Embora seja difícil estabelecer quando o trabalho curatorial passa a ser nomeado e tratado como uma área específica, curar, etimologicamente, diz respeito a uma espécie de cuidado. Apropriando-nos dos dizeres de Susan Sontag, podemos estender para uma curadoria a definição de uma análise aguda e carinhosa das imagens.
A curadoria se volta para a montagem das imagens, tensionando conexões, contrastes e limites entre uma obra e outra. A curadoria é o fio condutor que rege um espaço: dita o tom, estabelece narrativas, põe em diálogo e busca promover novas relações a partir de um conjunto de obras. Propõe-se, a seguir, analisar a curadoria do novo espaço de arte contemporânea de São Paulo, a Pina Contemporânea, e sua primeira exposição temporária, Chão da Praça: Obras do Acervo da Pinacoteca.
Para isso, alguns critérios internos são levados em consideração. Mais importante do que oferecer respostas, a expectativa é encontrar perguntas disparadoras. Por fim, entender a sensação física de percorrer o espaço, observando a expografia e as possíveis deambulações propostas, isto é, quais são os percursos possíveis? E o que o entorno e o deslocamento até lá interferem na percepção sobre uma exposição que se põe a falar sobre travessias, comunidade e perambulação? Essas expectativas são cumpridas? Que lacunas são sentidas? Que relações inesperadas interpelam positivamente?
Jochen Volz, atual diretor da Pinacoteca do Estado, salienta que o novo prédio foi projetado para ser convidativo a um trânsito do público, estreitando laços com o parque e as ruas do bairro, e com maiores liberdades expográficas, uma vez que o prédio central é tombado e não permite alterações.
Se é pelo chão que se chega, antes de entrar na Pinacoteca há o bairro. Parei para comer em um pequeno restaurante armênio, que no verso do cardápio contava a história de imigração da família e do patriarca que foi poupado da morte em um campo de extermínio por saber fazer pão. O Bom Retiro recebeu no último século ondas de imigração de diferentes países. Há ruas cheias de vestidos de noiva, bares decorados com fotos de jogadores de futebol, homens em situação de rua dormindo na calçada. E esse caminhar pelo bairro me acompanhou até o novo museu.
A busca por aproximação e comunidade parece ser a proposta da exposição. Localizada no subsolo, ela deseja descer aos níveis do chão cerca de 50 obras. O texto de abertura do espaço recebe o visitante explicando que o projeto arquitetônico se colocou ao nível da Praça da Luz, convidando o público para habitação coletiva com a natureza e o entorno. A exposição propõe pensar a partir do chão e não das paredes brancas, elemento que na contemporaneidade parece ser um tanto constitutivo dos museus e galerias.
A ideia central é fazer o público refletir sobre os espaços e como eles envolvem uma noção de territorialidade e sentimento de pertencimento. Se a praça é um espaço de encontro, não à toa o texto da curadoria destacou três palavras norteadoras: travessia, vizinhança e transcendência. Das relações humanas à cartografia, o texto curatorial instiga a pensar: como as pessoas podem se relacionar com o espaço? Ele é lúdico? Violento? Pertence a quem? Há espaço para utopias e ideias fictícias?
Se é pelo chão que se chega, a curadoria está ciente da possibilidade de sentidos que o chão pode ter: enquanto percurso a ser percorrido, como local metafórico, origem, natureza, espaço do cotidiano, do conflito, do baixo (nos rebaixamos para acessá-lo), mas é também o espaço da rua, da sociabilidade, da brincadeira; é comunidade e território de uma ancestralidade roubada. Há espaço para toda essa justaposição e construção. O texto frisa também que não há percursos pré-definidos e convida o público a observar os caminhos possíveis, indicando também jogos e legendas nas obras ao longo da mostra que direcionam o público para um olhar mais atencioso e lúdico no museu.
A exposição tem curadoria de Ana Maria Maia e Yuri Quevedo, com colaboração de Horrana de Kassia Santoz, Pollyana Quintella, Renato Menezes, Thierry Freitas e Weslei Chagas. Esses curadores são diferentes em trajetórias, áreas de pesquisa e tempo de atividade, mas partilham um conhecimento do acervo da Pina e um interesse pela intersecção de arte contemporânea e arquitetura. Nesse sentido, a mostra inaugural parece se aproximar da sensibilidade de todos os curadores.
A exibição começa com Colar (2000), de Lygia Reinach, um colar de cerâmica que atravessa o espaço expositivo: a estrutura serpenteia e pode ser vista desde o painel com o texto curatorial. É uma peça de argila, isto é, seu material é a própria terra. Do modo como é montada, transforma-se em um chão que sobe, invade a vista do público, depois se organiza no chão em uma forma espiralar, hipnótica. Nessa nova curadoria, a obra é prenhe de novos sentidos: ao fazê-la sair do espaço delimitado, as fronteiras do museu são borradas.
Seguindo a obra, o público percorre um corredor de sugestivos pés, em Irruption Series/Série Irrompimento (2010), de Regina Silveira, e, simultaneamente, os sons de Paulo Nazareth caminhando preenchem o espaço, em sua performance gravada Galinha da Angola (2017). Andamos junto a ele pelas ruas de Joanesburgo e a obra opera como convite à perambulação: um estímulo a ser como o flâneur brasileiro pelo espaço expositivo.
A exposição desdobra-se ao longo de outros seis núcleos, apresentando obras de diferentes suportes e materialidades. O espaço captura a vastidão de possibilidades da arte contemporânea: de restos de papel a cabeças de boneca em uma engenhoca teatral.
Avizinham-se três seções na maior parte da galeria, oferecendo desdobramentos à proposta curatorial: a primeira discute a cidade como encontro; a segunda fica no meio, evocando o lúdico com esculturas; a terceira, em uma parede rosa, propõe reflexão sobre a identidade na arte contemporânea. A ideia era estressar as obras e a noção de que os espaços são ambivalentes: coletivos e individuais, repletos de uma massa anônima, mas também de comunidade.
Na primeira parede há o segundo e último texto da exposição apresentando um conjunto de obras. Essa pouca intervenção textual é bem-vinda, porque deixa os percursos mais abertos ao público e a outros modos de visitação. Indica uma consciência de que o espaço do museu não é uno, mas um espaço de/para narrativas, que se interligam, mas que não podem ser hierarquizadas.
Contudo, uma tendência ao longo da mostra é que quanto menor o conjunto de obras expostas em paredes ou salas, maior a coesão. Nesse caso, a “primeira” parede expositiva tem o seu impacto diluído pela quantidade de obras, perdendo a força da discussão, com relações que parecem muito polidas. Duas obras que parecem sintetizar bem a intencionalidade desse eixo de comunidade são Pindorama (2012), de Delson Uchôa, e Décimo Segundo Acordo (2015), de Matheus Rocha Pitta: ambas partem de retalhos que constituem a cidade, como materiais cotidianos e aparas.
Para uma exposição que se propõe a acessar o chão da praça faltaram obras que tratassem do precário e da miríade de coisas que as relações podem ser. As obras ficaram pregadas em paredes, com exceção de Décimo Segundo Acordo, que se apoia no chão. A coletiva poderia fazer o público descer mais, voltar o olhar e o corpo para o chão, com uma expografia menos tradicional, colocando mais obras e legendas no chão, transformando-o em espaço expositivo. Uma oportunidade perdida principalmente para as esculturas que ficam no meio do espaço – as gangorras e colares, obras que direcionam o olhar do público para cima e para baixo.
Além disso, a ideia de comunidade ainda é um tanto homogênea e não apresentava muitas conexões com o entorno do bairro. Se a proposta era fazer travessias, o passeio para outros lugares não conseguiu romper essa barreira imediata. É preciso frisar que as obras são parte da coleção do museu, de modo que seja natural haver limitações de acervo, contudo, isso indica uma lacuna nas aquisições da Pinacoteca e a necessidade de o museu contemporâneo buscar ampliar seu acervo e expandir suas visões para a região onde se insere e para grupos dissidentes.
Embora a Pinacoteca Contemporânea necessite expandir suas representações, é preciso valorizar algumas narrativas e aproximações curatoriais das obras: na parede rosa a retratística ganha contornos mais atuais, indicando novos modos de pensar a figuração no contemporâneo. Nela, com um conjunto menor de obras, é mais fácil criar um efeito no espectador. Essa seção parte de um gênero tradicional, subvertendo-o: pinturas simulam a 3×4 em Sidney Amaral, e Rosana Paulino ergue uma Parede da Memória (1994/2015). Não se trata do cânone historiográfico, mas de uma nova tradição do retrato, cutucando subjetividades, entre encontros e dissidências dos sujeitos retratados.
Um das salas reúne três obras: uma escultura com figuras nordestinas, uma fanfarra musical e um teatrinho zombeteiro – respectivamente, obras de Antônio Poteiro, Sara Ramo, e Ilê Sartuzi –, postas em conjunto criam novos sentidos, sonoridades e movimentos. A teatralidade da sala com acontecimentos inesperados evoca estranhamento e maravilhamento.
A quinta seção tensiona o que foi visto previamente: traumas da herança colonial e materialidades acerca do ponto de origem. Tiago Sant’Anna desvela tudo isso com camadas de açúcar desenterrando as cenas do Brasil escravista ilustradas por Debret, uma imagem sendo escavada e revelando passado em conjunção ao presente. Em Pele em Fuga (2002), de Ernesto Neto, os corpos deixam de ser territórios contidos e passam a ser organismos híbridos, fronteiras entre o maleável e o estilhaço.
O lúdico retorna em Brincar com Lygia (2005), de Martinho Patrício, que transforma Os Bichos em “saquinhos de lembrancinhas” infantis, convidando o público a jogar e explorar as formas. Esse tipo de início ou encerramento da exposição cutuca velhas feridas expositivas. Mas, aqui, a postura de afastamento se desmancha ao convidar o público para manipular a obra.
E, assim, a exposição Chão da Praça termina, mas todo final é também um convite para outras entradas.
SERVIÇO
Chão da Praça: Obras do Acervo da Pinacoteca
Até 30/07, 10h-17h
Pina Contemporânea (av. Tiradentes, 273, Luz, São Paulo)
www.pinacoteca.org.br
Letícia Castro é graduanda de História da Arte na UNIFESP. Atualmente é estagiária da Coleção de Arte da Cidade do Centro Cultural São Paulo (CCSP).
Este texto foi produzido no contexto do curso Estudo das Exposições, da Unifesp, ministrado pelo professor Vinicius Spricigo.