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Solte sua fera, de Breno de Sant'ana [Foto: Rubens Takamine]
Postado em 10/02/2023 - 7:07
É o novo, é o novo, é o novo… sobre as delícias
Breno de Sant’ana sacode Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica com alerta: tem viado na pista

Esquisitíssimo. Um assombro. O cenário nublado anuncia a tempestade que vai cair e prepara a carga dramática para a cena de três minutos que vem a seguir. O volume das vozes diminui e os corpos dirigem-se para a entrada do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro. O terceiro sinal. Menos de 20 privilegiados presentes. Sem demora, Breno de Sant’ana desce os poucos degraus do que já foi o Conservatório Dramático Brasileiro. Veste somente um calção. Um sábado à tarde típico da Rua Luís de Camões. O silêncio de fim de semana, dessa que é uma das partes mais abandonadas do Centro antigo do Rio, completa a moldura. O artista desfila para a esquina, sobre a passarela de paralelepípedos. Para e volta-se para o público. Cruza os braços pelas costas, aponta as mãos para cima, dobra a perna esquerda e estica a direita, posando por alguns segundos. O desconforto é explícito. Com a cabeça automaticamente projetada, ele encara o outro com suas pupilas agarradas nas pálpebras, uma encarnação apavorante do olhar de ressaca da Capitu machadiana. Breno caminha na direção do público, pára no meio do caminho e repete a pose. Volta a caminhar e o público abre passagem. Antes de subir os degraus, faz uma breve pausa para descansar os braços e deixar o sangue circular. Retoma seus chifres, sobe os degraus e encerra a performance, posando – dessa vez, ao lado da placa, na qual se “lê”, visualmente, “viados na via” ou “viados (em ação) permitidos”. 

Do ponto de vista do público – que permanecia na rua, sem subir os degraus, impelido a tomar distância e olhar para cima, em uma espécie de anfiteatro -, somavam-se à cena outros elementos da performance. Acima, uma faixa esticada, na qual está escrito, em vermelho espremido, “SOLTE A SUA FERA”. Abaixo, uma série de retângulos brancos adesivados, no chão, que simulam uma faixa de pedestres, palco da última pose do artista. Já perto do teto, um elemento externo, uma das elipses de bastão a óleo negro de Richard Serra. 

O contraste do Serra blasé com o devorador Breno de Sant’ana é gritante. O primeiro foi tornado uma coadjuvante pela ação do segundo. Uma lua negra asséptica “pós-minimalista” engolida por uma espécie de surrealismo contemporâneo. Apenas um dos sinistros naquele edifício eclético, que viveu abandonado por décadas e foi resgatado há quase 30 anos, para abrigar o acervo do Projeto HO. Gerido pela família de Hélio Oiticica e tendo o mérito de ter amplificado pelo mundo a obra de um dos nossos maiores artistas, o projeto deixou este edifício em 2009, argumentando as péssimas condições de preservação para a guarda da coleção. Meses depois, ocupando uma sala da residência da família, adaptada para funcionar como uma reserva técnica, sofre um incêndio – tão profetizado na sede anterior. 

Corta para 2023. Há dois anos, o Projeto HO retornou ao trágico edifício, cujo elevador interditado tem o espelho coberto por um tapume marcado por água. Nesse cenário, a precariedade e o desacerto (perturbador) dos ponteiros são gerais. A Marilyn – resgatada por Blonde (2022), filme dirigido por Andrew Dominik, para as novas gerações e parte da Cosmococa Program in Progress CC3 Maileryn, em cartaz – perde qualquer alusão de ícone pop, tornando-se uma reminiscência, no máximo um ícone histórico. A sensação de máquina do tempo desregulada é reforçada pelos anos prévios de políticas institucionais que não ofertaram alternativas para a interação com obras participativas, que se tornaram, por vezes, acúmulos de materiais ordinários, cujo valor, desde sempre, era indissociável da participação do público. Diante de um nobre penetrável, sem profissionais presentes ou placas de informação, na dúvida, seria melhor não interagir. Vivemos o anúncio distópico que Paul Valéry denunciou há mais de um século… Já não resta quase nenhuma delícia.

Os sobressaltos subsequentes ecoam, a todo tempo, que “da adversidade vivemos”. Breno de Sant’ana chega, aos 21 anos, produzindo há menos de três, com uma gestualidade arrebatadora. Um estudo profundo e comprometido, permeado de frescor e leveza, do que é gesto, inscrição, marca, símbolo, signo. Uma acrobacia que rearranja os limites do próprio corpo, cujos recursos são mínimos e, sinceramente, não creio que fosse necessário nada além da própria performance. Talvez a placa e nada mais. A grande força está nesses gestos esquisitíssimos.

O contraste do Serra blasé com o devorador Breno de Sant’ana é gritante. O primeiro foi tornado uma coadjuvante pela ação do segundo

Nas transições entre as classes altas (compradoras) e as baixas (exportadoras), as políticas identitárias, por vezes, têm sido negociadas como commodities. Na esteira desses últimos suspiros mercadológicos – o mercado da arte é parte do capitalismo que tem, como uma de suas regras, o “novo” -, assistimos a uma sobreposição de ambições pela vanguarda. As que buscam a sobrevivência e as novas, envergonhadas, que se atrapalham em refogar velhas fórmulas modernas de salvação, sem se assumir. Para as primeiras, o anacronismo é inevitável. Para as segundas, a disputa por reserva de mercado que está debaixo do tapete discursivo será substituída pelo novo novíssimo, em breve. 

Entre esses dois universos “vanguardistas” que disputam o agora está Breno de Sant’Ana. Ao montar seus chifres, sem artifícios, em uma síntese de formas silenciosas, suas costelas sobressaltam e insinuam suas entranhas, beirando o repulsivo. Seu corpo magro e esguio contorcido, de uma aparente vulnerabilidade, constrange e consome não só a elipse de Serra: sem vícios, não negocia, e transgride a lógica super discursiva/literal/autobiográfica atual para outro lugar – e, um alívio, que não tenha sido consequência dos conservadores. A exposição Solte a Sua Fera fica em cartaz até 4/3. A curadoria é de Rubens Takamine.