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Vista da instalação de Otobong Nkanga durante a 36ª Bienal de São Paulo © Levi Fanan/ Fundação Bienal
Postado em 20/10/2025 - 7:17
Direito à opacidade
Ao transformar ruído em método e escuta em prática, a 36ª Bienal de São Paulo propõe que nos entreguemos a outro regime de atenção

Minha primeira impressão ao visitar esta edição da Bienal não foi diferente do que muitos comentaram: dificuldade em encontrar informações, identificar artistas ou dispor de referências que servissem de guia no percurso. Em artigo publicado na ARTE!Brasileiros, Fabio Cypriano atribuiu esse incômodo e a sensação de confusão à ausência de contexto, defendendo que “na arte contemporânea, o contexto é essencial” e que “descontextualizar e desistoricizar é praticamente um ato colonialista”. A formulação é contundente, mas deixa de lado outra possibilidade de leitura da proposta curatorial desta edição, sobretudo no que se refere ao próprio significado de “contexto”.

Desde 1951, a Bienal de São Paulo colocou-se inicialmente como exposição de representações nacionais, em que cada país ocupava seu espaço com artistas oficialmente designados. Esse modelo, que vinculava obras a delegações e artistas a embaixadores estéticos, foi decisivo para inserir o Brasil no circuito internacional, mas logo se mostrou estreito diante de práticas que escapavam ao enquadramento diplomático e às fronteiras dos Estados. Como conter, em caixas nacionais, vozes em trânsito, expressões diaspóricas, exílios e migrações?

O Pavilhão do Ibirapuera, ao longo das décadas, deixou de oferecer o conforto de uma geopolítica das artes para tornar-se palco de ensaios e experimentações, onde, a cada dois anos, não apenas se exibem obras, mas se testam modos de convivência estética e política. Se em edições recentes a Bienal já deslocava a questão de “onde cabe a arte?” para “que formas de vida são possíveis?”, agora ela não só rompe com a lógica das identidades específicas, mas também embaralha referências que costumavam oferecer ao visitante a segurança de um mapa: nomes, nacionalidades, percursos lineares.

Essa inflexão se anuncia já na abertura do texto curatorial de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, com um provocador “aviso de isenção”: “Esta bienal não é sobre identidades e suas políticas, não é sobre diversidade nem inclusão; não é sobre migração nem democracia e suas falhas”. A negação soa desconcertante em um sistema que aprendeu a se reconhecer no vocabulário da representatividade. No lugar disso, o curador propõe: “A bienal é sobre a humanidade como verbo e prática, sobre o(s) embate(s) e as negociações quando dos encontros de mundos distintos… sobre a alegria e a beleza, e suas poeticalidades enquanto forças gravitacionais que mantêm nossos mundos no eixo… pois a alegria e a beleza são políticas”.

A atuação de Bonaventure à frente do Haus der Kulturen der Welt (HKW), em Berlim, ajuda a situar melhor essa proposta. No projeto Quilombismo (2023), buscou-se pensar coabitações não mediadas por identidades nacionais. E, ao propor a transformação do conceito alemão de Heimat (pátria) em verbo inexistente — heimaten —, a curadoria ensaiava uma prática de pertencimento dinâmico, não fixada a um território estático. No Ibirapuera, a “humanidade” é reinscrita nesse mesmo registro: não como essência universalizante, mas como processo de encontros e fricções.

SE EM EDIÇÕES RECENTES A BIENAL JÁ DESLOCAVA A QUESTÃO DE “ONDE CABE A ARTE?” PARA “QUE FORMAS DE VIDA SÃO POSSÍVEIS?”, AGORA ELA NÃO SÓ ROMPE COM A LÓGICA DAS IDENTIDADES ESPECÍFICAS, MAS TAMBÉM EMBARALHA REFERÊNCIAS QUE COSTUMAVAM OFERECER AO VISITANTE A SEGURANÇA DE UM MAPA
Vista da instalação de Gê Viana durante a 36ª Bienal de São Paulo © Levi Fanan Fundação Bienal

Humano como humus

Ainda que a palavra possa sugerir um retorno a um universal abstrato e antropocêntrico, a própria curadoria se antecipa em recusar essa armadilha conceitual. A cocuradora Alya Sebti enfatizou, em suas falas, a coabitação com o mais-que-humano; e Conceição Evaristo, autora do verso que dá título a esta edição, afirmou na abertura que “a arte é movência da diversidade da vida” e a descoberta da “natureza que existe em nós”. Essa concepção não permanece apenas no plano dos enunciados, mas se materializa nas obras. Logo na entrada, a instalação de Precious Okoyomon transplanta o cerrado para o espaço modernista, convocando a etimologia de “humano” como humus — terra. A aparente contradição entre trazer para dentro o que já existe em abundância fora do pavilhão só reforça o gesto de restituição da natureza.

O que se evidencia logo de início é que a proposta curatorial tampouco propõe conciliações. Se a instalação primeiro sugere uma ambiência quase meditativa, marcada por sons discretos de pássaros e água corrente, essa serenidade é abruptamente interrompida pelo paredão de reggae e pelos tambores de Gê Viana, que atravessam o espaço com potência. A experiência não conduz à harmonia, mas à tensão; não à pacificação e síntese, mas à fricção e ao embate. Daí a pertinência da referência a Noise, de Jacques Attali, evocada no texto curatorial: “Há 25 séculos o Ocidente tenta ver o mundo, mas o mundo é para ser ouvido”. Nesse gesto, a exposição desloca o olhar para a escuta, desfazendo a ilusão de identidades estabilizadas pela imagem.

Essa inflexão sonora atravessa vários momentos do percurso expositivo e da proposta da Bienal, que inclui quatro “invocações” – cruzando performance, rito e música em lugares tão distintos quanto Marrakech, Guadalupe, Zanzibar e Tóquio. Ou, na instalação multimídia e cinética de Laure Prouvost, a atenção se desloca para danças cósmicas que evocam ressonâncias sensoriais e outros regimes de atenção. Já Tanka Fonta ocupa a rampa com um mural de grande formato cuja dimensão sonora é indissociável da visualidade – três estações de escuta que convertem a imagem em paisagem sonora. Como se, diante do excesso de imagens saturadas, a curadoria buscasse na escuta uma alternativa de ressonância, uma forma de abrir espaço para aquilo que não se deixa domesticar pelo olhar.

Zonas de sombra

A expografia reforça essa aposta no ruído e na não linearidade. Com cortinas atravessando os andares como rios bifurcados, instauram-se zonas de sombra em vez de transparência didática. Aqui, o que Édouard Glissant chamou de “direito à opacidade” funciona como antídoto ao automatismo do olhar que classifica. Não se trata de esconder ou exibir, mas de propor outros ritmos de atenção, menos lineares, mais tateantes. Em tempos em que algoritmos nos devolvem apenas o eco dos próprios discursos, esse direito atua como forma de afrontar expectativas de legibilidade imediata – como em Borrow Light, onde Song Dong apresenta espelhos e objetos que, em vez de devolver reconhecimento, criam uma experiência inquietante de deslocamento e fugacidade da presença.

Embates e negociações aparecem ainda na proposta de romper com as divisões entre os andares do pavilhão, seja com obras que dissolvem sua verticalidade – como a instalação A Casa de Vovó Bené, de Ana Rylander, que costura os três pavimentos através de uma memória coletiva –, seja em produções distribuídas em paredes simétricas, como as obras de Otobong Nkanga, expostas cada uma em um andar diferente, como se suas cartografias poéticas redesenhassem o próprio percurso vertical do pavilhão. Também em Cubo Branco, Maxwell Alexandre apresenta um conjunto de papéis pardos que ironiza o simbolismo dos espaços da arte, provocando estranhamento tanto em relação às cortinas quanto às demais obras dispostas dentro do espaço criado no interior da própria obra. Em paralelo, há ainda o questionamento da singularidade autoral em práticas coletivas, como no projeto Sertão Negro e no coletivo Metta Prakrutti, grupo informal de artistas reunido por ocasião desta edição, que apresenta um conjunto de obras em técnicas diversas como vídeos, xilogravuras, bordados e pinturas.

Vista da instalação de Song Dong durante a 36ª Bienal de São Paulo © Levi Fanan Fundação Bienal

Essa chave se materializa ainda em outras linguagens: Madame Zo combina cobre, tecidos e tingimentos em um processo geológico que desafia cronologias lineares; Nádia Taquary retoma fios de contas associados ao Ìrókó, explorando joalherias rituais que inscrevem cosmogonias afro-brasileiras no espaço do pavilhão; e Marlene Almeida, em Terra Viva, transforma o arquivo em matéria poética, onde faixas de algodão cru pintadas com pigmentos naturais associam-se ao laboratório de sua função informativa para convertê-los em corpo vivo de pesquisa, reabrindo a questão do que chamamos “contexto”.

Instalação de Madame Zo durante a 36ª Bienal de São Paulo [Foto: celeste]
O estranhamento diante da falta de informações não é irrelevante, com mapas que confundem mais do que orientam, obras por vezes excessivamente comprimidas e um último andar que adota lógica semelhante à de uma galeria tradicional, perdendo a tensão que orientou o restante da mostra. Além disso, a dependência do texto curatorial em um projeto que relativiza a autoria individual pode soar, de fato, como um contrassenso. Sem o auxílio de informações mais sistemáticas, o ensaio do curador adquire centralidade e passa a integrar a própria experiência da visita. O risco, aqui, é que a aposta da curadoria em impedir que um conjunto de informações substitua a arte caia por terra quando a fruição inevitavelmente continua dependendo de outro conjunto de mediações – agora da própria curadoria. Trata-se, portanto, de uma questão ambígua nesta edição: até que ponto faz sentido, ou mesmo é possível, retomar uma experiência de fruição sem mediações, e onde situar, nesse processo, o papel da curadoria e da crítica?

Vista da instalação de Ana Raylander Mártis dos Anjos durante a 36ª Bienal de São Paulo © Levi Fanan Fundação Bienal
O QUE ÉDOUARD GLISSANT CHAMOU DE “DIREITO À OPACIDADE” FUNCIONA COMO ANTÍDOTO AO AUTOMATISMO DO OLHAR QUE CLASSIFICA
Vista da instalação de Nádia Taquary durante a 36ª Bienal de São Paulo © Levi Fanan Fundação Bienal

Hegel dizia que toda experiência já é conceitual: mesmo os contatos aparentemente sem mediações com a obra são atravessados por repertórios, vocabulários, outras experiências e contextos sociais que antecedem a percepção. Mas é importante também reconhecer que foram novas mediações – o texto curatorial, as falas da equipe e o repertório crítico mobilizado – que desfizeram minha impressão inicial de mera confusão. Foram elas que tornaram possível inclusive este texto. Se isso é verdade, por que não continuar apostando em mediações – seja o trabalho de uma equipe curatorial ou a pesquisa que sustenta a obra de um artista?

Por outro lado, a ausência de informações e eventuais falhas da expografia, embora compreensíveis como motivo de estranhamento, levantam uma questão: até que ponto a inquietação nasce do desejo de reencontrar, na exposição, a confirmação de nossos próprios parâmetros – a legenda que explica, a biografia que organiza, a bandeira que identifica —, e não do confronto com um regime expositivo que embaralha categorias conhecidas?

Ao invés do conforto de uma narrativa linear, esta bienal oferece a experiência de um espaço onde mundos díspares coexistem em fricção, onde a escuta resista à domesticação e o olhar acolhe a diferença sem reduzi-la à transparência. Essa proposta ecoa o verso de Conceição Evaristo que dá título à edição (“Nem todo viandante anda estradas”), lembrando que em um percurso há veredas, atalhos e cursos d’água que escapam ao mapa. Nos versos seguintes deste mesmo poema Da calma e do silêncio, Evaristo afirma: “Há mundos submersos, que só o silêncio da poesia penetra”. O silêncio não como ausência, mas ruído subterrâneo que exige uma escuta paciente, menos ansiosa por decifrar e mais aberta a fluxos que escapam ao controle. Assim, a Bienal convida a abandonar o protocolo do consumo cultural e a cultivar outro tempo de atenção, mais demorado e menos utilitário.

Por isso, não surpreende que esta edição devolva ao centro da experiência duas palavras tantas vezes desconsideradas pelo discurso político contemporâneo: beleza e alegria. Mas, em vez de reduzi-las a sentidos aparentemente destituídos de tensão, a Bienal se encerra com o capítulo “À intratável beleza do mundo”: práticas políticas de convivência e modos de resistir à homogeneização e de sustentar a diferença sem violência. Falar em beleza e alegria em meio à fragmentação do presente pode soar ingênuo; mas talvez seja justamente nesse gesto que resida a radicalidade desta edição.

TRATA-SE DE UMA QUESTÃO AMBÍGUA NESTA EDIÇÃO: ATÉ QUE PONTO FAZ SENTIDO RETOMAR UMA EXPERIÊNCIA DE FRUIÇÃO SEM MEDIAÇÕES, E ONDE SITUAR, NESSE PROCESSO, O PAPEL DA CURADORIA E DA CRÍTICA?
Vista da instalação de Marlene Almeida durante a 36ª Bienal de São Paulo © Levi Fanan Fundação Bienal

Mangue, a exposição

Ao transformar ruído em método, opacidade em direito e escuta em prática, a 36ª Bienal de São Paulo propõe que nos entreguemos a outro regime de atenção. Não o da transparência imediata, da legenda que explica ou da identidade que organiza, mas o de um tempo mais lento, de um convívio assumidamente instável, de uma comunidade sensível que não precisa se fundar em identidades fixas para existir. O estuário, com suas correntes díspares que coexistem sem fusão total, é a imagem que melhor condensa esse convite.

Em entrevista à revista Continente, Bonaventure recorda o impacto que sentiu ainda adolescente ao ouvir, pelas antenas que captavam estações de rádio, Chico Science & Nação Zumbi – o mesmo impacto que eu e tantos amigos experimentamos no Recife dos anos 1990 e que hoje retorna na Bienal como metáfora do estuário. Em diálogo com o manifesto Caranguejos com Cérebro, de Fred Zero Quatro – que imagina uma cena a partir do mangue recifense, espaço de lama fértil, excesso e decomposição, uma antena fincada na lama captando o mundo –, e com Josué de Castro, que propôs aprender com o mangue outros modos de habitar, o curador retoma a trilogia do manifesto – Mangue, o conceito; Manguetown, a cidade; Mangue, a cena – e propõe um quarto movimento: Mangue, a exposição. Embora essa referência ao Manguebeat não seja explícita para quem visita a Bienal, ela se manifesta na confluência sem fusão, na mistura sem pureza e na convivência que preserva a diferença. Como diz Nego Bispo, um rio, ao encontrar outro, não morre: torna-se outro.

Na coincidência de afetos entre a cena recifense do final do século passado e um adolescente do outro lado do Atlântico, percebe-se como a potência estética pode instaurar comunidades sensíveis que ignoram fronteiras. O impacto de um som mostra que o comum que não emerge de identidades fixas, mas do encontro contingente de experiências. Essa percepção desloca a pergunta sobre “onde está o Brasil na Bienal?”: em vez de uma identidade nacional a ser exibida, a curadoria insiste que “a ficção que é o Brasil é ponto culminante de muitos mundos e suas tangentes”.

Numa edição que abandona a lógica das identidades nacionais quando fronteiras se convertem em zonas de violência, as apostas da Bienal ressoam para além do próprio contexto.


Filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco. Foi professor visitante na New School for Social Research (Nova York) e nas Universidades de Perugia, Bergen e Duisburg, integra o comitê artístico da ART-PE