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The Naked City - Illustration de l'Hypothèse des Plaques Tournantes en Psychogeographique [A Cidade Nua - Ilustração da Hipótese das Placas Giratórias na Psicogeografia] (1957), cartaz de Guy Debord [Foto: Reprodução]
Postado em 29/04/2025 - 4:25
Desvio, deriva e outras propostas estético-políticas situacionistas

A Internacional Situacionista foi um grupo de vanguarda atuante na Europa entre os anos de 1957 e 1972. Fundada na itália, mas prioritariamente sediada na frança, congregou artistas, intelectuais e revolucionários de diversos países. Bastante marginal se comparada com outros grupos artísticos do período, era inteiramente avessa à mercantilização da arte, ou mesmo à arte como atividade especializada. A arte que propunham era experimental, a ser feita por todos em uma futura sociedade sem classes. Não à toa, o grupo deslocou-se paulatinamente do campo da arte para o da revolução, acreditando ser necessário acabar primeiro com a sociedade de classes, condição sem a qual toda arte seria apenas “pré-situacionista”. Por conta disso, convencionou-se dividir a história do grupo em dois períodos. De 1957 a 1962, o grupo conta com a presença importante de artistas, como os pintores Asger Jorn, Pinot Gallizio, Constant e Jacqueline de Jong, e entende que a experimentação artística cumpre papel central na transformação social. A partir de 1963, o grupo orienta-se para o debate político, elaborando uma teoria crítica da sociedade que encontra sua melhor expressão nos escritos de Guy Debord e Raoul Vaneigem. É nesse período que Debord elabora sua crítica da sociedade do espetáculo, apresentada em livro homônimo de 1967. As ideias situacionistas tornam-se então fermento importante do levante social de Maio de 68 na França. 

Dos anos iniciais da vanguarda situacionista provêm propostas estético-políticas orientadas, em alguma medida, por uma vontade de superação da arte. A primeira delas é a ideia de situação construída, que dá nome ao grupo. Uma noção nunca claramente formulada em termos práticos, mas que poderia ser resumida em usar a arte para criar conscientemente as situações a serem vividas. Definida como um “momento da vida, concreta e deliberadamente construído”, a situação tentava incorporar tanto a construção unitária do ambiente – isto é, congregando diferentes meios artísticos – quanto a organização de um conjunto de eventos que deveriam impulsionar uma experiência coletiva. De concepção dialética, essa proposta prognosticava que a transformação do mundo objetivo poderia produzir uma transformação dos sujeitos que o habitam. 

L’Avant-Garde se Rend Pas (1962), de Asger Jorn, da série Modificações [Foto: Reprodução/ Centre Pompidou]
Mas para se reorganizar o espaço era preciso, primeiro, conhecê-lo, e compreender sobretudo de que modo os sujeitos são afetados pelo mundo que os cerca. Não um mundo qualquer, mas um mundo moderno – aquele das cidades cujas formas, escreveu Baudelaire, “mudam mais rápido que os corações dos mortais”. Para entendê-lo os situacionistas criaram a psicogeografia, um “estudo dos efeitos precisos do meio geográfico, conscientemente preparado ou não, agindo diretamente sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”. Um estudo amparado pela prática da deriva, definida na revista do grupo como um “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica de passagem apressada através de ambientes variados.”    

Embora apresentados como termos próprios da Internacional Situacionista, deriva e psicogeografia eram conceitos que haviam começado a ser debatidos e elaborados alguns anos antes, em um grupo chamado Internacional Letrista, que tinha por figura central o mesmo Guy Debord. Colaborando com a revista surrealista belga Les Lèvres Nues, Debord já havia publicado dois textos sobre o tema: Introdução a uma Crítica da Geografia Urbana (1955) e Teoria da Deriva (1956). Os textos eram tentativas de elaboração de uma prática experimental que ocupava Debord e seus companheiros de grupo – como Gil Wolman, Ivan Chtcheglov e Michèle Bernstein – e que contava com a participação de outros jovens desocupados que mais tarde integrariam outros grupos artísticos – como os futuros “novo realistas” Jacques Villeglé e Raymond Hains. Essa geração de enfants perdus vagava pelas ruas de Paris, nos anos da reconstrução do pós-Guerra, experimentando uma curiosa forma de liberdade. Seriamente empenhados em fazer nada, no vagar desorientado e esvaziado de toda intenção utilitária, descortinavam uma nova relação com o espaço urbano. 

Se o capitalismo havia transformado o espaço e criado uma segunda natureza, agora era o momento de exploradores a desbravarem. A cidade não estava mais ali como mero suporte do trabalho e do consumo, mas como um vasto campo de possibilidades, no qual encontros e associações inusitadas poderiam emergir. Evidencia-se aqui um retorno das deambulações dadaístas e surrealistas do entreguerras, que buscavam fazer emergir o maravilhoso no cotidiano a partir do vagar orientado pelo acaso. Ao retomarem essa tradição, os situacionistas pretendiam, contudo, dar um passo além. O acaso era visto como insuficiente, como tendente a recair em novo hábito. Era necessária uma prática consciente da deriva. Métodos diferentes eram formulados para romper hábitos e impulsionar em direção ao inesperado, como percorrer uma cidade orientando-se com o mapa de outra; ou fixar um local e hora definidos para um “encontro possível” com um desconhecido. 

Cartaz do filme Pode a Dialética Quebrar Tijolos? (1973), dirigido por René Viênet [Reprodução/ Museu Jorn]
A deriva como método 

Essa exploração metódica, por sua vez, deveria proporcionar um conhecimento científico (de um tipo peculiar, é verdade). A psicogeografia era a nova ciência; a deriva, seu método. Os situacionistas acreditavam que seria possível conhecer a relação que os indivíduos estabelecem com a cidade. Mas não apenas nos sentidos que apontavam as ciências já existentes ou em formação (como a geografia e a sociologia urbana). Algo da ordem da psique, esfera normalmente entendida como subjetiva, deveria ser estudada como parte da estrutura objetiva do espaço urbano. Caberia à psicogeografia identificar as “unidades de ambiência” de cada cidade, e as tendências de deslocamento entre elas, conforme repertoriado pelas derivas e representado por uma nova cartografia de “mapas psicogeográficos”. 

É difícil dizer o quanto os situacionistas acreditavam na possibilidade de um conhecimento científico desse tipo – ou mesmo que tipo de ciência imaginavam, como críticos que eram da especialização dos saberes. Mas é um fato que lançavam luz sobre um completo ponto cego do urbanismo moderno, que, cioso de resolver as questões estruturais de habitação e circulação que afligiam as grandes cidades, desconsiderava por completo a relação afetiva com o espaço. Para os situacionistas, a experiência da deriva e os estudos da psicogeografia poderiam abrir caminho para uma nova concepção de organização do espaço urbano, radicalmente oposta ao funcionalismo moderno, e quiçá inspirar novas cidades: “Um dia, as cidades serão construídas para derivar”. 

Aquilo que Debord chamará depois de sociedade do espetáculo encontra um de seus melhores exemplos em cidades modeladas pelas necessidades de circulação de mercadorias (lembrando que, como apontou Marx, o trabalhador também é uma mercadoria), reestruturadas pelas necessidades do controle social, desfeitas pelos intentos da especulação ou petrificadas pelos interesses do turismo. Nada expõe melhor a alienação moderna do que a falta de controle coletivo sobre o espaço. 

Nada, a não ser, talvez, a alienação da linguagem e dos meios de representação da própria experiência. Esse é o ponto nevrálgico da teoria crítica que Debord apresenta em A Sociedade do Espetáculo (1967), identificando a separação crescente entre o vivido e a representação. E a crítica da alienação não era apresentada sem os meios para combatê-la: no mesmo livro, Debord escreve que “o desvio é a linguagem fluida da anti-ideologia”. 

Exemplo de deriva no livro de artista Memorias (1957), de Asger Jorn e Guy Debord [Foto: Reprodução]
Arma na batalha das representações

A noção de détournement, ou desvio, havia sido formulada pela primeira vez em um texto de 1956, intitulado Manual de Instruções do Desvio, coescrito por Guy Debord e Gil Wolman. Formalmente próximo da colagem e do readymade, o desvio era, contudo, inspirado pelo plágio de Lautréamont, escritor maldito do século 19 que em Poesias (1870) apropriava-se das máximas dos moralistas clássicos franceses, subvertendo seus sentidos originais. Menos um procedimento estético-formal, portanto, e mais um instrumento de disputa de sentidos, o desvio era apresentado como uma arma na batalha das representações. 

Se o espetáculo detinha o “monopólio da aparência”, o desvio era o recurso que poderia romper esse monopólio, apropriando-se de seus produtos e dando a eles um novo sentido. No entanto, Debord e Wolman acreditavam que uma simples inversão de sentidos nunca era de grande eficácia. Eles propunham formas de composição complexa que articulassem tipos diferentes de desvio, aquilo que chamavam de “desvios menores” e “desvios maiores”, isto é, apropriações de elementos de pouca importância, como recortes de jornais e revistas, e apropriações de elementos carregados de significações, como uma citação de Marx ou uma sequência de um filme de Eisenstein. Aqui entrava em cena um fator importante teorizado por Debord e Wolman. A eficácia do desvio, escreviam, seria proporcional ao reconhecimento, mesmo que confuso, do original e da modificação introduzida.  

O desvio foi experimentado de diferentes formas por diferentes membros da Internacional Situacionista. Asger Jorn pintava por cima de quadros comprados em mercados de pulgas. Wolman colava tiras de fitas adesivas em jornais e depois rearranjava as partes arrancadas sobre a tela. Nas revistas situacionistas, personagens de histórias em quadrinhos eram transformados em arautos da revolução. De modo semelhante, René Viénet transformava filmes de kung fu em alegorias da autonomia do proletariado. E Guy Debord, fiel à receita de uma composição complexa de desvios de diferentes hierarquias, combinava em seu cinema materiais diversos para “desviar o espetáculo em bloco”.

Embora mais perceptível no caso do desvio, a verdade é que todas as noções experimentais oferecidas pela IS devem ser entendidas como propostas antagônicas à submissão do espaço e da linguagem aos imperativos da “sociedade espetacular-mercantil”. Isso significa que semelhanças formais não bastam para que decretemos qualquer ação como uma situação, qualquer apropriação como um desvio, qualquer intervenção urbana como uma deriva. Essas noções se sustentam em sua negatividade, e tiram sua validade da relação que estabelecem com a sociedade que pretendem transformar. Que essa sociedade seja ainda hoje uma sociedade do espetáculo – fato mais perceptível do que há 50 anos – explica ao certo por que as proposições situacionistas permanecem atuais. 

“UM DIA, AS CIDADES SERÃO CONSTRUÍDAS PARA DERIVAR”