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Cartuchos de filme da coleção Tokyo Reels (2018–em andamento) Do coletivo de pesquisa e produção cinematográfica Subversive Film, que visa lançar novas percepções sobre obras históricas relacionadas à Palestina e região, além de gerar apoio à preservação de filmes e investigar práticas de arquivo
Postado em 23/06/2022 - 3:43
Documenta 15 repensa a arte por meio da coletividade
A direção artística do Coletivo Ruangrupa alerta que, na revisitação de uma história coletiva, é impossível ser somente um

A 15a edição da Documenta de Kassel, um dos mais importantes eventos artísticos do mundo, propõe pensar diferentes estratégias e soluções para o heterogêneo mundo contemporâneo. O evento acontece de 18/6 a 25/9/22, na cidade alemã que sedia a documenta desde 1955 –, assumindo o atual formato quinquenal a partir de 1972. Práticas educacionais, modelos econômicos regenerativos e o papel da arte na mobilização social são os pilares que o ruangrupa – coletivo indonésio à frente da direção artística nesta edição – mobiliza tanto na exposição, em seu formato tradicional, como em atividades em escolas, universidades, bancos e hospitais de Kassel, além de promover programas públicos com enfoque social. A mostra estrutura-se em torno do conceito de lumbung, que intitula a curadoria. O termo indonésio, que pode ser traduzido como um “celeiro de arroz comunal”, reitera a formação de uma rede global de organizações locais, focadas em comunidades, tanto na arte quanto em outros contextos culturais. Em áreas rurais da Indonésia, lumbung é um grande recipiente coletivo que constitui um sistema de armazenamento de safras, produzidas por uma ou mais comunidades, como um recurso comum a ser distribuído igualmente para todos. Esse lugar tem tanto uma finalidade funcional de armazenar mantimentos quanto social, sendo um ponto de encontro entre os membros da comunidade, próximo ao que entendemos como equipamento público.

Na realidade brasileira, essa prática pode se aproximar tanto das cooperativas rurais, dos movimentos de reforma agrária e das organizações de grupos indígenas e quilombolas quanto da administração de recursos coletivos.

Serigrafistas queer, não grupo argentino criado em 2007. Produzem estênceis para serem utilizados durante as Paradas do Orgulho LGBTQIA+ e protestos feministas que acontecem em diferentes cidades da Argentina todos os anos. Além de construir o Arquivo Serigrafistas Queer (ASK), no bairro de Boedo, em Buenos Aires, disponibilizam no local estênceis e slogans abertamente, que, nesse fluxo de uso, perdem qualquer indicação de propriedade. Também realizam oficinas com o objetivo de afastar a serigrafia de seu status de técnica ou de impressão para focar na troca e no diálogo entre os participantes.

IDEIAS E HISTÓRIAS COMO RECURSO
O ruangrupa, fundado por um grupo de artistas em 2000, em Jakarta, tem sólidos projetos realizados em torno da necessidade de repensar o espaço e a coletividade – seu nome, a palavra ruangrupa, em tradução livre pode ser entendido como “espaço artístico” ou “forma espacial”. Com trabalho regular em arte pública e urbana, performance e vídeo, o grupo realiza projetos sempre de forma colaborativa, que resultam em impactos sociais nas comunidades em que atuam. É a primeira vez na história da documenta que a curadoria é assinada por um coletivo e por profissionais asiáticos, demonstrando uma preocupação da mostra em dar espaço e protagonismo a visões não europeias. Ao anunciar a escolha, o comitê organizador declarou que “em um tempo em que a força inovadora surge particularmente de organizações independentes ativas no nível das comunidades, pareceu apenas lógico oferecer a essa abordagem coletiva uma plataforma como a documenta”.

Módulos de Chimurenga (2015). Fundado pelo escritor e jornalista camaronês Ntone Edjabe, na Cidade do Cabo, em 2002, Chimurenga é uma revista e plataforma pan-africana para atividades editoriais e produção de novos conhecimentos, com o objetivo de abrir espaço para ideias e reflexões de africanos sobre a África.

Uma das mais importantes contribuições do ruangrupa para a mostra, por meio das suas diretrizes curatoriais, é entender os recursos não somente em seu potencial econômico, mas também valorizar as histórias, as ideias e os tempos em seu potencial compartilhável. O ruangrupa percebe em Kassel, uma cidade global com protagonismo cultural e econômico, e na documenta um manancial de recursos que potencializam novas formas de pensar a utilização desses meios de maneira sustentável, além de oferecer uma plataforma de amplificação de recursos próprios de cada coletivo participante da mostra, distantes do contexto cultural europeu.

CURAR AS FERIDAS COLONIAIS
Esses princípios são, portanto, guias para as escolhas tomadas pelo time artístico e curatorial que coordena a mostra. Almejar um sistema que parece ser idílico em uma realidade insustentável e agressivamente competitiva – acentuada principalmente ao pensar um futuro pós-pandêmico – pode assemelhar-se aos aspectos sonhadores da 59a Bienal de Veneza (The Milk of Dreams) e da 13a Bienal do Mercosul (Trauma, Sonho e Fuga).

Na documenta fifteen, o ruangrupa busca, entretanto, apresentar essas discussões a partir de outro prisma epistemológico e cultural, oriundo de um sistema de pensamento comunitário usualmente negligenciado pelas grandes instituições de discussão artística. “Se a documenta foi lançada com a nobre intenção de curar as feridas de guerras europeias, esse conceito se expandirá, a fim de curar os ferimentos de hoje, especialmente os enraizados no colonialismo, no capitalismo e nas estruturas patriarcais”, defende o time curatorial.

Arquivos das lutas das mulheres na Argélia (Archives des luttes des femmes en Algerie) (2020). É uma iniciativa independente, lançada em 2019, durante a revolta popular argelina conhecida como “Hirak”, que visa construir um arquivo digital com acesso aberto de documentos relativos a coletivos e associações feministas do país africano, principalmente desde a independência, em 1962.
Arts Research Africa Symposium on arts education in Africa, Johannesburg (2020),
de Another Roadmap Africa Cluster (ARAC). Fundada em Uganda, em 2015, a ARAC – projeto organizado pelo Roadmap School, rede internacional de profissionais e pesquisadores que trabalham a educação artística como prática engajada em instituições culturais – promove conversas em cidades africanas sobre artes e educação, particularmente no que diz respeito aos legados epistemológicos e estéticos do colonialismo, buscando desenvolver uma base de conhecimento partilhada e uma estrutura de aprendizagem mútua que seja acessível e significativa aos trabalhadores culturais do continente.

Para isso, o coletivo faz desta edição da documenta uma plataforma transdisciplinar, sobretudo nos campos culturais e artísticos, pautada no cooperativismo e na globalidade, que se efetiva além dos 100 dias de duração do evento. Os artistas e coletivos que participaram diretamente da programação principal da mostra são chamados de “artistas lumbung”; enquanto os coletivos, as organizações e as instituições também convidadas são chamados de “membros lumbung”, desenvolvendo as ideias e as práticas da expressão indonésia.

CUIDADO MÚTUO
Aplicando essa estrutura comunitária dinâmica, os artistas lumbung são organizados em grupos, chamados de majelis – termo indonésio que se refere ao encontro –, para troca de ideias e apoio. Essas equipes compõem uma rede interlocal bastante capilarizada – o que muda totalmente a estrutura, o funcionamento e a aparência da documenta. Essa descentralização da tomada de decisões acarreta mudanças no que se entende por formalidades e informalidades, promovendo também um espaço livre para discussões de ideias sob uma estratégia transdisciplinar.

Creche Parental, de Graziela Kunsch, com desenhos de Deborah Salles. O projeto tem inspiração na pedagogia Pikler, criada pela pediatra húngara Emmi Pikler, que acreditava que a criança deveria explorar o mundo por ela mesma, para conseguir desenvolver sua autonomia e autoconfiança. A abordagem segue o procedimento de observar o livre desenvolvimento da criança utilizando como ferramentas o cuidado com a saúde física, o afeto, o respeito à individualidade e a autonomia.

Uma das ações exibidas em Kassel é Creche Parental (2022), da artista brasileira Graziela Kunsch. O projeto é inspirado na abordagem pedagógica da pediatra húngara Emmi Pikler, que tem a coletividade, o afeto, a liberdade e a interação como princípios estruturantes de um pensamento educacional para crianças. Guia-se também pelo cuidado mútuo, central ao conceito de lumbung. Além da realização na documenta fifteen, o projeto de Kunsch inclui ações na Casa do Povo, em São Paulo, que continuará após o fim da mostra com a construção, na instituição paulistana, de parte da estrutura que está sendo montada em Kassel. A continuação das ações fora das delimitações cronológicas e geográficas da documenta fifteen é uma das mais marcantes contribuições do ruangrupa para o evento.

One Day At BOLOHO Space in Guangzhou (2021). Proveniente da romanização cantonesa da palavra oriental para “núcleo de jaca”, BOLOHO visa conectar, desde 2019, indivíduos, organizações e comunidades semelhantes ao seu redor em prática, ação e apoio mútuos acerca de reflexões contínuas sobre as relações individuais com estruturas familiares e papéis sociais mais amplos.

DESOBEDIÊNCIA CIVIL
O uso do conceito de lumbung pelo ruangrupa nos lembra que comunidades vistas como obsoletas ou vernaculares sob uma perspectiva capitalista e cientificista são, na verdade, grupos com sofisticadas ferramentas sociais e com tecnologias extremamente alinhadas a princípios de sustentabilidade – não apenas quanto à ecologia, mas de maneira holística e social. Atingiram, graças a práticas tradicionais mantidas há muito tempo, um objetivo que se busca frequentemente hoje a partir das iniciativas de diminuição da pegada de carbono, por exemplo.

O crítico é perceber que toda postura sustentável requer uma caminhada inversa ao que se pratica atualmente com o capitalismo desregrado, o agudo extrativismo e a acentuação das desigualdades socioeconômicas e políticas. Caminhar em direção a práticas propostas pelo ruangrupa é desobedecer a um suposto progresso linear. Isso demanda movimentos de coragem e insubordinação perante um ineficiente sistema evolutivo preestabelecido. Aprender e pautar as decisões globais a partir de princípios de coletividade, e não mais de individualidade, têm se provado as únicas alternativas – às quais muitas das grandes instituições não dão o braço a torcer – para se respirar e sonhar.

Entrevista com o artista Sajjad Abbas, de Bagdá, compartilhando imagens de seu trabalho em um workshop organizado por Sada no Iraque. O coletivo Sada, fundado em 2010 por Rijin Sahakian, realizava programas de educação e produções virtuais com o intuito de apoiar o trabalho de estudantes de arte residentes em Bagdá. Para a documenta, vários integrantes das formações inicial e atual, como Sajjad Abbas, Bassim Al Shaker, Layth Kareem, Ali Eyal, Raed Mutar e Sarah Munaf, reagrupam-se para convocar o espaço pedagógico e conversacional do projeto. Cada artista produz um curta-metragem com estreia na exposição de Kassel, além de um longa-metragem antológico, exibido após os cem dias, que inclui todas as obras do coletivo.