São inauguradas hoje no Parque Lage duas exposições que saúdam Iemanjá: Abre Gira, de Bruno Miguel, e Geometrias do Habitar, de Dona Carmen. Na entrevista que fiz na terça-feira, 31/1, com o artista e professor na Escola de Artes Visuais (EAV), durante a montagem de sua individual nas Cavalariças do Parque Lage, esqueci de perguntar sobre a escolha da data de abertura. Mas finalizando o presente texto hoje, banhada nas bênçãos da mãe d’água, só posso concluir que não foi fruto do acaso. Mais cedo, passeando pelo Instagram, fui inundada de imagens de duas entidades femininas, a orixá celebrada em 2 de fevereiro e Glória Maria, que ancestralizou hoje, modelo de mulher e de jornalista a que a minha geração cresceu assistindo, e com quem aprendemos o que é reportagem autoral.
A série de pinturas que Bruno Miguel apresenta, feitas sobre tapeçarias antigas arrematadas em leilões, é fruto de três anos de produção. O uso da tapeçaria como suporte não é novidade na trajetória do artista: data de 2010 a sua série Pintura de Museu – Paisagem Stricto Sensu, seguida da série Kitsch Art Family (2012), nas quais Miguel interferia apagando toda figuração humana. “Naquela época o meu interesse era evidenciar a paisagem histórica, por isso as figuras eram recobertas com plantas representadas e, no caso de Pintura de Museu (2010), também acrescentava a volumetria de museus de arte contemporânea na cena; ou então eu fazia um movimento de tornar as áreas figuradas uma mancha abstrata sobre a paisagem”, conta o artista à seLecT_ceLesTe.
Em 2017, quando retoma a série com tapeçaria, e já artista representado pela Sapar Contemporary Gallery, em Nova York, Bruno Miguel decide colocar em evidência suas raízes brasileiras nas obras. “Vinha escutando de diversas pessoas, quando expunha no exterior, o questionamento sobre onde estava a brasilidade no meu trabalho. Isso me levou a pensar em estratégias para falar do meu lugar sem cair no clichê de criar alegorias ou caricaturas”, explica. Como umbandista que é, enveredou pelas epistemologias de matriz africana para encontrar um meio de retratar os originários, os africanos, os periféricos e desfavorecidos na sua produção artística. O resultado dessa investigação está exposto a partir de hoje em Abre Gira.
Nas palavras do historiador Luiz Antonio Simas, que assina o texto crítico sobre Abre Gira, “a construção do Brasil como projeto de Estado-Nação, ao longo da nossa história, foi geralmente fundamentada em projetos de exclusão social, concentração de renda e propriedade, domesticação e aniquilação de corpos não brancos e desqualificação de saberes plurais em nome de um projeto civilizatório eurocêntrico. Ao mesmo tempo, nas frestas do muro de exclusão que começa a ser erguido nos tempos coloniais e, em larga medida, permanece, o povo brasileiro – em toda a sua diversidade – elaborou meios originais de inventar a vida onde aparentemente só a morte deveria triunfar. Dentre essas formas, estão as variadas maneiras de cultuar a ancestralidade que fundamentam a codificação da umbanda em diversas perspectivas e ramificações”.
Simas sublinha que as pinturas na exposição “ganham contornos que desafiam, driblam, subvertem os projetos de exclusão do Brasil oficial em nome da força espantosa das brasilidades encantadas”, e dá à série de Bruno Miguel a feliz alcunha de “arte-gira” que “celebra a sofisticação de saberes e modos de vida que dão uma rasteira no racismo estrutural, na colonialidade, nos projetos de branqueamento físico, espiritual, artístico e filosófico”. Desse universo de saberes ancestrais vêm as obras de Carmen Verônica da Costa Souza, funcionária e aluna da EAV, que adotou o nome artístico Dona Carmen por ocasião da exposição individual Geometrias do Habitar, que abre hoje na Capelinha do Parque Lage.
Conhecida como Carminha na escola, a artista está à frente da secretaria da EAV há 12 anos, e já foi aluna de Anna Bella Geiger, Fernando Cocchiarale e Marcelo Campos, entre outros. “Pude ir tomando minhas decisões sobre como pintar, criando minhas próprias cores e entrando cada vez mais no universo das formas geométricas. Geometria era meu forte desde criança na escola e, por isso, acho que veio tão impositiva na pintura. A geometria é uma vivência diária, da arquitetura de casa até a da cidade, faz parte integral da vida. Aqui no Rio, nós construímos nossas próprias casas. Nossa geometria é a realidade cotidiana”, afirma Dona Carmen à equipe de comunicação da instituição.
A curadoria de Geometrias do Habitar é assinada por Adriana Nakamuta, que propõe uma reflexão importante sobre a crise institucional que a EAV atravessa: “A Carminha é a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Essa afirmação consiste em responder perguntas que nós temos feito sobre o lugar da produção artística contemporânea na instituição e as artistas que contribuem para isso. Revelar e tornar público novas contribuições também é nosso propósito enquanto espaço de ensino, troca e experimentações. Nesse sentido, recepcionar na Capelinha as pinturas de Dona Carmem nos orgulha profundamente”, escreve Nakamuta.
SERVIÇO
Abre Gira, de Bruno Miguel [Cavalariças] e Geometrias do Habitar, de Dona Carmen [Capelinha]
Abertura: hoje, 2/2, 19h às 21h
Visitação: até 2/4 na Escola de Arte Visuais do Parque Lage