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Acima, fotografias da série Getty vs Ghana (2012), expostas no centro cultural Kunsthalle Basel, na Suíça (Foto: Philipp Hänger / Cortesia Maryam Jafri)
Postado em 01/09/2016 - 12:00
Entre o documento e o roteiro
Paquistanesa desenvolve obras que exploram o caráter documental de objetos, confronta historiografias oficiais e cria narrativas alternativas
Camila Régis

Ao acessar o site do Getty Images é possível encontrar fotografias de quase tudo. Criado em 1995, em Seattle, o banco de imagens tornou-se um gigante do mercado de mídia, estabelecendo parcerias com agências de notícias e se firmando como uma fonte “quente” e legitimadora de informações. Em 2012, quando explorava o catálogo online da Getty, a artista paquistanesa Maryam Jafri deparou-se com um fato, no mínimo, curioso. Ela encontrou fotografias históricas que já havia visto nos arquivos do Ministério da Informação de Gana, em Acra, capital desse país africano. Datadas de 6 de março de 1957, as imagens não eram registros banais, mas fotografias da independência de Gana, primeira nação subsaariana oficialmente livre do colonialismo europeu.

Diante da coincidência, a artista dedicou-se à comparação dos dois bancos de imagens – um digital, privado e americano, o outro analógico, público e africano. O estudo revelou inconsistências em legendas de fotos, além de exibir o conflito existente quando se trata de direitos autorais, prestação de créditos e adulteração de informações. A investigação deu origem ao trabalho Getty vs. Ghana (2012), que emparelha as fotografias, agregando um pequeno texto, explicando as diferenças entre elas. A partir dessa lógica que compara narrativas distintas, Jafri desenvolveu obras como Corbis vs. Mozambique, Getty vs. Kenya vs. Corbis e Getty vs. Musée Royale D’Afrique Centrale vs. DR Congo.

Artista como roteirista
Formada em Literatura pela Universidade de Brown e residindo entre Nova York e Copenhague, Maryam Jafri realiza uma pesquisa envolvendo conceitos de arquivo, herança visual, propriedade, digitalização e preservação de imagens. Países que estão à margem das “narrativas do império”, como ela prefere chamar, são foco constante de sua atenção. Em Siege of Khartoum, 1884, por exemplo, a artista criou 28 pôsteres que mostram fotografias da Guerra ao Terror ao lado de textos que parecem se relacionar com as imagens. Mas apenas parecem. Na verdade, os escritos são notícias de intervenções imperialistas anteriores à Guerra do Iraque em lugares como Vietnã, Panamá e Filipinas.

Em ambos os trabalhos, a artista explora o caráter documental de materiais que auxiliam em processos de arquivamento. O pulo do gato acontece quando ela cria um roteiro, conta uma história unindo texto e imagem, apresentando uma nova perspectiva a partir de narrativas já existentes. Seu grande mérito é nos lembrar que a história não está livre dos sistemas sociais de poder.

Ao abordar colonialismo e memória, as obras de Jafri despertaram o interesse da curadora Katerina Gregos, que a selecionou para participar do Pavilhão da Bélgica na 56ª Bienal de Veneza. Homenageando a produção de Vincent Meesen, a exposição belga, batizada de Personne et les Autres, reuniu artistas de várias nacionalidades que investigam a história e a vida após a modernidade colonial.

Os esquecidos
Se em trabalhos como Getty vs. Ghana é evidente a orquestração feita a partir de acervos públicos, referentes à memória coletiva de países, em Products Recall: An Index of Innovation (2014-2015) a artista reúne objetos que não tiveram tempo de entrar para a história. A instalação apresenta fotografias de produtos industrializados que, por razões diversas, fracassaram no mercado e foram retirados de circulação.

 

Como acontece em parte significativa da produção da artista, os artigos vieram de arquivos. As imagens faziam parte da coleção de um consultor de marcas e os objetos pertenciam a acervos pessoais de profissionais da indústria alimentícia. Entre os achados estão peças como uma mamadeira da Pepsi (versão normal e diet), lançada pela Munchkin Inc. em 1993, ou ainda a JP Squares, um tablete congelado formado por uma camada de pasta de amendoim e geleia, criado em 1994, que tinha como público-alvo pais ocupados demais para fazer um sanduíche. Ambos ficaram cerca de dois anos no mercado dos EUA e logo em seguida foram retirados das prateleiras.

Como um inventário de produtos fracassados, o trabalho mostra uma narrativa paralela à do consumo triunfante, dos sucessos de vendas, dos objetos de desejo. Para cada mercadoria bem-sucedida e amplamente comercializada existe uma infinidade de tentativas frustradas de empresas que se debatem para entender – ou mesmo inventar – demandas de mercado. A partir da análise da história extraoficial e esquecida, Maryam Jafri faz uma crítica contundente sobre a cultura do consumo e o uso, por vezes duvidoso, que a indústria de alimentos faz da ciência.

Os genéricos
Nos EUA dos anos 1970 era comum encontrar uma parte dos supermercados dedicada a produtos genéricos, que não tinham marca específica e eram de 25% a 45% mais baratos que os itens conhecidos. O fenômeno ocorrido em grande escala também entrou dentro da investigação que a artista faz sobre consumo e cultura de massa, dando origem à obra Generic Corner (2015). Composto de fotografias e embalagens originais, o trabalho apresenta a estética desses artigos, que não traziam comunicação visual ou design diferenciado. As caixas e latas eram principalmente brancas, com dizeres básicos escritos em preto.

 

Os produtos genéricos, em geral, eram fabricados por empresários locais, que se organizavam por meio de sindicatos e vendiam para mercados de pequeno porte. Estigmatizado na sociedade norte-americana, esse hábito de compra era comum nas classes sociais mais pobres. A partir dos anos 1980, com a popularização de grandes redes de supermercados que desenvolveram seus próprios artigos e clubes de vantagens – como o Sam’s Club, criado pelo Walmart em 1982 –, os genéricos foram desaparecendo das gôndolas.

Generic Corner lança uma reflexão sobre um episódio capitalista que foi muito popular e hoje caiu no esquecimento. Entre fotografias e objetos, Maryam Jafri novamente conta com o auxílio da escrita para potencializar o significado das imagens. No texto Through, Around and Against the Document, a artista comenta sobre o ensaio Pequena História da Fotografia e as observações que Walter Benjamin faz sobre a função das legendas. “O analfabetismo no futuro será visual – não será relativo à leitura ou escrita, mas à fotografia”, relembra. “Ele (Benjamin) elabora sobre o papel das legendas para garantir que as fotografias transformem todas as relações da vida em literatura ou narrativas. Narrativas históricas, eu diria.”

Portfólio originalmente publicado em janeiro de 2016