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Noite Americana I (2014), pintura em esmalte, acrílica e óleo sobre madeira (Foto: Mario Grisolli)
Postado em 21/10/2014 - 5:32
Dia e noite a um só tempo
Termina dia 8 de novembro a exposição de Gisele Camargo na Galeria Luciana Caravello, no Rio de Janeiro
Marisa Flórido Cesar

Noite americana é o nome do efeito outrora utilizado no cinema para transformar imagens filmadas durante o dia em cenas noturnas. A Noite Americana (1973) intitula o filme de François Truffaut sobre a realização da obra cinematográfica A Chegada de Pamela. Um metafilme em que se alternam a câmera estática em Pamela e os movimentos panorâmicos de seu set de filmagem em A Noite. Atravessando-os, uma cena em preto e branco que se repete ao longo dos filmes nos sonhos de seu diretor (Ferrand/Truffaut): um menino caminha no meio da noite com uma bengala.

Noite Americana ou Luas Invisíveis intitula a exposição de Gisele Camargo, a partir de 14 de outubro na Galeria Luciana Caravello, no Rio de Janeiro. Uma série de pinturas em que não apenas o efeito e o filme de Truffaut são referências, como também a série L’Empire des Lumières (1953-1954), de René Magritte. Nas telas de Magritte, dia e noite convivem a um só tempo no quadro. Um encontro paradoxal, do qual emergem estranheza e melancolia. Um plano d’água, uma lagoa à margem de uma casa iluminada, opera ainda como um espelho, como a face invertida da cena insólita.

Não fosse a lua também uma espécie de duplo especular: privada de luz própria, ela apenas reflete o sol – sua luz noturna é paradoxalmente diurna. Talvez por isso ela encerre a mística das passagens, dos subterrâneos e dos mortos, dos auspícios e das loucuras. Lilith e Perséfone, entre outros, partilham de seu mistério. No interior da noite, os limites se esvaem, erramos sob um horizonte infinito e invisível. A lua, com suas cintilações prateadas, é tanto a promessa do resgate da cegueira da noite quanto o risco do extravio pelos delírios oníricos e descomedimentos por ela despertados.

Colapso entre imagens
Já há algum tempo, para Gisele Camargo, a tela é o encontro insólito entre pintura e cinema, entre o plano (fixo) de uma e as imagens-movimento do outro, entre espaços e tempos, entre corpo e imagem, entre distância e proximidade, entre materialidade e virtualidade. Opera-se por “metalinguagem”, como escreveu certa vez Guilherme Bueno. É a metalinguagem desse encontro em que se “trama e se situa a visualidade”. Se pintura e cinema debruçam sobre si mesmos, interrogando funcionamento e sentidos, o fazem também sob mútua reflexividade, sob mútuo rebatimento especular: um filme dentro de um quadro, um quadro dentro de um filme, como espelhos internos à obra que rompem a hierarquia dos meios, a especificidade dos processos de cada um, e as articulações ordinárias entre superfície material e reflexiva, entre percepção e apresentação. A luz de um reflete a do outro, e ambos são essa janela pictórica/cinematográfica em que paisagens do mundo são descerradas. Um corte na pele da noite para que pequenos vislumbres cintilem. Frações da cidade e de seus ocasos, um skyline aqui, uma nuvem acolá, um céu que talvez seja chão, uma lua que pode ser um sol. Como saber?

Por isso a artista correlaciona os procedimentos artesanais da pintura aos de montagem e edição próprias do cinema e das tecnologias eletrônicas, em que o colapso – entre imagens e sentidos, olhar e narrativa, o instante paralisado e o contínuo espaciotemporal – é gerador de choques e estranhamentos, mas também de imprevisíveis articulações.

Agrupadas em conjuntos que se constituem tanto como obras individuais quanto uma instalação pictórica, suas pinturas se formam a partir da fragmentação e dessas conexões inusitadas. Pedaços de paisagens que se oferecem à sua percepção e imaginação, resíduos da memória, frames desenhados em seus cadernos ou capturados pela fotografia. Perspectivas fracionadas, planos que insinuam e negam a terceira dimensão; uma paleta econômica, na qual a prata – que no sistema de correspondências entre astros e metais é vinculada à lua – está presente; cores que alteram seu sentido de acordo com sua inserção no conjunto. Nada se dá por inteiro ou sem certa ambivalência, cada fragmento apenas alude, mas não mostra nada além da extensão e do tempo que o ultrapassam. Por isso cada fragmento arremessa o desejo para além daquilo que é dado ver: à junção de fragmentos corresponde o cotejamento desses extracampos invisíveis e imaginários, como noites intocadas.

Se cada obra é composta de fragmentos, também se constitui como um fragmento que a artista insere em uma ordem heterogênea ao mostrá-las: cada espaço expositivo demanda uma montagem específica determinada por paredes, quinas, tetos. Será o espectador em deslocamento que restituirá (ou não) a continuidade espaciotemporal, é ele a câmera móvel que percorre o set-galeria. Ele próprio é essa inatualidade que talvez coincida com aquela do mundo que (o) habita. Pois o que está em questão, afinal, é a potência da arte em fazer cintilar mundos na noite, suas aparições e desaparições. Mas, se luas (em que sóis se refletem) vêm rasgar a pele invisível da noite pela força da arte, não há arte sem a dubiedade da lua, a cegueira da noite e a dolorosa ferida em sua pele.

A seção Vernissage é um projeto realizado em parceria com galerias de arte, que prevê a publicação de um texto crítico sobre a obra de um artista que estará em exposição durante os meses de circulação da edição.

*Vernissage publicada originalmente na edição #20