brooklyn, Penalva interagiu com o público que ocupava o espaço da rua todos os dias e, nessas áreas de trânsito altamente disputadas, os Desenhos Interessados se tornaram atos desafiadores. Ali, a performance exigia que os passageiros do metrô lidassem com um tipo de obstáculo inusitado: um artista criando uma fileira de garrafas plásticas de água, decidindo utilizar a calçada de uma forma que não condizia com o uso cotidiano daquela rua. Alguns apenas chutaram os objetos, outros seguiram em frente sem parar para olhar. Vendedores ambulantes, que permaneceram naquele espaço por mais tempo, assistiram à ação de forma contenciosa, zombando dela, tentando defini-la ou alterá-la através de intervenções diretas no desenho: alguns vendedores até removeram algumas garrafas. Essas interações revelaram o poder da ruptura da ação com a normalidade. Uma linha simples e efêmera de garrafas criou uma interrupção inesperada no fluxo de pessoas e bens daquele lugar específico, expondo hierarquias informais criadas por diferentes classes sociais, que usam e disputam os espaços das cidades globais.
Em certo sentido, a obra de Penalva dialoga com as práticas de David Hammons e Felix González-Torres, pela maneira como propõe transformações precisas por meio de combinações ou arranjos simples de objetos e materiais. Como uma referência à Bliz-aard Ball Sale (1983), de David Hammons, no trabalho Garden For David Hammons, realizado na Cidade do México, Penalva vendeu tampas de plástico coloridas para ralos de chuveiro em forma de flores, intervindo nos espaços ocupados por vendedores ambulantes: as conversas que ele mantinha com moradores ou transeuntes interessados em sua “arte-produto” também completavam a obra. Assim, enquanto os diálogos formados em torno de obras como Desenhos Interessados reverberam em espaços, mercados e sistemas de commodities que são globais, o trabalho de Penalva toca em particularidades que são locais: as maneiras pelas quais uma cultura específica abraça um objeto, ativando relações afetivas.
Seus Desenhos Interessados também poderiam ser colocados em diálogo com a prática do artista brasileiro Cildo Meireles, cujas primeiras “inserções em circuitos ideológicos” tratavam da forma como certas commodities – como a garrafa de Coca-Cola – podiam ser utilizadas no combate à repressão e à ditadura militar no Brasil. Meireles interveio diretamente em um circuito de comunicação de massa, combinando os signos da arte e da mercadoria, para transmitir mensagens textuais que alertavam contra a censura da autocracia. No caso de Penalva, o objetivo não é definir ou ditar mensagens específicas a seus espectadores: ele não busca repassar uma informação, ou mensagem , mas um novo modo de encantamento em torno dos objetos mais comuns. Assim, Penalva não espera subverter o capitalismo e tampouco busca a redenção dessas peças, mas extrai e alimenta a maneira como a cultura – e, portanto, a arte – as transforma radicalmente. Os Desenhos Interessados são objetos cheios de vida. Eles são revigorados e devolvidos ao público com um outro propósito: tornam-se presentes.

O poder dos presentes em nossos tempos é frequentemente esquecido: ele é um vínculo, uma conexão entre quem dá e quem recebe. Dentro da oferta de presentes, existem subcategorias: o presente não solicitado, o presente indesejado e o presente devolvido. Seguindo estudos antropológicos anteriores, em seu livro The Gift, Marcel Mauss estudou os sistemas de doação e troca de presentes nas sociedades indígenas da América do Norte e do Sul. Mauss argumentou que dar um presente, dentro dos sistemas de troca dessas sociedades, sempre exigiu um tipo de reciprocidade. Para ele, o presente não fazia parte de um sistema baseado em simples altruísmo; em vez disso, desencadeava ciclos de compromissos, dívidas de honra que deveriam ser “pagas” mais tarde.
No poema Eneida, de Virgílio, os troianos aceitaram o cavalo de madeira grego como um prenúncio de sua vitória e, atraídos pelo tamanho da escultura e seu artesanato requintado, eles a levaram para a cidadela. Mas, durante a noite, enquanto dormiam, os guerreiros gregos que estavam escondidos dentro do cavalo escaparam, invadiram, saquearam e destruíram as casas troianas. O presente, que havia sido visto inicialmente como um gesto de submissão grega, mudou as posições de poder na guerra e resultou na reversão do triunfo inicial dos troianos.
Em comparação com o Cavalo de Tróia, Desenhos Interessados pode parecer um gesto inofensivo, mas o poder da obra vem de sua sutileza: uma oferta efêmera que produz vínculos entre os objetos e um público que não estava à espera desses presentes. Se o vínculo que Desenhos Interessados propõe é delicado e transitório, ainda assim gera uma espécie de magia. Não o “truque de mágica” ou os efeitos de ilusão de alta tecnologia, em vez disso, a magia antiga do objeto que acontece por meio de laços materiais e espirituais. Mas, como Mauss nos lembra, um presente gratuito não existe e para que essa magia funcione é necessário darmos algo em troca à obra. Talvez o que Penalva nos peça é que tomemos consciência de nosso próprio ritmo e vejamos outras maneiras pelas quais os objetos podem nos encantar.
Tatiane Schilaro é doutoranda, crítica de arte, historiadora e curadora independente. Possui Mestrado em Crítica de Arte e Redação da School of Visual Arts; Mestrado em História da Arte, Arte Contemporânea pelo Sotheby’s Institute of Art; e foi aluna do Programa de Estudos Independentes do Whitney Museum de 2018/19. Foi diretora criativa e curadora da residência artística AnnexB-NY e professora visitante do San Francisco Art Institute, na Califórnia, e da John Jay College of Criminal Justice, em Nova York.