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Ondas Paradas de Probabilidade (1969), de Mira Schendel. Registro da montagem na 30ª Bienal de São Paulo em 2013 [Foto: Leo Eloy e Pedro Ivo Trasferetti]
Postado em 11/10/2024 - 3:11
dez exercícios de probabilidade

A instalação Ondas Paradas de Probabilidade foi concebida por Mira Schendel para a X Bienal de São Paulo em 1969, a “Bienal do Boicote”. A seguir, arrisco dez fragmentos que nomeio “exercício de probabilidade”, procurando me aproximar do trabalho. Produzindo uma tendência favorável para que alguma coisa aconteça, busco fazer com que alguma coisa mínima aconteça.

exercício de probabilidade i (descrição)

uma sala branca no pavilhão da bienal de são paulo. ocupando cinco metros quadrados, milhares de fios de náilon transparentes pendem do teto. mais compridos que o pé direito, os fios dobram-se sobre o chão em 30 cm. mais adiante, também pendurada desde o teto com fios de náilon, uma placa de acrílico, com a passagem bíblica do livro dos reis escrita em letraset, narra a busca do profeta elias pela voz de deus. “ondas paradas de probabilidade” o título da instalação. mira schendel a artista. 1969 o ano.

exercício de probabilidade ii (a pesquisa)

mira schendel escreve, apaixonadamente.
misteriosa escrita; visível, mas ilegível. como se dissesse: abandone a verdade, abandone a moralidade, abandone a rigidez, a seriedade, os conceitos pré construídos que convergem para um fim último. este texto quer jogar, despossuir, tem desejo de fala. tem desejo de felicidade, isso sim. uma onda. ao mesmo tempo em que deseja continuar a enunciar, a ecoar, almeja não ter mais o que dizer. ocupa um lugar entre os despropósitos, como sair de casa às cinco da tarde apenas para sentir melhor a brisa quente do verão. felicidade.

o senhor não estava no vento, nem no terremoto, nem no fogo. deus estava na voz de um suave sussurrar. é isso que narra a passagem escrita na placa de acrílico. deus não se apresenta nos grandes tremores, enchentes ou dilúvios, mas no quase silêncio de uma brisa graciosa. um toque quase imperceptível no rosto. alguns fios de cabelo saem do lugar.

[Foto: Leo Eloy e Pedro Ivo Trasferetti]

exercício de probabilidade iii (texto)

fiar é escrever

etimologicamente, a palavra ‘texto’ quer dizer tecido, e a palavra ‘linha’, um fio de tecido de linho. textos são tecidos inacabados, feitos de linhas não conectadas em tramas.

quem escreve tece fios que devem ser recolhidos pelo leitor para serem urdidos.
um texto, portanto, não tem um destino, ele é um destino.
flusser quem diz.

se você quiser, pegue o meu texto e emaranha.

exercício de probabilidade iv ((a)perspectivamente)

“perspectivamente” trata-se da bienal do boicote. metade dos artistas convidados se negam a participar devido às censuras promovidas por órgãos do governo autoritário da ditadura brasileira.

“aperspectivamente” um trabalho de arte é capaz de ultrapassar os limites do tempo.

ambos os termos são usados por mira schendel para se referir ao aceite do convite. diante do boicote, ela diz entender “perspectivamente” as razões pelas quais diversos artistas se negaram a participar, indicando que o contexto pedia tal atitude. simpatiza com esse grupo. no entanto, “aperspectivamente”, numa instância capaz de ultrapassar limites de tempo e de espaço específicos, considera fundamental manter “ondas paradas”. vê nessa decisão uma chance de marcar presença, ou melhor, fazer presente – fazer aparecer – certa invisibilidade.

na bienal do boicote, falar baixinho.
quem me ouve? não tenho certeza.

exercício de probabilidade v (sala vazia)

“não tem nada ali”. “só vejo a arquitetura”. “a sala está vazia?”

sabe, o espaço em branco é pura ficção. ali se depositam os sonhos de cada espectador. em realidade, o vazio é o todo.

“no fundo, isso não tem a menor importância” porque “o grande espaço vazio é uma coisa que me comove profundamente”.

a mim também, mira. a mim também.

Montagem no Museu de Serralves [Foto: Aline Dias]

exercício de probabilidade vi (entre)

o desejo do entre da imagem e da escrita, o desejo do intervalo, é despertar nas superfícies seus luminosos segredos, nas palavras de mallarmé. a poética do branco, do vazio e do intervalo é soprar o ar que anima todas as coisas. o vazio é, em verdade, o todo.

exercício de probabilidade vii (o título)

ondas paradas de probabilidade. novamente, ondas paradas de probabilidade. fala comigo: ondas paradas de probabilidade. sim, ondas paradas. probabilidade. ondas. paradas. o que fazem as ondas em repouso de probabilidade? se as ondas estão paradas, estão em movimento as probabilidades? como se move a probabilidade?

não posso te assegurar nada. vem nadar comigo.

exercício de probabilidade viii ( uma narrativa)

caminho um pouco desorientada debaixo de chuva. é dia nublado e a luz cinza reflete todas as quinas ao meu redor e cega. difícil precisar se sigo a norte ou a sul.

não ter cabelos castanhos, nem uma face branca com dois olhos, um nariz e uma boca. não ter duas orelhas a ouvir. não ter um pescoço e portanto não virar a cabeça nem para a esquerda nem para a direita. nem para cima ou para baixo. não ter garganta para gritar. não ter um busto, nem seios, nem braços. ninguém amamentar ou abraçar. não ter barriga, nem cintura. nem estômago ou pulmões ou rins. ou coração. não ter vulva, nem útero. ninguém a parir. não ter coxas. nem joelho. logo, não andar. não ter pés. no ar. não ter. não ser. negar.

não ter linguagem, não produzir sons. não gostar ou desgostar. nem pintar ou esculpir. não escrever. propositalmente.

pense no calor do deserto. não diga nada. pense em todo caos a que as ruínas sobreviveram. não diga nada. pense na miragem e sua borda infinita entre o conhecido e o desconhecido. pense nos primeiros habitantes. e depois nos mais recentes rastros. não diga nada. vá a praia sozinha e note que o deserto é uma dádiva. e uma multidão. agora escreva sabendo que somos todos um pouco opacos, como a pedra que falta ao deserto. continue a dizer nada e fracasse.

deslizo e caio. sorrio, levanto e sigo.
mais uma vez.

o deserto é onde tudo começa e tudo termina, concomitantemente. onde as duas pontas do ciclo-serpente da vida se encontram e se sobrepõem. é ao mesmo tempo arrebatador porque catártico e profundamente calmo. o lugar de quem aceita a derrota e sorri. mas é também o lugar do desaparecimento. sem contato, sem troca, só apagamento.

não tenho uma palavra sequer.
não te chamo para te conhecer.

e ainda assim, a palavra por ser inventada.

[Foto: Leo Eloy e Pedro Ivo Trasferetti]

exercício de probabilidade ix (nem nem)

talvez possamos dizer se tratar de uma obra “nem nem”.
está a todo o tempo fugindo de definições e optando positivamente por sustentar tal indefinição e indecibilidade. nem atrás nem frente, através.

nem tudo é sempre legível, nem tudo é sempre dizível, nem tudo é sempre decifrável. é essa zona de indeterminação que permite infinitas leituras criadoras, conta ana hatherly.

um texto sempre esconde, num primeiro momento, as regras de seu jogo. é, em alguma instância, sempre imperceptível, alerta jacques derrida.

craig dworkin, lembra-nos que o texto ilegível é uma zona temporária, aquela que recusa a permanência de sua própria constituição. chama quem lê a lidar com os desejos irresistíveis da semântica, para os quais, enquanto leitores, devemos nos responsabilizar. eis a ética da ilegibilidade.

é o que é, mesmo que nem uma coisa nem outra.

exercício de probabilidade x (o último o primeiro)

cinco metros quadrados de milhares de fios de náilon que pendem do teto e se enroscam no chão. uma placa de acrílico com uma passagem bíblica pende do teto suspensa por fios de náilon. dois textos. dois sussurros.

chega mais perto.

a transparência na obra de mira schendel tem o poder de reiterar certa concretude das coisas do mundo. é o transparente mesmo coisa a ser notada, pela sua justa dificuldade em aparecer. ao tomarmos a responsabilidade de produzir opacidade – o efeito que a transparência exige – implicamo-nos na obra, no ambiente e, finalmente, no mundo. dar alguma visibilidade ao que parecia invisível. algo como dizer: estamos aqui.

chega mais perto.

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Ana Elisa Lidizia é historiadora da arte e curadora. Está doutoranda no PPGHA-Uerj com pesquisa que busca investigar ilegibilidades nas obras de Mira Schendel e Mirtha Dermisache.