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The Flag [La Bandera], 2003-2006, de Nicolás Dumit Estevez, da coleção do Museo del Barrio. Instalação articula ícones latinos e norte-americanos, como mobiliário vitoriano e brasão de armas da República Dominicana (Fotos: Cortesia Museo del Barrio)
Postado em 23/01/2020 - 10:10
El museo goes latinx
O termo latinx ajudou a colocar no mapa do debate racial uma perspectiva menos dualista e mais amparada nas teorias de miscigenação
Rodrigo Moura

Estou a bordo de um voo para Las Vegas, onde vou me reunir com outros curadores para uma série de visitas a ateliês de artistas durante uma tarde de sábado. A viagem faz parte de uma pesquisa em diversas cidades dos Estados Unidos para selecionar os participantes de uma trienal que o Museo del Barrio está organizando, a ser inaugurada no segundo semestre de 2020. Além de Vegas, visitamos Chicago, Miami, Houston e Los Angeles, entre outras grandes cidades com forte concentração latina. A exposição será uma nova versão dos S-Files, uma bienal que aconteceu entre 1999 e 2014 com foco em artistas latinos baseados na região de Nova York. A curadoria da mostra será feita a seis mãos, com a curadora Susanna Temkin e a artista baseada em Nova York Elia Alba.

No novo formato vamos incluir pela primeira vez na exposição artistas residentes em outras partes do país, mais uma vez com todos eles tendo a origem latina em comum. A maior novidade desse projeto, no entanto, é que vamos trazer para o centro da exposição o termo latinx, a forma neutra de gênero de denominar as pessoas com origem étnica em países da América Latina vivendo nos Estados Unidos. O termo surgiu na comunidade queer no início dos anos 2000, mas se alastrou e ganhou relevância como parte do esforço coletivo de tornar a língua espanhola menos genderizante. Não mais latino ou latina, como costumava ser referida a população com origem étnica em países da América Latina, mas latinx, abarcando todos os gêneros.

Como resultado, a denominação ajudou a colocar no mapa do debate racial nos Estados Unidos uma perspectiva menos dualista baseada na separação entre negros e brancos e mais amparada nas teorias de miscigenação. Substituindo a antiga dualidade surge uma nova fricção entre anglo-americano e latino-americano. Este é o tema do livro do jornalista Ed Morales Latinx – The New Force in American Politics and Culture (Verso, 2018), um fundamental estudo sobre o tema. O termo também abriu o campo para interseções identitárias. Identidades afrodescendentes ou indígenas ganham novas plataformas ou conotações no campo do LatinX, assim como as identidades feministas, queer e trans.

Se expandirmos o entendimento, como seria bem-vindo, América Latina passa a incluir também os Estados Unidos, país onde anglo-americanos e latino-americanos convivem e criam fricções nos debates em torno de raça e cultura. O futuro, afinal de contas, é marrom. Estima-se que hoje a população latina nos EUA contabilize em torno de 60 milhões. No ano de 2043, segundo estimativas do censo, as chamadas minorias passarão a ser maioria e a população branca será pela primeira vez menos numerosa do que a não branca nos Estados Unidos.

Studio visits em Vegas
Com sua paisagem desértica e promessas de sorte fácil nas mesas de jogo, Vegas é uma das cidades que refletem esse rápido crescimento, com a população velozmente tornando-se cada vez menos branca. Os artistas que visitamos, a maior parte deles de origem mexicana, refletem essa condição nos seus trabalhos, lidando com temas como imigração, raça, corpo, cultura, economia, linguagem – temas que ecoam eixos temáticos levantados para a trienal.

A origem latina em comum não significa um achatamento de diferenças a favor de um nacionalismo étnico. Pelo contrário, é justamente no encontro entre diferentes experiências de ser latino nos Estados Unidos que a exposição e sua pesquisa buscam sua força – os porto-riquenhos de Nova York (responsáveis pela própria criação do Museo del Barrio); os chicanxs da Califórnia do Sul; os salvadorenhos filhos de refugiados da guerra civil; os cubanos na Flórida; os sul-americanos; os dominicanos; a vivência queer e trans das casas do ballroom scene (porque, afinal de contas, como escutei numa mesa-redonda que o museu organizou sobre a House of Xtravaganza: “Latinx é queer”); o poder da arte das mulheres que cresceram sob a influência das figuras femininas fortes contra a visão imperialista do patriarcado branco e hétero; a herança cultural africana explicitada na obra de tantos artistas de tantas partes; a herança nativa americana idem. Isso apenas num mapeamento inicial.

Como apontou a professora Adriana Zavala no contexto do think tank que o museu promoveu em outubro para discutir a exposição e suas premissas: “Latinx é arte americana (dos Estados Unidos), mas pode absolutamente servir como ponte entre mundos, e não a posição ‘nem aqui nem ali’ que serviu apenas para marginalizar a arte e os artistas com os quais tanto nos preocupamos”. Zavala é a diretora do U.S. Latinx Art Forum, que trabalha coletando dados para revelar a sub-representação de arte latinx na academia, nos museus e no mercado de arte. 

Pelea de Gallos [Cockfight], 2002, acrílico sobre tela de Miguel Luciano

No mainstream da arte contemporânea, o termo tem sido instrumental para apontar a marginalização desse grupo. Com a guerra aos imigrantes mexicanos e centro-americanos declarada pelo governo Trump e o terror da experiência das famílias separadas em campos de concentração, essa mobilização no campo da cultura é fundamental para promover visibilidade e corrigir a distorção criada pelas ofensivas do governo ao criminalizar a população latina – cuja contribuição para o desenvolvimento dos Estados Unidos é inestimável e não apenas do ponto de vista cultural. Se pensarmos a escalada conservadora em outros países das Américas, como o Brasil, essa plataforma deixa de ser apenas uma questão local para, efetivamente, criar pontes  com outros contextos afetados por políticas neofascistas.

A criação do Museo del Barrio, há 50 anos, respondeu a questões semelhantes ao propor um centro de referência em Nova York, inicialmente para a população porto-riquenha. A instituição foi um ponto focal para o movimento de arte nuyorican (contração de “new yorker” e “puerto rican”, usada para denominar porto-riquenhos na diáspora nova-iorquina), que aproximou a arte produzida aqui a uma identidade política e indígena. Em março de 2020, o museu organiza uma exposição do Taller Boricua, um ateliê gráfico coletivo surgido simultaneamente ao Museo e que criou parte de sua identidade visual, além de uma série de pôsteres políticos. A exposição faz parte de uma serie de três mostras monográficas, que também enfocarão os primeiros anos do Museo, dedicadas a Rafael Montañez Ortiz (artista multimídia e fundador do museu) e Hiram Maristany (fotógrafo, ativista social e diretor do Museo nos anos 1970). Nesse movimento, apontando para suas origens e também lançando bases para o futuro, com a criação da Trienal, o Museo foca em seu passado para continuar comprometido com seu ethos para as próximas gerações.