Durante o mês de março, a Casa do Povo recebe o coletivo indonésio Taring Padi para residência artística com o apoio da instituição artística holandesa Framer Framed e em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes do Movimento Sem Terra (MST). A residência, intitulada Rebut Tanah Kita (Retomada da Terra), maneja assuntos que conectam o Taring Padi com o MST: reforma agrária, questionamentos sobre o uso da terra e colonização.
A Escola Nacional Florestan Fernandes, para onde o grupo seguiu no final de março para permanecer por três semanas, se situa em Guararema, no interior paulista. Foi inaugurada em 2005 a partir da colaboração de voluntários e trabalhadores sem terra e tem recursos para a manutenção e funcionamento obtidos por financiamentos de projetos nacionais e internacionais, doações e colaborações. A Framer Framed, instituição holandesa que viabiliza financeiramente a residência, é patrocinada pelo Ministério da Educação, da Cultura e da Ciência da Holanda (MinOCW) e pelo Fundo para as Artes de Amsterdã (AfK). Outras instituições paulistanas acolhem atividades do Taring Padi, como oficinas de xilogravura na Oficina Cultural Oswald de Andrade e uma aula aberta na Escola da Cidade, ambas no final de março.
OFICINA DE FANTOCHES
No último dia 30, a Casa do Povo promoveu uma oficina orientada pelo Taring Padi para produzir wayang kardus, fantoches de papelão que protagonizam ações políticas do coletivo em seus protestos pelo mundo. Utilizada não somente como ferramentas de denúncia e protesto, a prática incentiva a liberdade criativa e a possibilidade de pensar criticamente a política de forma narrativa: os fantoches são meios de contar histórias, movimentando engrenagens milenares das tradições culturais populares javanesas.
No primeiro andar da Casa do Povo, o grande espaço estava repleto de placas de papelão, tintas das mais diversas cores, estiletes, colas, barbantes, gizes e ripas de madeira. Orientações foram dadas por membros do Taring Padi que incentivavam a expansão dos pensamentos criativos, embora não conduzissem de forma direta: valiam formas abstratas, figurativas e palavras, assim como os participantes ficavam livres para decidir sobre os materiais que utilizariam e se fariam seus fantoches-cartazes individual ou coletivamente, em duplas ou pequenos grupos que se agregavam de forma espontânea. Algumas pessoas conversavam, tomavam café e tocavam instrumentos musicais.
Nessa ocasião, pude produzir um fantoche de papelão – um beija-flor que, por sugestão de Aris Prawaba, membro-fundador do Taring Padi, poderia ter outro que o acompanhasse indo na mesma direção que ele; ou indo em uma direção oposta, demonstrando sensos de individualidade dentro de um diálogo comunitário – e conversar com Prawaba e com o diretor artístico da Casa do Povo, Benjamin Seroussi.
Acerca do senso de comunidade partilhado e da diversidade de lutas políticas pelo planeta, perguntei a Prawaba como o Taring Padi se adapta às especificidades locais dos coletivos com quem colabora, agregando forças permeáveis às singularidades do MST, por exemplo. O artista-ativista respondeu: “Por sermos indonésios, também vivemos em zona tropical, onde há muita agricultura. No coletivo, trabalhamos com agricultores, operários, com a população urbana pobre e com povos indígenas para apresentar a arte como ferramenta para expressar os protestos. Também temos muitos problemas com empresas mineradoras e comunidades removidas, por exemplo. Há algumas similaridades com o Brasil e similaridades específicas com o MST. Não somos trabalhadores do campo, mas somos artistas e ativistas, e amamos conhecer, aprender e compartilhar com a nossa comunidade em qualquer lugar”.
PONTES INSTITUCIONAIS E AMPLIFICAÇÃO DE VOZES
Acerca da união entre a Casa do Povo, o Taring Padi e o MST, Seroussi propõe uma analogia com as tradições judaicas: “Na cultura judaica, o casamenteiro é shiduch. O que a gente fez é um schiduch, um casamento entre Taring Padi e MST”, relata em entrevista à seLecT_ceLesTe. O diretor explica as origens dessa conexão: “A relação com o Taring Padi se criou através de várias coisas. Eu pessoalmente já trabalhei com o ruangrupa, o coletivo da documenta [15]; a Casa do Povo montou o roteiro de pesquisa para o ruangrupa no Brasil, de viagem e de pesquisa online, e isso gerou uma proximidade maior com o projeto da documenta. E daí teve aquele escândalo sobre antissemitismo etc., e a gente acabou sendo envolvido. Umas pessoas queriam usar a gente – como a gente não foi convidado como espaço para participar da documenta – como argumento para fortalecer a acusação de antissemitismo contra o ruangrupa, o Taring Padi e a documenta. Acho que isso acabou nos aproximando, na verdade, porque a gente sabe que não é verdade”, explica Seroussi.
O diretor da instituição que, dentre diversas outras frentes, atua na resistência e na promoção da cultura judaica, continua: “Então gerou mais complexidade ainda. E quando eu de fato fui à documenta [15], eles [Taring Padi] tinham um espaço, um prédio inteiro, com o trabalho deles lá e foi super interessante, porque de cara dialoga muito com algumas coisas que a gente faz na Casa. O próprio ruangrupa tinha avisado a gente que tinha uma relação interessante a ser feita com o Parquinho Gráfico, que é esse lugar da casa que cuida e trabalha com produção gráfica. Quando eu cheguei lá, era muito próximo dessa estética. E relembrava também muito uma estética sul-americana, ou até latino-americana, do Rivera, o Portinari, a gente reencontrava ali com uma coisa que dialogava com a produção artística local só que passando no moinho de uma outra cultura local, da cultura punk, da cultura anarquista, das lutas populares. Então tinha uma invenção de formas que era interessante. A gente tem uma relação com o MST na Casa, somos um ponto de distribuição de verduras e legumes do MST, e a gente também já os convidou a participarem de algumas ações na Casa. E, na hora que vi os trabalhos lá [do Taring Padi na documenta 15], achei que seria maravilhoso de fato trazê-los para pensar alguma ação com a Casa no contexto brasileiro. Mas já que eles falam muito de terra, de luta por terra, de reforma agrária, fazer com o MST, que tem interesse muito grande em produção artística. Acabei dando uma palestra em Amsterdã no Framer Framed sobre toda aquela percepção equivocada sobre antissemitismo e, no final, o pessoal do Framer Framed me chamou para conversar”.
Como catalisador artístico nas colaborações do MST com a Casa do Povo, Seroussi diz: “Interessa também provocar o MST para outros lugares, e eles estão interessados nisso. Colaboraram com o Benjamin de Burca e a Bárbara Wagner, agora estão colaborando com o Milo Rau, que é um diretor belga muito importante do teatro. Então o MST está aberto para essas provocações, de ter uma participação de artistas que têm práticas que talvez podem parecer menos militantes, mas mais aliadas com o que se discute hoje no mundo das artes.”
Seroussi destaca que o cerne de suas ações está no diálogo e na troca, o que conecta também com os valores e as práticas de quem está conectando: “E, de certa maneira, voltando para essa polêmica, era para também conversar, trocar, para cuidar disso, mas não de um jeito sensacionalista, mas a partir de encontros reais. Muitas pessoas me escreveram questionando sobre termos convidado o grupo depois dessa questão, mas eu respondia que eles são mais complexos do que isso, que têm uma produção artística muito interessante. Vamos conversar. A gente vive um momento em que tudo vira produto ou vira notícia… o nosso trabalho é produzir conhecimento, nem produto, nem notícia. E isso é um trabalho mais fundo, mais silencioso.”
A POLÊMICA
“A polêmica” a que Seroussi se refere diz respeito a imagens antissemitas na instalação People’s Justice, produzida pelo coletivo Taring Padi e exibida em um paredão de andaimes no centro de Kassel, na Alemanha, durante a documenta 15, em 2022. Em meio a vários desenhos no grande mural, encontrava-se um soldado com o nome do serviço de espionagem israelense escrito no capacete, focinho de porco e, no pescoço, um lenço vermelho com uma estrela-de-Davi. A personagem marcha com outros associados a forças repressivas e organizações de serviços secretos, portando armas nas mãos e cercados por mísseis e tanques de guerra.
Quando do escândalo, a artista e professora Giselle Beiguelman escreveu para a Folha de S.Paulo: “A ofensa não remete só ao fato de a religião proibir nas suas regras de alimentação a ingestão do porco, mas a um dos mais ultrajantes símbolos do antissemitismo, a Judensau – a porca judia. Presente em gravuras diversas e esculpida em dezenas de igrejas alemãs e de outros países europeus, a imagem circula desde o século 13. Nela, judeus mamam em suas tetas, enquanto um rabino olha indecorosamente por debaixo de seu rabo. Fazia parte da pedagogia nazista levar crianças para ver uma Judensau e se educar para um mundo mais antissemita”.
Há, além dessa, outra figura crítica na mesma obra: um homem com peiot – cachos de cabelo laterais tradicionalmente usados por judeus ortodoxos –, em traje executivo formal, com olhos vermelhos, sorriso com dentes pontiagudos e um chapéu preto com o símbolo da Schutzstaffel, a SS, organização militar da Alemanha Nazista responsável pelo assassinato de milhões de judeus no holocausto, além de sinti, comunistas e homossexuais.
Retomo Beiguelman: “A retórica visual antissemita da obra é inegável. […] A tendência geral é circunscrever que o fato é grave porque aconteceu na Alemanha. A memória traumática da Segunda Guerra é sem dúvida um elemento simbólico nada desprezível nesse contexto. Mas a gravidade do caso é a presença e o aumento do antissemitismo no mundo contemporâneo e a forma como seu imaginário retorna. […] Antissemitismo é um discurso de ódio que prega a discriminação e hostilidade contra os judeus e se arroga o direito de exercer a violência contra judeus como judeus. Para tanto, mobiliza imagens e estereótipos que remontam às Cruzadas do século 11 e historicamente justificaram todas as perseguições que, não poucas vezes, resultaram em massacres e genocídios de judeus, como a Inquisição Ibérica, os pogroms dos países do leste europeu e o Holocausto nazista. Imagens como as que circularam brevemente na 15ª Documenta não são esporádicas. Estão presentes aos quatrilhões de bytes na internet e por todas as esquinas do planeta. São como o ovo da serpente e, como já aprendemos com o cineasta Ingmar Bergman, por meio da sua fina membrana é possível ver o réptil inteiramente formado. Reconhecer e enfrentar o antissemitismo, para além do caso específico dessa exposição, é um ponto de partida para tentar compreender como isso se irradia pelos mais variados contextos sociais, inclusive o circuito das artes visuais”.
COMPLEXIDADES E CONTRADIÇÕES ENTRE COLETIVIDADE, INDIVIDUALIDADE, CENSURA E LIBERDADE DE EXPRESSÃO
A situação resultou em retratações públicas e pedidos de desculpas em todas as instâncias, desde o próprio Taring Padi até o coletivo ruangrupa – que estava à frente da direção curatorial –; da diretoria da documenta ao Ministério da Cultura da Alemanha. Embora a obra tenha sido retirada, foi crucial ouvir de Aris Prawaba posicionamentos contraditórios: por mais que reconheça o erro, argumente sobre o cuidado e defenda princípios antirracistas, Prawaba atesta certo desconhecimento sobre a história da Alemanha na Indonésia, a dureza da censura e vontade de exibir a supracitada obra em outra ocasião.
Durante a conversa com Prawaba, destaquei que o Taring Padi e o MST comungam de um senso de partilha e de comunidade alinhado à luta política, e que há uma centralidade das pautas ecológicas e do uso e da propriedade de solo nas discussões políticas no Brasil e na Indonésia que são negligenciadas por muitos outros países, como alguns no cenário europeu. Apesar de, em muitos momentos, o coletivo indonésio denunciar países que perpetuam sistemas colonizadores de poder, conseguem ajudar grupos nessas nações a protestarem sobre outros tópicos, separando as coisas. Perguntei se o que fazia a amizade, na sua opinião, era a oportunidade de diálogo ou a concordância de discurso, e Prawaba respondeu: “Diálogo. Podemos ser amigos das pessoas contra as quais protestamos, contanto que possamos dialogar, entender. Em todo lugar há pessoas, humanos, em qualquer lugar do mundo. Podemos conversar, compartilhar, dialogar”.
Sem perguntar sobre o episódio em Kassel, tanto Prawaba quanto Benjamin Seroussi, diretor artístico da Casa do Povo, trouxeram-no à tona – havia me restringido às perguntas sobre política e ecologia e aos vínculos do coletivo com o MST, apenas porque a questão da documenta já me parecia respondida, embora não resolvida. Sobre o assunto, Prawaba diz: “Desde o… você deve ter ouvido sobre o caso na documenta 15. Eles dizem ‘não há censura’. E nós reclamamos sobre isso, nós temos diferentes contextos históricos, diferentes expressões, diferentes formas de pintar imagens. Nós temos uma história de muito tempo que eles podem não saber, ou negar, ou esquecer, mas nós nunca esquecemos. Nós temos nossa própria história. Por que eles não podem dialogar conosco? Alemães são muito diretos: ‘olha, eu não gosto disso, daquilo…’, sem nem nos permitir explicar sobre o que aquela imagem é. Se eles são abertos, sem censura, tudo fica bem, não há problema. Mas eles estão sempre ‘você desenhou isso, uma parte desse movimento, dessa história…’. Coletivamente, nossa cultura é de não controlar ninguém, você pode expressar o que quiser. E a imagem nos cartazes, eu não sei quantas pessoas pintaram ali. Aquele trabalho foi exibido na China, na Austrália, na Indonésia, e não teve problema. Apenas na Alemanha eles implicaram. Nós não somos antissemitas, somo contra o racismo, somos a favor da comunidade LGBT, a favor dos povos indígenas… nós sabemos que ser racista não é algo bom. Nós sofremos muito com o racismo e não queremos machucar ninguém. Nós só criticamos.”
Perguntei de que modo ele enxergava o erro, mesmo com o pedido de desculpas. Prawaba respondeu: “Sempre há erros, em qualquer lugar, depende do ponto de vista. Achamos isso, nos desculpamos, escrevemos uma declaração depois disso acontecer. A história da Alemanha não é grande na Indonésia. Nós temos nossa própria cultura, nossos próprios problemas; nós pedimos desculpas, e para eles não é o suficiente. Do lado [no trabalho exposto na documenta] tinha um símbolo antinazista. Nós temos inimigos até do Islã na Indonésia. Eles nos atacaram, mataram um de nossos membros”. O final desse comentário de Prawaba concerne à ideia de que se defendia a Palestina no conflito geopolítico, tópico agitado pelas inúmeras discussões despontadas quando do desmonte do trabalho.
Finalmente, perguntei o que haviam feito com o trabalho após a retirada. Prawaba disse: “Ah, nós o guardamos. Nós podemos… nós vamos exibi-lo novamente. Disseram ‘vocês não devem exibir esse trabalho em nenhum lugar’. ‘Vocês estão nos controlando? É nosso o trabalho’”.
RETROGOSTO DA LIBERDADE
A resposta de Prawaba sobre o trabalho ainda permanecer guardado e, além disso, de haver vontade de exibi-lo novamente desponta um espelhamento crítico do coletivo e das ambiguidades que estruturam todo o polêmico debate: por um lado, se isenta ao declarar que não tem controle do que é expresso por um grupo de pessoas no caso da documenta, do mesmo modo que ele, como indivíduo, não responde pelo coletivo quando diz que quer reexibir o trabalho. Nesse modelo amalgamado entre indivíduo e coletividade, de que forma podem ser guardadas as responsabilidades individuais e coletivas que de fato garantam a liberdade de expressão e a luta contra a censura? Afinal, um modelo sociopolítico sem responsabilidades sociais é insustentável quanto à guarda das liberdades individuais.
Se faz necessário, ademais, situar o debate no contexto atual, onde pedidos de desculpas surtem efeitos heterogêneos na era do cancelamento digital – que pouco pega em homens brancos mas estigmatiza minorias sociais, corpos dissidentes e pessoas periféricas – e que não lidam de forma saudável com as noções de arrependimento, aprendizado e reinserção social de posicionamentos revisitados.
Por mais que a ideia de que o polêmico trabalho do Taring Padi se mantém íntegro cause inquietações éticas, se questiona se a dissolução material do objeto artístico em sua fisicalidade cumprirá algum resultado, posto que milhões de pessoas já foram mortas, e se continuam ideais que, mesmo que de maneira satírica, inflamam práticas de intolerância ao redor do mundo. As estéticas da memória friccionam as noções de patrimonialidade, e a cultura visual deixou há tempos de existir apenas na materialidade.
É certo que os muros do cancelamento não se dissolvem na mesma velocidade que se deitam os monumentos que incitam a queda de pessoas e culturas. A midiatização do que se escolhe preservar ou derrubar fragmenta em milhares de pedaços espelhados as hegemônicas noções sobre patrimônio que orbitam em torno da perenidade, construindo estéticas da memória a partir de imagens reverberadas, infectadas e pulverizadas. Não ver, por vezes, não significa não lembrar – o que reforça a ideia de que a destruição física do patrimônio não é mais solução última –, mas a própria ausência pode ser sinal de lembrança, como no caso do antissemitismo histórico.
Embora as atitudes de parceria entre o Taring Padi e instituições brasileiras – como a Casa do Povo, o MST, a Escola da Cidade e a Oficina Cultural Oswald de Andrade – sejam louváveis por compartilharem essências de comunidade, de contestação política e de práticas artísticas, não devem ser negligenciados posicionamentos críticos que se camuflam em noções expiatórias e borradas de coletividade, nem mesmo em bases ideológicas de liberdade política sem responsabilidade social.