Uma das mais comuns experiências sensíveis afro-diaspóricas no brasil é a fabulação. Para além do ímpeto compulsório da discriminação, o ato de imaginar se enraizou ao longo do tempo como a manifestação mais congruente do subterfúgio social operante. Pois mesmo que a fantasia seja a propulsão dos mais íntimos deleites y, aqui, se torna inegável reconhecer o arquipélago sócio-cultural historicamente possibilitado pelo direito de sonhar, o horizonte das ideias de futuro rufa pela factualidade enunciada como forma de emancipação dos mecanismos segregatórios que penetram identidades sociais contemporâneas. Em outras palavras: é preciso reconhecer o ontem para projetar o amanhã.
Antes de fisgar o percurso pela constelação da genealogia cultural, devemos considerar que fomentar o esquecimento y a desinformação possui função utilitária diante dos instrumentos de dominação y exploração sobre o outro, pois é a partir da supressão de memórias que instalam-se ideias condicionais sobre o sujeito. Dessa forma, quando a prática do esquecer é tensionada em sua extremidade ao ponto de conceber o não existir, ou a extinção plena da existência, não há atribuição digna dada às elipses da evolução dos tempos – como o futurismo neo-libero-colonial ousa bocejar – mas, sim, uma vivência-vívida-violenta y imperiosa de genocídio. O mesmo vale na via contrária fundamentada em uma dinâmica do individualismo universal exclusivista de castas y classes hegemônicas-dominantes, na qual preserva-se somente aquilo que se estabelece pairado sobre o desejo do unânime.
Dentro dessa perspectiva, então, a menção profunda à diversidade se respalda para além da superfície da escolha acumulativa y destila caminhos à perpetuidade expandida de outras formas de viver resultando na confluência da interconexão elementar entre humanidade, localização y território. Portanto, assim como sua transmissão, a descentralização do documento factível se consagra como a efígie da pluriversidade, uma vez que ela confronta – em sua essência múltipla – imposições uníssonas y disseca a minuciosidade do que, por coerção, se tornou historicamente desconhecido.
Contudo, apesar de haver um entendimento nítido dos antídotos possíveis à amnésia histórica na experiência de um corpo afro-diaspórico no Brasil, existem três condutas importantes para a construção de coreografias de resistência cultural: a recuperação de cosmologias indígenas na construção y manuseio, respectivamente, de sociedades y matérias – a partir dos povos originários de África, o reconhecimento da descendência genealógica afro-brasileira como indígeno-africana em um contexto pré afro-atlântico y, ainda, o cultivo y hereditariedade de saberes entre gerações.
Quando navegamos pela tradição têxtil em África encontramos inúmeros legados intrínsecos y atribuídos com a passagem do tempo nos modos de utilizar, confeccionar y conceber trama y urdume. Da pigmentação à tecelagem, é inevitável não perceber a natureza como a genética comum entre todas as práticas têxteis orbitantes ratificando, assim, o orgânico como mestre molecular da composição da tangibilidade contínua que demarca territórios, abraça corpos, celebra dádivas, preserva histórias, distingue etnias, veste o sagrado y contempla tudo que a fibra é capaz de cumprir logo que manuseada pela humanidade. Deve-se qualificar como tecnologia a manufatura y, igualmente, o ato de manufaturar a partir de toda forma de vida expelida pela terra.
Têxtil é política! Assimilar a experiência afro-descendente brasileira com o que antecede tudo aquilo que incorporamos como modelo-de-sucesso-liberal-pretonotopo-a-seguir da negritude estadunidense é instaurar portais vitalícios para tecnologias milenares y entrar em processo de profunda reconexão com os bens essenciais da natureza, essa a qual provém, não só, meios de subsistência como também a vitalidade cultural de linhagens convexas. Nesse texto, o ponto biossistêmico é, inclusive, utilizado como uma raia condutora de tudo que entrelaça a percepção arqueológica y a capacidade cultural dos insumos nas perspectivas histórico-sócio-ético-econômicas de uma civilização, pois nele concentram-se repertórios que guiam tradições y motivações. Como é dado na pesquisa da escritora, filósofa y cientista, Vandana Shiva, território y meio-ambiente são, sim, indissociáveis por categoria y, principalmente, pelas circunstâncias geopolíticas que os aprisionam nas inúmeras guerras y revoluções causadas y reagentes à impulsividade da lógica de extração.
Assim, mais do que decorativamente celebrar o documento têxtil como obra rara do passado, trancafiado em meio a cúpulas que ritualizam a ideia embriagada da magnitude humana, é preciso promover a reabilitação da matéria como uma função crucial à decolonialidade. Uma das principais vias capazes de revitalizar a prática têxtil africana à arqueologia do futuro é o entendimento inerente de como a regeneração dos recursos naturais está fadada a extinção por meio do ecocapitalismo, que significa a industrialização da produção agrícola y o rompimento com a genealogia cultural – sobretudo de países do Sul Global – por meio da circuncisão de seus modos de produção tradicionais.
Ainda utilizando Vandana Shiva como base discursiva, o uso y a difusão desenfreados de OGMs (organismos geneticamente modificados) como optativa sustentável é empregado na contradição científica dos efeitos colaterais da biotecnologia sobre a biogeocenose a longo prazo, limitando a manutenção da biodiversidade, danificando solos y lençóis freáticos, y interrompendo ciclos de vida naturais de insetos y animais que dão sentido aos fenômenos do ecossistema que afetam diretamente os cultivos de algodão, seda, lã, plantas, fungos y bactérias de propriedade pigmentícia como carotenóides, antocianinas, indigotinas y melaninas. Para além do que é refutado pelo neoliberalismo verde, há em suma a preocupação do condicionamento econômico de populações sob a batuta de monopólios que fragilizam o desenvolvimento do território de acordo com as prioridades do mercado y, consequentemente, transformam o mito da globalização em uma diligência de marginalizações, desigualdade, escassez y bloqueio ao acesso ã qualidade de vida.
Portanto, legitimar a transmissão de saberes milenares na confluência entre humanidade, localização y território a partir do cultivo da matéria natural, como forma de preservação da cultura africana, significa muito mais do que um contraposto expositivo à crise identitária estética afro-diaspórica. Sendo em realidade, uma das principais estratégias pilares da revolução ambiental mundial em ode à justiça social y climática, incapazes de serem atingidas por meio de sistemas evolucionistas de ordem supremacista. É permitido lembrar.
Texto originalmente publicado no catálogo da exposição Entre a Cabeça e a Terra: Arte Têxtil Tradicional Africana, curadoria de Renato Menezes e Danilo Lovisi na Pinacoteca de São Paulo