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Postado em 19/10/2023 - 3:20
Enquanto há debate informado, há esperança
Historiador esclarece que seu artigo pretendeu radiografar como o mercado financeiro engoliu o meio artístico, além do enfraquecimento da crítica, em decorrência da ascensão das redes sociais

Começo com um agradecimento à revista seLecT_ceLesTe pelo acolhimento em me conceder esse espaço para responder ao artigo “O fascinante apocalipse”, de Daniele Machado, postado aqui na terça-feira, dia 17. Em segundo lugar, quero agradecer à própria Daniele pela leitura atenta do meu artigo “Arte contemporânea, engolida pelo mercado, vive declínio”, publicado no caderno Ilustríssima da Folha de S.Paulo no sábado passado, 14/10. Nesses tempos de falta de escuta, é um privilégio ser lido e comentado. Mesmo assim, quero contestar algumas distorções em seu artigo. Há sempre uma brecha entre o que a gente escreve e o que os outros lêem. Nesse caso, a brecha ficou grande demais para deixar passar sem comentários.

A autora começa com uma reclamação de que faltam referências no meu texto. Cobrança um tanto descabida, a meu ver. Meu artigo – como o dela, aliás – foi publicado como artigo de opinião. A rubrica “opinião” já anuncia que o texto trará a visão subjetiva da autora ou do autor. Ainda por cima, artigos de jornal precisam ser enxutos. Em jornais de grande circulação, onde o pouco espaço é disputadíssimo, não há margem para longas explanações, muito menos para referências ou notas de pé-de-página. Nesse contexto, qual o sentido de cobrar maior fundamentação? Talvez seja estratégia para desmerecer uma opinião com a qual a autora não concorda, sem ter que entrar nos méritos do argumento.

Daniele questiona, em particular, a premissa que serve como ponto de partida para meu artigo – de que existe uma percepção comum de declínio nas artes visuais. “Eu não sei quem percebeu isso,” ela escreve. Porém, logo em seguida, ela revela que sabe sim, quando passa a citar os comentários feitos num post de Facebook que publiquei no dia 19/9. Nessa postagem, eu indagava se outras pessoas partilhavam essa percepção, ou se era apenas impressão minha. Veio uma enxurrada de comentários, a maioria afirmando sentir o mesmo. Certa ou errada, a percepção existe, e não é nada incomum. O artigo passou a semana na lista dos mais lidos do caderno Ilustríssima. Se o grau de difusão do sentimento era ponto controverso, deixou de ser.

Pode parecer bobagem, da minha parte, ficar falando aqui de uma postagem de Facebook, mas Daniele dedica boa parte de sua crítica exatamente a esmiuçar os comentários do referido post. Ela pinça alguns com o intuito de demonstrar que as “lacunas deixadas” no meu texto “só poderiam funcionar como uma isca” para pessoas que querem colocar “as temáticas identitárias como as vilãs da história”. Ou seja, ela me recrimina por aquilo que eu não escrevi. É enganosa a tentativa de me descredenciar por associação a outras pessoas e seus pontos de vista. Sou inteiramente responsável pelo que escrevo, mas não pelo que os outros projetam para cima de mim.

De fato, diversos comentaristas no Facebook usaram meu post como pretexto para ventilarem opiniões negativas sobre as chamadas pautas identitárias. Eu não tenho o hábito de censurar ou apagar comentários na minha linha de tempo, a menos que sejam ofensivos ou agressivos. Respeito o direito de cada um manifestar sua opinião naquele fórum, dentro dos limites da civilidade. Note-se, porém, que apesar da preponderância desses comentários, não incorporei seus posicionamentos ao meu texto. Ao contrário, como a própria Daniele foi obrigada a admitir, toquei diretamente nesse ponto uma única vez: para afirmar que considero simplista o argumento ligando o declínio artístico aos movimentos identitários. Falando bem claro, discordo do argumento e suas premissas. Se eu concordasse com ele, teria sido fácil assumir essa posição no meu artigo, o que certamente teria rendido bons cliques das pessoas erradas.

Daniele envereda por uma série de outras acusações que não vou esquadrinhar aqui. Ela me acha passadista, conservador, saudosista de uma “belle-époque da arte contemporânea” que supostamente teria existido no final do século passado. Sou mais velho do que ela, sem dúvida, mas acho que mereço respeito por minha trajetória como estudioso e pesquisador. Há três décadas, venho escrevendo artigos, ensaios e livros sobre história da arte sustentados no tripé conceitual: raça, classe e gênero. Nos anos 90 noventa do século passado, pelos quais ela me acusa de nutrir um “confuso espírito de fin-de-siècle atrasado”, eu já estava na trincheira do combate ao elitismo e ao formalismo na arte. Longe de ser viúvo do pensamento atrasado daquela época, sou um sobrevivente dele.

Como alguém habituado a ver a arte e sua história por um crivo social e cultural, o que realmente me incomodou no artigo de Daniele é que ela quase não abordou o argumento central do meu texto. Quem lê o artigo dela, sem antes ter lido o meu, dificilmente adivinharia que o meu se dedica a radiografar como o mercado financeiro engoliu o meio artístico nessas primeiras décadas do século 21. Em segundo plano, meu artigo se volta contra o enfraquecimento da crítica de arte, em decorrência da ascensão das redes sociais. São esses os alvos da minha investida: um mercado de arte desregrado e uma nova paisagem midiática que já nasceu sem regras. A posição que defendo talvez seja apelidada de saudosista por alguns, mas prefiro chamá-la de combativa. Advogo a favor da crítica especializada, como guardiã de alguns valores artísticos que deveriam ser preservados em meio à desejável abertura para novas linguagens e temáticas.

Não tem sentido repisar os pontos do meu artigo na Folha. Apenas gostaria que as críticas ao meu texto se ativessem ao que escrevi. Ficaria ainda mais feliz se respondessem aos pontos urgentes que levantei. Hoje em dia, a lógica do mercado opera globalmente, e todo cuidado é pouco para não permitir que ele se aproprie de nossas falas e nossos fazeres, transformando até mesmo lutas justas em disputa midiática e, por conseguinte, esvaziando sua força. Apesar das discordâncias, quero cumprimentar Daniele e a revista seLecT_ceLesTe pelo diálogo. Enquanto há debate informado, há esperança.

CONSIDERO SIMPLISTA O ARGUMENTO LIGANDO O DECLÍNIO ARTÍSTICO AOS MOVIMENTOS IDENTITÁRIOS. FALANDO BEM CLARO, DISCORDO DO ARGUMENTO E SUAS PREMISSAS. SE EU CONCORDASSE COM ELE, TERIA SIDO FÁCIL ASSUMIR ESSA POSIÇÃO NO MEU ARTIGO, O QUE CERTAMENTE TERIA RENDIDO BONS CLIQUES DAS PESSOAS ERRADAS
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