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Em Refino #2 (2017), uma cascata de açúcar cai sobre o corpo do artista Tiago Sant’Ana no antigo Engenho de Oiteiro, no Recôncavo Baiano (Foto: Cortesia do artista)
Postado em 19/03/2020 - 10:53
Deste em dar tanto açúcar excelente*
Ayrson Heráclito, Tiago Sant'ana, Caetano Dias, Denilson Baniwa, Ieda Oliveira e o açúcar como alegoria do trabalho exploratório
Luana Fortes

*Verso do poema À Cidade da Bahia, de Gregório de Matos

Pivô da colonização portuguesa, cúmplice da escravidão e símbolo da perpetuação da desigualdade social, o açúcar permeia toda a história deste país, desde que passou a ser conhecido como Brasil. O plantio da cana chegou com os portugueses e multiplicou-se especialmente nas capitanias de Pernambuco e da Bahia. Não demorou para que se tornasse motor da economia colonial brasileira. A produção do alimento é até hoje de extrema relevância para o PIB nacional, sendo o Brasil um dos principais exportadores de açúcar do mundo, e as usinas de cana contemporâneas são conhecidamente terrenos de condições precárias de trabalho e saúde, especialmente na lavoura.

Nos processos de produção do açúcar, tanto do período colonial como da atualidade, podem ser encontrados símbolos da (des)organização social e racial brasileira. Em 2009, o Museu de Arte Moderna da Bahia (instalado no Solar do Unhão, epicentro do sistema escravagista baiano) apresentou a coletiva Saccharum-BA, curada por Alejandra Muñoz, que abordava as diferentes facetas do açúcar a partir do trabalho de artistas brasileiros e estrangeiros. “O canavial é um paradoxo cultural. É o âmbito da resistência e da submissão de milhões de seres humanos através dos séculos. É a perspectiva do poder vinculado às fontes renováveis de energia. Mas os plantios de cana e seus derivados podem ser também uma possibilidade poética e subliminar que parece permear o olhar e a reflexão artística.”

Este recorte de trabalhos, realizado por seLecT, se alinha às possibilidades poéticas apontadas pela curadora e pretende problematizar a história do açúcar e os resquícios da organização produtiva baseada na sua exploração.

Segredos Internos (1994), de Ayrson Heráclito, na exposição Saccharum-BA, no MAM da Bahia (Foto: Fernando Souza)

Branco, mascavo ou barreado
Considerada por Ayrson Heráclito como a síntese de sua dissertação de mestrado, a instalação Segredos Internos (1994) também sintetiza a lógica de funcionamento dos engenhos de açúcar coloniais e da estratificação social. A pesquisa do artista teve como ponto de partida a leitura de Alfredo Bosi, em Dialética da Colonização (1992), sobre o poema À Cidade da Bahia, de Gregório de Matos (1636-1696). “Essa instalação inaugura a minha fase que trata o açúcar, que de doce não tinha nada”, diz o artista.

O poema representado alegoricamente na obra de Heráclito trata do declínio do antigo Estado no Brasil, vinculado à aristocracia açucareira e à nobreza portuguesa, e a ascensão da burguesia. Naquele momento, a família real portuguesa chegava ao Brasil, fugindo das tropas napoleônicas com ajuda da frota inglesa, e abria os portos às nações amigas. “É justamente nesse momento que toda essa dramaturgia do que nos constitui como brasileiros começa a se formar. É um marco que também vai definir o fim da escravatura”, afirma Heráclito.

A instalação representa esse momento simbólico na figura de um barco de madeira e da estrutura de uma casa de purgar, que era o local do engenho onde se fazia o pão de açúcar, uma forma escultórica que combina açúcar branco, mascavo e barreado, de onde se tirou o nome para o ponto turístico carioca. A casa de purgar da obra traz gavetas com os três tipos de açúcar, em uma ordem representativa das lógicas sociais da época. “Essas gavetas têm o intuito de remeter às três caras da estratificação social. A gaveta mais alta é tomada pelo açúcar branco, que era despachado para a clientela portuguesa na Europa. A intermediária traz o mascavo, consumido pelos senhores de engenho. E a mais baixa, relativa ao que era dado aos escravizados, tem açúcar barreado, ou seja, a parte do pão de açúcar que acabava misturada com barro”, descreve.

Registro da performance Pão de Açúcar (2019), de Tiago Sant’Ana (Foto: Marcio Lima)

Soterramento de narrativas
A imagem do pão de açúcar também aparece na obra de Tiago Sant’Ana, que é bastante caracterizada por ações com fins ritualísticos. Na performance Pão de Açúcar (2018), o artista constrói o objeto que intitula o trabalho com ferro e latão, pule a escultura e a posiciona sobre uma estrutura de ferro que era usada para torturar pessoas escravizadas. As ações de Sant’Ana tratam da naturalização de associações entre papéis laborais e pessoas negras nos dias de hoje.

Os lugares onde acontecem seus trabalhos são partes constituintes de cada proposta. Sua pesquisa em relação ao açúcar se estende por grande parte da produção e foi iniciada quando encontrou um dos volumes do Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia (déc. 1970), que compila engenhos de açúcar no Brasil, dando muitos dados técnicos e poucos aspectos humanos. “Adotei como metodologia fazer uma espécie de cartografia desses engenhos, mas pensando-os não sob uma ótica puramente técnica, e sim como geografias da dor e do racismo”, conta Sant’Ana.

Em Açúcar Sobre Capela (2018), o artista cobre com 100 quilos de açúcar as ruínas da Capela de Nossa Senhora do Vencimento, em São Francisco do Conde (BA), que pertencia ao antigo engenho Paramirim. “Essas ruínas têm em sua dinâmica um duplo silêncio – primeiro, o físico, já que são lugares geralmente isolados, e, segundo, um silêncio produzido historicamente por um soterramento das narrativas, memórias e histórias de pessoas negras executado com camadas de açúcar, sangue e massapê”, diz.

Pinturas da série Peso Líquido (2009), de Ieda Oliveira (Foto: Marcio Lima)

A mercadoria no museu
Ieda Oliveira atenta para a comercialização do açúcar nos dias de hoje. Criada em Varzedo, na Bahia, ela cresceu entre a fazenda de cana do avô materno e o armazém de produtos gerais de seus pais. Ieda ajudava a ensacar açúcar, em saquinhos timbrados com imagens de mulheres conduzindo carrinhos de supermercado. O trabalho Peso Líquido (2009), feito especialmente para a exposição Saccharum-BA, levava essas imagens dos sacos para telas de pintura. O trabalho era complementado por uma ação, em que Ieda se vestia tal qual as figuras das sacas e distribuía gratuitamente açúcar ao público. “Impressas nesses sacos de mercadoria as mulheres estão colocadas em uma situação de submissão. É a representação da dona de casa, da mulher que casava para servir à família, reproduzir, aceitar, cuidar do marido e dos filhos”, diz.

O armazém dos pais de Ieda Oliveira ainda influenciou o desenvolvimento de outro trabalho, chamado Vendo a Venda (2009), em que procurou remontar o ponto comercial no Museu de Arte Moderna da Bahia. “Ao contrário da vendinha deles, no MAM eu distribuía as coisas gratuitamente. Isso criava um estranhamento. A princípio, quando as pessoas entravam e se deparavam com esse ponto bem característico, elas queriam comprar. Quando eu doava, elas achavam muito esquisito”, relata a artista, que na abertura contou com a participação do pai e da mãe no trabalho. A cada dia, ela produzia um alimento diferente para distribuir e, ao final, doou todas as sobras para uma comunidade da Gamboa, próxima do museu.

Com esses mecanismos de doação e troca, a obra da artista endereça a lógica do capital contemporâneo responsável pela perpetuação da mão de obra precarizada e do trabalho exploratório. “Aqui, na Bahia, ainda exploram muito os boias-frias, que se submetem a regimes muito duros de trabalho pela situação atual, do desemprego. Às vezes, eles sobrevivem em situações muito precárias para servir a algum fazendeiro. Eu vejo isso, de certa forma, ainda como um regime escravo.”

A Primeira Missa no Brasil (2019), de Denilson Baniwa (Foto: Cortesia do artista)

Açúcar Guarani
A pintura A Primeira Missa no Brasil (1861), de Victor Meirelles, reforça uma narrativa equivocada sobre a história do País que leva a crer que as populações indígenas foram meros espectadores da colonização europeia. Para denotar à resistência indígena e as perdas que ocorreram por consequência dessa postura combativa, Denilson Baniwa faz uma releitura da pintura de Meirelles em 2019, em uma escultura também chamada A Primeira Missa no Brasil. Na obra de Baniwa, no entanto, uma cruz de madeira é relacionada à exploração dos povos indígenas a partir do uso de sacos de açúcar da marca Guarani. “Foi um choque saber que havia uma marca de açúcar usando o nome Guarani. Essa marca simboliza bem o que é colonização”, diz Baniwa.

Sua produção trata, sobretudo, das ameaças do agronegócio e da saúde indígena, que tem sofrido com o excesso de ingestão de açúcar e álcool. “Nos mercados, exposto para venda, o açúcar Guarani simboliza toda a violência exploratória secular, desde a tomada das terras dos Guarani para plantio da cana-de-açúcar, o uso da força de trabalho semiescravo dos indígenas, o roubo e uso da identidade e do nome indígena como propaganda, até o momento em que o produto volta ao corpo indígena em forma de domínio de seu corpo-saúde, reiniciando o ciclo de exploração”, afirma Baniwa.

Delírios de Catharina (2014) de Caetano Dias (Foto: Andrew Kemp)

Eucaristia  do corpo de Macunaíma
Permeada por procedimentos da fabulação, da antagonização e da subversão de significados, a obra de Caetano Dias costuma apresentar o açúcar em forma de rapadura em esculturas de corpos ou cabeças que integram propostas instalativas. Um de seus trabalhos mais emblemáticos é a representação de Cristo em cristais de açúcar, que aborda a encruzilhada entre mundano e sagrado. Dias teve uma formação católica bastante rígida que foi paulatinamente se dissipando, abrindo lugar para uma busca pela plenitude, a partir da perda de sentido e da vertigem. “Cheguei à eucaristia do corpo de Macunaíma, ou à autofagia enquanto processo de existência. Nesse momento, entra o açúcar como conceito na alegoria do corpo de um Cristo negro, reproduzido em rapadura. Esse corpo de cristais de açúcar é a encruzilhada onde tudo perde o sentido para ser pleno em seu caos”, diz o artista.

Em 2010, Caetano Dias foi convidado para propor um trabalho em uma exposição no Palácio da Aclamação, em Salvador, que é uma antiga casa de governo. Já que se tratava de um ano eleitoral e que o lugar onde ocorreria a mostra tinha essa carga simbólica, o artista decidiu fazer uma referência em Delírios de Catharina (2014) à história da ameríndia tupinambá Catharina Paraguaçu e o português Diogo Álvares Correia, conhecido como Caramuru. O casamento entre os dois teria tido um papel importante no início da dominação portuguesa e da catequização dos povos indígenas. “O termo delírios do título também faz referência ao sonho da negra da terra e também à orgia de sangue ocorrida na ocupação da Bahia e do Brasil na colonização e na inescrupulosa exploração da mão de obra escrava, que ainda perdura em muitas situações na atualidade”, complementa o artista. O trabalho é composto de 70 cabeças de açúcar, uma bancada de trabalho em madeira com torno de ferro e uma mesa manuelina sólida com sangue de boi e resina.