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Saída de Gandhi, Pelourinho (1999), de Lita Cerqueira [Foto: Divulgação/ Projeto Afro]
Postado em 11/04/2025 - 10:21
Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira em Salvador
O Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab) recebe mostra curada por Deri Andrade, fundador da plataforma Projeto Afro

A exposição nos fornece elos expandidos. Correlações muitas vezes indiretas e não raro desveladas menos pela dimensão visual e mais pelas pesquisas conceituais e técnicas que os trabalhos manifestam com resultados tão diversos. O núcleo Linguagens, por exemplo, é uma demonstração exata dessa proposta. Seu texto nos informa que enquanto a produção de Rubem Valentim (1922-1991) esteve atrelada à abstração geométrica, ao construtivismo e ao concretismo, determinando a leitura crítica hegemônica sobre sua obra, a pesquisa do artista está muito mais conectada aos encontros entre as ancestralidades africanas, “confrontando qualquer categoria que o tentou limitar”. 

Prossegue assim o texto curatorial de apresentação do núcleo: “Neste eixo da exposição, o fazer artístico acontece nas mais diversas materialidades. Com base nas pesquisas em ateliês, artistas de momentos distintos tensionam tais regras. À medida que a construção de uma identidade nacional esteve atrelada ao progresso do país, artistas reconstroem a ideia de linguagem, em novos conceitos e paradigmas para se pensar em um outro referencial de arte produzida no Brasil”.

Vista da exposição, com Objeto Emblemático 4 (1969) em primeiro plano e Objeto Emblemático 2 (1977) em segundo plano, ambas de Rubem Valentim [Fotos: cortesia Muncab]
Tendo cada núcleo uma pessoa artista como alicerce e polo irradiador, o Linguagens irá nos guiar pela ideia de construção. Sim. A construção da linguagem plástica é consequente à construção da linguagem e dos códigos sociais, sem deixar de tangenciar a construção das memórias e dos espaços em si. É esse percurso que a curadoria sugere quando saímos das serigrafias de Rubem Valentim – Emblema 21/120 (1989); Emblema XVIII (1989) e Emblema 19/120 (1989). Esta última apresenta um uso distinto de sombra e luz, portanto da cor, para sugerir profundidade. Mais perceptível nos círculos, esse uso também se manifesta nas formas semiquadradas e semirretangulares em amarelo. Nas formas em vermelho-bordô, na parte superior da obra, o efeito de profundidade não se imprime. Nelas não se encontra o leve cinza utilizado entre as cores claras e o cinza escuro anterior ao preto delimitador das formas, distinguindo-se assim das outras obras nas quais a bidimensionalidade é resoluta. 

Na esquina seguinte, ainda com Valentim, temos Objeto Emblemático 4 e 2 (1969 e 1977, respectivamente) que, assim como as serigrafias, também pertencem à coleção do Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira (Muncab). Nestes já encontramos a tridimensionalidade construtiva no seu ápice. Saltando da base, as partes inferiores, sobretudo da segunda obra, se encontram como espelhamento e múltiplo da parte em riste. A luz utilizada na montagem produz o efeito devido. A inferior esquerda e a inferior direita se anulam/unem e formam ou ampliam a forma expressa na escultura crescente. Uma análise sútil acerca dos desdobramentos e da comunicação da obra e da sua expressão mesma. À esquerda de Valentim, Natan Dias (Vitória, ES, 1990) e as obras Sol e Corpo (2020) e Incitação à Teimosia (2021). A primeira expressa também a anulação de formas que se expandem, espelham e complementam em direções opostas. Há, além disso, uma relação entre Valentim e Dias pelo uso das mesmas formas. Por exemplo, repetem-se semicírculos, retângulos e triângulos. No caso de Dias esses se apresentam na figura do pontiagudo, como extremo da seta. Observamos portanto o desdobramento de linguagens próximas apresentadas em matérias distintas. Construção. 

Vistas com obras de Will de Belo Horizonte [Foto: Divulgação]

Do lado direito do trabalho de Valentim, em frente à obra de Dias, o artista mineiro Will de Belo Horizonte (1984) participa com as obras Sobreaviso e Sankofa (ambas 2023), que também produzem um espelhamento das cores e entre si uma vez que as cores e formas se apresentam nos dois quadros em dimensões e posições distintas. O triângulo ou a pirâmide de Sankofa tem ao seu lado uma sombra também em formato triangular que, pela posição que a obra ocupa, parece refletir em Sobreaviso, à sua direita. Sombras espelhadas numa paisagem composta por tons terrosos e alguns azuis de menos destaque, com maior ou menor retidão geométrica. A partir daí outras paisagens se anunciarão. Canteiro (2022), da soteropolitana Milena Ferreira (1982), investiga as ruínas e as memórias da cidade de Salvador por meio do baixo relevo em tetra pak e da monotipia sobre saco de cimento. 

Durante sua pesquisa sobre ruínas, Ferreira chegou à conclusão de que as construções vivem, sofrem e vivem novamente quando estão desfalecendo. Temos uma noção de tempo espiralar na relação com a vida e a morte, porque a memória também é uma morte, um momento inacessível durante a nossa vida. Essas construções carregaram também signos compartilhados por outras pessoas. Quando a artista ainda apresentava seus trabalhos em pequenas feiras de arte e artesanato, o contato direto com o público lhe revelava a dimensão coletiva das memórias que seus trabalhos sempre despertaram e seguem despertando. Ali já se percebia a imensa população que residia nas memórias das ruínas, no vazio das casas. Ressalta a dimensão simbólica daquelas ruínas e construções. 

Canteiro (2022), de Milena Ferreira [Foto: Divulgação]
Diante da obra de Milena Ferreira, encontramos uma instalação de Davi Cavalcante (Aracaju, SE, 1994), Do que São Feitos os Muros (2020 -), composta por tijolos e cimento. A obra foi realizada a partir de uma reflexão do período pandêmico sobre a separação dos corpos e, claro, os fatores que incidem numa expressão simbólica desses distanciamentos. O artista realizou uma performance de aproximadamente três horas no dia da abertura oficial da mostra. Nela riscou nos blocos palavras como “silenciar”, “ignorar” e “calar” para unir a outras, como “odiar”, “presumir” e “culpar”, que já integravam o muro erguido pelo artista diante do público ao longo das itinerâncias da exposição. Foi só em Salvador que a obra atingiu a dimensão ideal, ou seja, suficiente para bloquear a visão de quem está do outro lado. Para tanto, deveria alcançar a altura dos olhos, separando de fato quem está de um lado e quem está do outro. 

Sol e Corpo (2020), de Natan Dias [Foto: Divulgação]

Ao lado, Lia Letícia (Recife, Pernambuco, 1975) apresenta Caminhada Contra a Ideia de Progresso (2007). Na videoperformance, a artista caminha de costas por monumentos importantes da capital do País. A montagem da obra também propõe cortes recorrentes, causando uma fragmentação das paisagens e movimentos, contrariando a  “progressão” dentro dos parâmetros de linearidade e fluidez. Ou seja, movimento (para trás) e forma (fragmentada) ensaiam contra a ideia de progresso linear. Seguindo o percurso proposto pela exposição, encontramos Washington Silveira (Curitiba, Paraná, 1969), com Martelo (2011-2012), uma escultura em madeira que une prego e martelo numa espécie de alienação ou dedução da autossuficiência. 

As fotografias da série Estudo sobre Natureza Morta (2015-2020), de Adriano Machado (Feira de Santana, Bahia, 1986), geram um atrito entre seus modelos, as paisagens que habitam e a noção de natureza-morta presente na história da arte ocidental. Todas as quatro pessoas retratadas vestem o mesmo manto plástico com imagens de frutas. Inanimadas e plásticas. É um dos desdobramentos da longa, densa e madura pesquisa do fotógrafo baiano sobre o retrato de pessoas negras e o olhar fotográfico. No percurso da exposição, essas fotografias nos levam ao encontro de agência, movimento e sobreposição entre corpos negros e as paisagens. Virando a esquina, Almir Mavignier (Rio de Janeiro, RJ, 1925) participa com Docugrafia, Álbum III (1967-2010), serigrafias de tiragem digital que também integram o acervo do Muncab. Ao se referirem à arte óptica também inserem uma construção já com ferramentas digitais e o desenvolvimento de uma linguagem afetada pela tecnologia. 

Vista de fotografias da série Estudo sobre Natureza Morta, de Adriando Machado [Foto: Divulgação]
Marcus Deusdedit (Belo Horizonte, MG, 1997) expõe sua 1 É 4, 3 É 10, da série P.M.R Meets Nike (2022), uma cadeira feita de aço tubular com uma lona sobre a qual está serigrafada a logo da Nike. Deusdedit tem uma pesquisa relacionada à relação entre arquitetura e design tensionada ou enriquecida com o deslocamento de códigos estéticos marcantes para o consumo na era da globalização digital. Sua cadeira faz uma forte menção ao design de cunho popular e é uma réplica da Poltrona Paulistano, do Paulo Mendes da Rocha  Essa mesma natureza é abordada na videoperformance O Peso do Esplendor (2024), de Rafa Bqueer (Belém, PA, 1992). A obra foi comissionada pela curadoria de Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira e, nela, Bqueer caminha com uma escultura em metal (o esplendor, carregado pelas passistas) pelas ruas do Bixiga, São Paulo, numa proposição sobre a gentrificação da região. 

Frame de O Peso do Esplendor (2024), de Rafa Bqueer [Foto: Reprodução]
Assistindo ao vídeo, reconhece-se a sobreposição dos pesos, metais e construções. Por trás de Bqueer, a construção material, oriunda de uma noção técnica valorizada. Já seu caminhar, sua fantasia e esplendor enaltecem a cultura carnavalesca, resultado de uma construção cultural, imaterial, o carnaval sofre pela velha dicotomia entre logus e techné. Segundo essa lógica demasiadamente ocidental, o que produz efeitos materiais visíveis e lucrativos é mais importante do que aquilo cujos efeitos são múltiplos mas não necessariamente palpáveis e imediatamente mensuráveis. A obra de Bqueer é também uma crítica ao progresso uma vez que, segundo o texto da legenda expandida que acompanha a obra, “quando lança seu corpo na ladeira do bairro Bixiga (São Paulo), trajada com a estrutura, ela revisita o processo de desocupação da antiga quadra da escola de samba Vai-Vai, por conta da construção de uma nova linha de metrô. Situação que provocou o deslocamento dessa tradição cultural negra em um bairro que já sofre apagamento de suas origens afro-brasileiras nas narrativas hegemônicas”. A legenda ressalta ainda o enlace da dimensão técnica proposta pelo núcleo/eixo da exposição: a construção a partir de Rubem Valentim. Lemos: “A obra ainda estabelece conexão com a história da arte por meio dos marcantes elementos visuais de Rubem Valentim, desenhados sobre a fantasia usada pela artista”. 

O projeto expográfico de Matheus Cherem, com Vinicius Andrade e Vitória Mazzaro, além de expressiva e alinhada aos propósitos conceituais da curadoria, gerando de fato esquinas, encruzilhadas, permite assim o espaço necessário para compreensão das individualidades dos trabalhos. A diversidade se mantém, embora o diálogo visual imediato varie. A primeira sala do núcleo Orun, por exemplo, tem alguns trabalhos que já dialogam mais explicitamente no campo visual e temático, mesmo que se mantenha a pluralidade técnica. No triunfante início do núcleo Cosmovisão, temos da esquerda para a direita, obras de Maria Auxiliadora, Heitor dos Prazeres, Guilherme Almeida e Tercília dos Santos. O núcleo tem Auxiliadora como artista homenageada e irradiadora. Nesse sentido, a celebração, o ambiente festivo, bem como a relação que a artista estabeleceu com a costura, os tecidos e o bordado, numa proposta visual marcante, aparecem de forma mais ou menos sutil ao longo do percurso no eixo expositivo. Os/as artistas que integram o início do núcleo, embora tenham um tema comum nas obras apresentadas, participam com variações muito bem pontuadas no uso que fazem da pintura, mantendo o compromisso da curadoria com manipulações distintas, mesmo no uso da mesma técnica – a pintura. 

Ao longo do mesmo Cosmovisão, temos Manauara Clandestina (Manaus, AM, 1982) com Memórias do Retorno (2021), instalação com peças de têxteis, roupas costuradas e coladas. Sua obra se encontra em diálogo, visual e gritante distinção técnica em relação à obra de Nay Jinknss (Belém, PA, 1990), a série fotográfica Do Mar ao Rio (2022). Na encruzilhada seguinte, a mesma relação conceitual se dá entre o trabalho de Ueliton Santana (Rio Branco, AC, 1981), Amazônia (2014), uma pintura em acrílica sobre rede de algodão, e a colagem digital de Gê Viana (Santa Luzia, MA, 1986), da série Atualizações Traumáticas de Debret (2020-2021). A diversidade dos suportes fica particularmente nítida na obra Deus Lhe Pague (2023), de Helô Sanvoy (Goiânia, GO, 1985). Uma instalação composta por madeira, couro, gêneros alimentícios, educacionais, de saúde, moradia e materiais diversos. Uma demonstração da massiva presença de obras instigantes na exposição. 

Vista da série fotográfica Do Mar ao Rio (2022), de Nay Kinkss [Foto: Divulgação]

Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira é, de fato, fruto de uma pesquisa que reflete a amplitude das produções e propõe relações que não estão necessariamente imediatas na camada imagética ou, por vezes, não é mesmo na técnica, mas aborda as questões de forma plural. Encruzilhadas tem como pilar de sustentação o mapeamento do Projeto Afro, do qual Deri Andrade, curador da exposição, é fundador. Inclusive, a importantíssima plataforma de mapeamento de artistas negros/as/es tem uma ala no Muncab, com alguns livros, a cronologia da plataforma, catálogos, tablets e uma apresentação do Projeto Afro para o público. Tal mapeamento serviu mesmo para destacar que a encruzilhada é um espaço de confluência de múltiplas expressões e forças. Isso é muito expressivo na exposição.

Vista da exposição [Foto: Divulgação]

O Muncab, antes de receber Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira, realizou a exposição Raízes: Começo, Meio e Começo,que esteve em cartaz por quase dez meses. A mostra marcou o cenário das artes baianas, apresentando muitos/as artistas ainda não reconhecidos ou inseridos no sistema das artes. Alguns estavam nas primeiras exposições, entre os quais destaco uma geração de jovens artistas: Gustavo Araújo, Jamex, Amorin Japa, Meneson Conceição, Vtoria Carvalho, Nalbert e tantos outros nomes que o limite da escrita não permite citar. Ter no início da sua carreira uma participação no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira é algo que marca a carreira de um/a artista, sobretudo em se tratando de um cenário como o de Salvador, carente de injeções e suportes financeiros. Foi um gesto histórico também porque abriu o Muncab para produções ainda não visibilizadas pelos demais museus do/no Estado. 

Com Raízes seguida de Encruzilhadas, o Muncab se coloca como um museu capaz de escutar e acolher produções da Bahia na mesma proporção que sugere e amplia as discussões sobre as artes baianas e brasileiras. Essa dinâmica de acolher uma proposta baiana e em seguida acolher uma externa, se preservada, será de grande contribuição para o ecossistema das artes plásticas na Bahia em desenvolvimento. Seria um impulsionador cuidadoso para a cidade. Isso porque Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira propõe perspectivas sobre artistas e obras (afinal disso se trata uma exposição) muito valiosas, propulsoras e desafiadoras para artistas da cidade. Para o público visitante em geral, fica o desafio: esquecê-la. 

 

SERVIÇO
Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira
Até 31/08
Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Rua das Vassouras, 25, Centro Histórico de Salvador)