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Retrato de Eduardo de Barros, Raoni Azevedo, integrantes do grupo ANoiva – Igreja do Reino da Arte (Foto: Paula Alzugaray)
Postado em 27/11/2019 - 12:28
Entrevista sobre ANoiva – Igreja do Reino da Arte
Entrevista com Maxwell Alexandre, Raoni Azevedo e Eduardo de Barros, do projeto ANoiva, sediado na Rocinha, no Rio de Janeiro
Paula Alzugaray

Não é um coletivo, nem um grupo, ou movimento. ANoiva – Igreja do Reino da Arte, criada por Maxwell Alexandre, Eduardo de Barros e Raoni Azevedo, residentes na comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro, é um projeto artístico aberto, em que os códigos da arte são cruzados e comparados aos códigos das igrejas neopentecostais. Em entrevista à seLecT, eles falam sobre os conflitos envolvidos nesse seu trabalho de fé. 

Como vocês se definem?

Raoni: Somos membros da Igreja do Reino da Arte. O Eduardo é profeta, no sentido de que ele profetiza situações através do trabalho dele. 

Eduardo: Meu trabalho fala do apocalipse do verde-amarelo, são profecias sobre politica e religião. No culto da Igreja sou mais um membro organizador, um dos fundadores. Mas muitas pessoas passaram e tiveram um papel fundador. ANoiva é uma construção coletiva. É um projeto artístico aberto, conforme as pessoas vão colando, a Igreja vai ganhando outras formas de cultos e outras ideias. 

R: Não queríamos formar um coletivo, porque faltava ao coletivo a permeabilidade e a possibilidade não produzir trabalhos apenas em conjunto. Na Igreja, os fieis vem e podem ficar quanto quiserem. Há interessados que podem vir a um culto só. Trabalhamos com o paralelo arte e igreja, que faz muito sentido. A arte, como a gente conhece hoje, nasceu colada na igreja e foi se apropriando de alguns de seus aspectos. Nos templos da arte, a contemplação divina passa a ser estética. 

O que é o “culto”? 

Maxwell: Culto é qualquer ação, qualquer evento em nome da Igreja. Até esta entrevista pode ser um culto. Reunião é seita. A origem da palavra seita é reunião religiosa. Chamando uma reunião de seita, muda o caráter do encontro… A oferenda é um culto em que colocamos todos os objetos no chão. 

Cultos são formas de expor?

M: Em vez de formas de expor, são formas de oferecer. Se você coloca um objeto na parede, as pessoas podem vir com a intenção de contemplar. Mas essa não é a intenção para a qual a gente se reúne e trabalha para. Esse é o lugar do ego, o lugar da glamourização da figura do artista e do circuito. Isso faz com que o artista sinta que precisa estar pronto para mostrar alguma coisa. A gente oferece esse espaço da Igreja, que é quase um laboratório. A arte não está no objeto, mas no ato de fazer e no ato da fé, de acreditar. Então, quando você traz um objeto para um culto da Noiva, você está oferecendo para o que a gente chama de Altíssima Arte. E aí esse gesto de oferecer – que começa a operar em prol de uma santidade através da fé –, ele já não tem nada a ver com a qualidade do objeto artístico. E esse lugar para a gente é interessante. Na galeria e no museu você não tem esse espaço. Rainer Maria Rilke fala que uma boa obra de arte nasce da necessidade. É melhor trabalhar nesse sentido, tentando diminuir a aura que o objeto artístico tem. Tirar a pintura da moldura e da parede, tirar a escultura do pedestal. Aqui a gente tá levando a sério o discurso de que a arte é democrática, de que a arte é pra todo mundo, e é por isso que a gente tá fazendo as peregrinações na rua. A gente leva as lonas debaixo do braço e bota os trabalhos em qualquer lugar, no chão. 

Retiro D’Anoiva durante Santa Ceia (Foto: Divulgação)

Mas se vocês se propõem a dessacralizar o objeto ou o ato de expor, por que se referem às ações como “sagradas”?

R: A gente dessacraliza o objeto, mas a gente tenta criar essa noção do sacro na comunhão e na intenção do artista. É algo que problematiza o patrimonialismo da arte. 

E: Mais do que o objeto sagrado, a gente valoriza a própria fé de quem está na igreja, a fé que ela tem no que está fazendo. A peregrinação é um evento que tem que ter fé pra colar, porque você vai ficar andando na rua, debaixo do sol, vai mostrar o trabalho na rua, num espaço desvalorizado, pra uma galera que tá ali passando, pro doidão ali da rua. Nesse sentido, a gente fala “quando tiver um ou mais em meu nome, ANoiva se faz presente”. Um ou dois. 

R: O que reuniu a gente foi uma percepção de que esses trabalhos que a gente fazia – desde antes, quando a gente trabalhava mais com design, até quando a gente começou a trabalhar com arte – de que existe uma interseção entre o trabalho de autoconhecimento, que você faz na vida, com o trabalho que você desenvolve na matéria. Percebemos que isso também era um trabalho de auto-divinização, de auto-entendimento. E aí a gente começou a colocar isso pra frente com outras pessoas e a galera ia meio que se relacionando com isso. Desde as pessoas que tinham uma fé na Igreja, até aquelas que não tinham fé católica, mas colocavam o trabalho, e não o objeto, como matéria transformadora. 

E: A Igreja do Reino da Arte quebra essa carga pesada que a igreja tem. Mas para nós também é importante quebrar a carga que a arte tem. Uma “exposição coletiva” também traz toda uma carga da tradição de como mostrar a arte, de pensar a arte, de como as pessoas se organizam. Então nosso primeiro culto foi uma Santa Ceia. Era uma exposição coletiva sem os cânones da exposição coletiva. Era uma confraternização, para a galera chegar, se reunir e fazer uma comunhão com os trabalhos. 

R: Essa primeira Santa Ceia a gente fez no Aterro do Flamengo, cada um levou seus trabalhos debaixo do braço, colocamos as coisas pra cima e começamos a trocar uma ideia. 

E como funciona a residência artística, que vocês chamam de Retiro? 

R: Desde que pegamos a casa [a casa alugada na Travessa Mesopotâmia, na Rocinha, atual sede da Igreja], começaram a acontecer retiros espontâneos, de membros da igreja que queriam estar próximos desse lugar. Mas o primeiro retiro aconteceu na casa do Maxwell, foi uma mina que tava na igreja na época, a Tai Nascimento, ela ficou uma semana lá desenvolvendo trabalhos aqui pela Rocinha, e ela apresentou, enquanto resultado desse retiro dela, um dízimo. O dízimo é a oferta individual dos artistas, quando eles se propõem a mostrar um trabalho ou pesquisa em andamento, e essa entrega a gente fala que representa 10% do trabalho recente do artista. O dízimo é um desses formatos de culto. 

E: Temos vários formatos de cultos. E vários vão surgindo conforme as pessoas vão fazendo paralelos com as nomenclaturas das igrejas. A Santa Ceia é uma entrega coletiva, em que os trabalhos são de fato colocados na parede. A Oferenda é uma entrega coletiva, com amontoados de obras no chão, sem muita reverência a esses objetos. A Peregrinação é o  deslocamento com obras pela cidade.

R: Tem a Canonização de um santo da igreja. Tem o Pecadão, a festa da igreja, o Mate santo, a Tela crente. 

Fotografia feita durante Peregrinação até hotel abandonado (Foto: Divulgação)

 

O sagrado e o profano tem uma relação menos paradoxal na Igreja do Reino da Arte?

R: Sim, é uma relação de complementaridade. Quando a gente fala em igreja, principalmente pra galera do campo da arte, que é uma galera progressista, a galera fica muito com o pé atrás. Porque atrela aos movimentos conservadores católicos e neopentecostais. 

E como vocês se organizam? 

R: Não há uma hierarquia na igreja, as pessoas podem se reconhecer fiéis ou membros.

E: Acho que existe uma hierarquia que não é fixa. O pastor não é sempre a mesma pessoa.

O pastor seria o equivalente ao curador?

M: Em alguns casos sim. É um agente articulador. Mas o pastor poderia ser o produtor também. Ou quem leva a palavra. Que estuda e articula a palavra, o crítico. Tem os bispos, a galera que faz a validação de situações, a sacralização de certos objetos e contextos. 

Voltando ao Retiro, como começou?

R: Eu e Eduardo fizemos um trabalho juntos, a Primeira Comunhão, com pesquisas que se esbarravam – o meu no campo da ficção e da criação mitologia, e o Eduardo tinha essa questão do apocalipse verde amarelo, que é uma teoria sobre a mudança da identidade brasileira. O Retiro começou com essa espontaneidade. Mas aí começaram a chegar muitas críticas da igreja ser formada majoritariamente por homens héteros cis normativos, fazendo com que outra galera não se sentisse tão confortável. Procuramos então fazer da igreja um lugar mais aberto. Então nos ocorreu que o retiro deveria ser feito também por pessoas de fora da igreja e aí a Luisa Interleng, que era minha professora e trabalha na Funarte, nos disse que abriu um edital de periferias e interiores que tinha muito a ver com a igreja. Foi quando inscrevemos no edital para fazer um retiro com mais corpo. Passamos no edital da Funarte e esse foi o primeiro Retiro feito de forma organizada e com investimento de fora. Também o Robin, diretor do Goethe que tinha vindo aqui visitar e conseguimos um apoio também da Inclusartiz, porque a Frances Reynolds aposta no trabalho do Maxwell. 

E: Então foi engraçado porque criamos um movimento alheio a um sistema de arte que é difícil de entrar e logo depois desse movimento que aconteceu com o Maxwell, a gente começou a ter contato com esses agentes da arte – a Gentil Carioca, a Fortes D’Aloia e Gabriel – e fomos criando uma rede. No Retiro decidimos ativar toda essa rede e colocar ela a disposição de outras pessoas de fora da igreja. Abrimos uma chamada que rodou principalmente no Instagram, com três processos de seleção: um vídeo confessionário, uma oferenda no dia 2 de fevereiro na praia da macumba, e via portfólio e carta de intenção. 

Foram selecionados três “retirantes”?

R: Sim, (risos)… Um dos dizeres da igreja é “cuidado com aquilo que se parece com arte”. Cuidado com esse lugar de fazer algo que se parece com o que já é arte. Então Dani Camara – performer, dançarina, atriz. Joca que é do rap, produz o baile da UG em Niterói. Thayná que é aqui da rocinha. Ina Kabe, de Brasília, que talvez seja a que tem mais controle dos códigos da arte, e mestranda em processos artísticos pela UNB.

E como é a relação de vocês com os códigos da arte? Qual a formação de vocês?

R: A gente não era de Belas Artes. A gente tem convivência porque na PUC Rio tivemos professores que passaram por esses processos. Nós três fizemos design, eles dois fizeram comunicação visual e eu fiz projeto de produto. Mas o projetual de design na PUC Rio passa por uma concepção conceitual forte. É um curso que eu indicaria, talvez mais do que um curso de Belas Artes. Porque tem um enfoque no fazer, no organizar o fazer, organizar narrativa, entender projeto, projeto de criação. 

M: A PUC tem uma educação muito baseada na antropologia, na fase do projeto. Você sai de lá atento. Essa é uma das ferramentas fundamentais do artista. É gestão de vida, você aprende a gerir uma carreira, organizar seu trabalho. A gente mesmo fotografa a nossa obra, a gente mesmo faz o nosso catálogo. Tem essa coisa de escrever, é um curso muito crítico, e isso que o Raoni está falando que é de esbarrar com agentes importantes da arte, que é o Fernando Cocchiarale, que dá filosofia da arte, o Cadu, desenho de observação…

R: Criamos a igreja logo depois que eu voltei de um intercâmbio pelo Ciência sem Fronteiras, quando estudei na Goldsmith [College, em Londres]. Estudei um tipo de design que não era design útil. Era um design crítico e especulativo, que é você estudar uma coisa não pela função que ela tem direta, ou uma função de mercado, mas que a função dela é ser crítica ou de si mesma ou de outras situações. Isso fazia muito sentido quando começamos a pensar na igreja: era justamente se apropriar de sistemas que são dados, e que há uma ingerência muito maior de indivíduos sobre esses sistemas do que a gente tende a perceber. A gente tende a perceber as instituições como coisas consolidadas e dadas e que foram criadas por uma coisa que você não tem controle ou que é maior do que o indivíduo. Mas qualquer indivíduo pode criar uma igreja, pode declarar um partido político e fazer ele existir de várias formas. É tudo ficção. A Jota Mombaça fala algo assim, é tudo ficção, a constituição é uma ficção. São coisas que não existem de fato, foram criadas enquanto narrativas. Uma forma das pessoas se unirem é acreditarem nessas ficções. 

E como se dá a relação da sua igreja com as pentecostais? Há preconceito mútuo?

R: Preconceito tem. Eles tem e a gente também tem. A galera da arte tende a pensar que estamos fazendo uma ironia com a igreja. E a gente fala, é, mas a gente também está fazendo uma ironia com a arte. É ironia, não é; é um blefe e não é… é igreja mesmo. 

Essa igreja é então um trabalho artístico de vocês três?

M: É, acaba sendo, né?

R: De nós e de todos. Um coletivo.

M: Tudo é trabalho, né?

R: Tem essa coisa das pessoas chegarem, se identificarem com uma coisa e se apropriarem dela. Como na igreja – se você é da assembleia vc cria imediatamente uma identificação com as pessoas que estão na mesma vibração. Dizer que você é da Igreja do reino da arte gera até um certo cacife atualmente. 

Como as outras igrejas encaram a Igreja do reino da arte aqui na Rocinha?

M: Aqui a comunidade é predominantemente cristã evangélica. E não existe uma tolerância a religiões que tendem a matriz africana, porque elas foram demonizadas, então o candomblé, a umbanda, existem até casos de traficantes que expulsaram pais de santos, quebram terreiro…. eles são evangélicos e a polícia também. A gente está num lugar que pode ser meio perigoso. Então, a gente já teve alguns problemas aqui com vizinhos do templo central da Igreja do Reino da Arte. Por exemplo, quando a gente está fazendo um culto e a música é muito pesada e é interpretada como um ritual de satanismo. Fica uma coisa meio estranha. Já houve alguns rituais de batismo onde as meninas ficavam peladas, batizando com… sangue?

E: Não, era tinta.

R: Mas estava num prato de ebó.

M: Aí os vizinhos ficaram olhando aqui… mandaram fechar a janela. Os artistas vêm de fora e às vezes de uma maneira ingênua, sem entender quais são os códigos daqui. E a gente está preocupado com esses códigos. Depois desse culto que teve nudez, pensamos que no próximo deveríamos fazer uma coisa que tivesse mais relação com a favela. E teve rima de rap, moleque jogando altinha aqui de futebol. A gente pensa em estar sempre mudando o espaço de uma maneira estratégica.

R: Até para não ter o espaço da arte como isolamento da vida. Como exceção de tudo o eu você faz na vida, um espaço onde você acha que vale tudo e tudo é validado. 

M: A Rocinha é muito distante do mundo da arte. Tanto é que as pessoas que frequentam a Igreja majoritariamente são de fora. 

E: Na verdade, na verdade mesmo, não existia esse espaço, a Igreja acontecia antes mais pelo centro, mais por outros lugares, ou espaço concedidos, galeria e tal. Mas quando a gente alugou esse espaço aqui, a ideia é de que a igreja é da Rocinha, e os cultos acontecendo aqui dentro gerou essas questões. A Igreja não tem uma doutrina. A gente não vai falar tipo: ah não é maneiro fazer trabalhos que são à parte do mundo, que tem nudez, que tem sangue… eu acho que são totalmente válidos. Mas pela questão do contexto, nesse espaço específico tem essa questão que acho dá essa limitada mesmo. Tem que ficar atento. Mas eu não vejo como principal da Igreja não poder fazer esse tipo de coisa.

Outros: Não, não é não.

M: É uma questão de estar na Rocinha, neste espaço aqui.

R: Estar nesse espaço aqui há quase um ano acaba até gerando umas confusões. A Igreja está aqui agora, mas não é uma igreja da Rocinha. Há um interesse de lidar com esse espaço porque ele é de fora do circuito. É engraçado você ver curadores e tudo o mais, a galera se perdendo aqui na viela, e a galera do bar ali em baixo já percebeu que aqui tem uma casa com uma galera estranha. Quando alguém se perde eles já perguntam se estão procurando a “casa dos artistas”. Quando aparece alguém mais indie, mais alternativo, eles já mandam para cá. Então tem essa separação óbvia. O esquema da arte não chega aqui. Não é a arte que entrega o sublime para a galera que está aqui. Quem entrega o sublime aqui é a igreja neopentecostal, que é onde você percebe o encontro com o divino e onde você é agente da tua auto-divinização. E não na arte.

M: É onde você contempla, se emociona…

R: Chega ao êxtase, à catarse… Que é uma coisa que a arte procura muito também. Então é interessante a gente estar aqui com esses dois conceitos andando lado a lado e vendo como é que navega entre os dois em um espaço que é periférico e onde isso não é natural.

M: É. E é interessante ver como isso ratifica a arte como religião. Porque tipo… como eu venho daqui e eu cruzo esses mundos, eu tou fazendo esse trabalho de arte, que aqui não tem valor, então as pessoas aqui não dão a mínima…

R: Só quando aparece no jornal. 

M: É, só há interesse por uma questão pragmática, quando se fala no valor do trabalho, ou porque viajou… mas o trabalho mesmo não tem um valor inerente. Você faz uma exposição e a galera não vai numa exposição no asfalto. E o cara do asfalto, ele não acredita nas crenças daqui, que são o neopentecostalismo. Mas o cara rende para pintura, sacou, vai se emocionar com a pintura, ou vai reverenciar o artista, o artista vira quase um Deus. 

Mas não dá pra resumir a Rocinha ao neopentecostalismo. Tem muito mais questões envolvidas no contexto da favela, não?

M: Sim, por exemplo?

Outras culturas. Por exemplo, a cultura da música. 

M: Eu tenho 28 anos de Rocinha, eu nasci aqui. Eu tou falando de uma força que permeia tudo. O nome de Deus é uma parada… é sinistro. 

E as religiões afro-brasileiras aqui?

M: Tem terreiros aqui, mas é num lugar estranho. Acho que agora com esse novo mundo surgindo, onde esse debate começa a acontecer – até porque as pessoas daqui estão começando a ir para o asfalto, a estudar, então essas coisas começam a ser questionadas. Mas isso é muito recente. Como eu cresci aqui, eu vejo que ser evangélico é um valor muito muito muito forte. Quando eu fui pra faculdade, falei que era evangélico, era piada. Uma inversão de valores muito sinistra. Ser evangélico, mano, é um preconceito muito grande. Minha mãe me falava: quanto mais conhecimento, mais Deus se afasta. Minha história de vida, sacou? Os intelectuais, os caras que cresceram lendo filosofia e consumindo arte, eles são piada para o cristianismo e para as igrejas pentecostais. Agora, é fazendo esse trabalho que a gente vê que, na real, os dois são religião. O cara que é ateu, tá reverenciando arte, vai no museu, rende para o artista: é uma religião.

Você foi criado como evangélico? Que igreja frequentou?  

M: Minha família é grande. Cada um vai pra uma igreja. Meu tio criou a igreja dele, que acho que é Restaurando Vidas. Tem uma aqui, uma lá em Cachoeira do Macacu, aí ganhou um terreno agora, vai fazer outra. Eu mesmo, passei por várias, Assembleia de Deus…

Você continua fiel a essas igrejas depois de ter criado a Igreja do Reino da arte?

M: Eu sou artista. Minha fé é na arte. Óbvio que eu carrego muitas coisas dessa criação, porque até os 17, 18 anos eu estava frequentando igreja. Na faculdade eu ainda frequentava…

Trocou a igreja pela faculdade?

M: É, vai lendo, vai tendo aula de várias paradas, tu vai vendo, tipo,… a umbanda não é o mau, tá ligado? 

R: Estava mergulhado na igreja e deu uma sacudida quando entrou na faculdade. Mas depois que saiu da faculdade, deu uma sacudida também, porque tem que dar uma sacudida nessa coisa do intelectual como superior, como quem dá o teor do que é real. Essa é uma briga real atualmente. 

M: Exatamente. Tu rompe, mas não rompe. Da mesma forma que eu rompi com a igreja, eu rompi com a academia, tá ligado? E até me falaram, se pá eu nem sou artista mesmo, em algum momento, essa parada pode passar. 

Antes você fez um lance com skate?

M: Fiz, também foi uma outra igreja. Eu acreditava mesmo que minha bandeira era patins street e trabalhava só em prol disso. Entre pra faculdade pra trabalhar em prol disso. Aí a arte foi diluindo aquilo. Mas muitas coisas vão ficando e aparecendo em outro trabalho. 

Você também foi criado aqui, Eduardo?

E: Não, nasci e fui criado na Tijuca e aí meus pais mudaram pra Zona Sul. Tenho uma criação católica forte. Minha avó era praticante, mas meus pais não acreditavam tanto e foram por outro caminho… aqueles símbolos lá não acessam, sabe?

E você, Raoni? 

R: Minha avó era bem católica e eu fui criado em colégio católico. Mas minha mãe era de um grupo de estudo de filosofia oriental, que chama Sufi. Então, eu já tinha essa noção de religiosidade como ferramenta para um caminho pessoal. 

M: A igreja evangélica é tão forte aqui na Rocinha porque também faz um trabalho do Estado. Ampara. O que a Igreja Católica não faz. Eles tem algumas sedes aqui, mas não tem esse trabalho de evangelismo, por exemplo, de levar a palavra para os quatro cantos do mundo. Eles saem mesmo, batem na porta. E as pessoas na carência, né? Aí cura mesmo, aí põe vagabundo pra abaixar o fuzil. Como essa é uma coisa muito antiga, o próprio vagabundo cresceu dentro da igreja evangélica. E já cresce nesse temor. Mesmo que ele desvie… O cara desvia, mete a mão no fuzil, mas ele tem na consciência dele aquela parada da criação. Quando passa a irmã, o cara abaixa o baseado, esconde a arma, tá ligado? 

Mas o tráfico também dá amparo na favela. 

M: Também. É confuso por que tem uma coisa dessa narrativa do bem e do mal, do demônio, essas narrativas que tu vai transferindo a responsabilidade. Mas é muito confuso essas coisas aqui, cara. Bolsonaro se elegeu nessa. Crivella, com apoio do Malafaia… Lembro da Dilma, mano. Quando ela apareceu. Tinha umas fake news de que ela ia liberar umas paradas muito profanas. Agora não lembro direito, mas tem uma narrativa que entra – o Freixo é a favor do aborto, é a favor do casamento gay… mano, só isso tem um peso muito grande. Porque, tipo, “os gays são abominações”, “o aborto, tu não pode destruir com a vida”. Essas narrativas são muito fortes. Tu leva isso pro campo político, esquerda e direita… 

E: Mas aqui a esquerda também parece forte, tá ligado. Tem uns adesivos do Lula.

R: É a galera nordestina. A Rocinha é predominantemente nordestina.

M: Tem também. Mas não é a maioria não. Tem a coisa do Lula ter sido o cara do povão. Isso é meio controverso. A galeria do tráfico era meio contra o Bolsonaro porque sabiam que o esquema ia foder. 

Bolsonaro é milícia…

M: A policia também. Tem sede de igreja evangélica dentro de quartel do Bope, dentro de exército. Então quando tu vai ver, está tudo ligado. 

Mas a Igreja do Reino da Arte também incorpora termos de outras religiões. É sincrética?

R: É sincrética. Acho que principalmente no fazer. Mas a gente faz questão de colocar na linha de frente essa questão mais cristã. Nos perguntaram por que não criamos uma igreja de matrizes africanas. Por duas coisas: primeiro porque não é nosso lugar. Segundo que não adianta colocar nesse lugar de embate alguém que está numa posição de resistência. A gente quer usar justamente o que está na hegemonia. 

E: No campo da arte, as religiões de matriz africana já são bem trabalhadas. 

M: É porque queremos questionar os poderes desse cristianismo que tá articulando a política, que está no poder das narrativas. Colocar isso no campo da investigação.