Eyal Weizman é arquiteto, fundador e diretor do Forensic Architecture, laboratório da Goldsmiths, Universidade de Londres, onde leciona culturas espaciais e visuais. Autor de mais de 15 livros, seus trabalhos investigativos junto à sua equipe multidisciplinar combinam arquitetura, design e várias linguagens artísticas. Foram expostos em mostras internacionais, como a Documenta 14, de Kassel, e em individuais no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (Macba), Museu Universitário de Arte Contemporânea (Muac), na Cidade do México, e Institute of Contemporary Art (ICA), em Londres). Indicado ao Turner Prize, com o Forensic Architecture, em 2018, foi um dos laureados com o Prix Ars Electronica (em Linz, Áustria, em 2017). Em suas múltiplas ocupações, o ativismo político é dominante. Fundador do coletivo Decolonizing Architecture (Daar), (em Beit Sahour, na Cisjordânia), dedica-se ao que ele denomina “estéticas forenses” e vem desenvolvendo uma metodologia única para investigação de crimes de guerra e abusos de poder. Em entrevista à seLecT, Weizman comenta esses aspectos do seu trabalho e revela que mantém uma vida paralela de trabalho em Israel, sua terra natal, em parceria com sua irmã, a diretora de teatro Einat Weizman. Participou da entrevista o arquiteto e professor Paulo Tavares, curador da última Bienal de Arquitetura de Chicago, brasileiro e integrante do Forensic Architecture.
O trabalho do Forensic Architecture transita por diferentes linguagens digitais (mapas interativos, vídeos, computação gráfica). Como são feitas as escolhas do vocabulário visual em relação aos projetos que vocês realizam?
Eyal Weizman: Nosso trabalho é superar como o poder usa as imagens. Para isso é preciso entender que os nossos governos, a polícia e o exército estabelecem suas próprias linguagens visuais, por meio das quais aumentam o efeito da sua violência. As práticas da verdade, e estamos falando do Brasil também, estão sob crescente pressão. E o que se chama de pós-verdade e fake News, e todas essas novas palavras que surgiram quando populistas como Trump, Netanyahu, Bolsonaro, Orban etc. assumiram o poder, aponta, em realidade, para uma história mais profunda que está no colonialismo. A violência colonial é uma violência contra a verdade, contra a história. Procura não apenas destruir, mas apagar os traços do que é destruído. Se, no passado, olhávamos para os modos como a sociedade era destruída e genocídios eram empreendidos e encobertos, estamos agora em um mundo onde as imagens fazem o que a paisagem fazia: a cobertura dos traços. Nós precisamos “des-ler” as imagens, ir contra os modos como os governos desenvolvem certas linguagens visuais. Precisamos analisá-las e quebrá-las. Assim, inicialmente, quando entramos em um caso, não se trata de que técnica ou que tipo de tecnologia visual iremos usar, mas quais são os problemas evidenciários, onde estão os traços de apagamento na imagem?
As novas tecnologias de imagem são imersivas e expandem a área construída em territórios informacionais, por meio de recursos de realidade aumentada e virtual e intenso uso de aplicativos. É possível pensar que viveremos em um mundo de imagens habitáveis?
EW: Esta é uma excelente questão. Para nós, as imagens não são uma questão de representação. Harum Farocki, que estava fazendo um filme sobre nós e conosco, quando faleceu, popularizou a noção de “imagens operacionais”. E isso é muito importante para nós. Entender que as imagens não vêm para retratar o mundo, ou simplesmente para contar uma história sobre isso, mas que, efetivamente, a maior parte das coisas que estão comunicando e as decisões que são tomadas, por humanos ou redes de humanos ou, cada vez mais, por redes de computadores e humanos, são feitas por compartilhamento de imagens. As imagens, o domínio estético, tornaram-se operacionalizadas. A imagem é uma presença e uma representação ao mesmo tempo. Assim, o que você coloca como “habitar imagens” é absolutamente correto. Não podemos ver o nosso ambiente, o ambiente físico e a arquitetura das coisas como a superfície rígida contra a qual nos chocamos. É preciso vê-los como integralmente interligados com o domínio espesso e estético das imagens, e compreender que o nosso habitar o domínio das imagens é por navegação. E é por isso que pensamos que o Forensic Architecture desempenha um importante papel na investigação da lógica do presente. Nós pensamos espacialmente e entendemos que para interrogar um caso precisamos construir relações espaciais entre as imagens. A arquitetura é um tipo de millieu para a compreensão das imagens, a arquitetura é um dispositivo óptico.
Recentemente, você foi vítima de um processo algorítmico que o impediu de viajar a trabalho para os EUA. Como vê esse processo de apropriação da vida pela vigilância expandida dos algoritmos, algo que tem sido maximizado pela Covid-19?
EW: Não me considero uma vítima desse processo, mas isso nos fez pensar que, para desenvolver nossos trabalhos para a próxima década, temos que nos dedicar a duas formas de violência: a física e a digital, uma vez que estão se entranhando. Estamos envolvidos agora em uma investigação, alimentada pelas necessidades de isolamento determinadas pelo coronavírus, sobre a forma pela qual as empresas estão usando vigilância digital, oferecendo isso para o público como um modo de sobreviver ao vírus, mas que estão sendo “armamentizadas” em muitas outras formas. Estamos investigando uma empresa envolvida em criar vírus de computador (malwares) e armas cibernéticas contra ativistas da sociedade civil. Vários de nossos amigos e parceiros ao nosso redor estão sendo mirados e coisas físicas estão acontecendo com eles, enquanto estão sendo digitalmente vigiados, de modo que estamos diretamente implicados nisso. E estamos tentando colocar uma questão simples: se o Forensic Architecture ficou bom em desempacotar incidentes, violência policial, atos de guerra urbana e naufrágios, revelando o contexto político, o que é um incidente no domínio digital? Como você está sendo vigiado e como a vigilância afeta a sua vida física? Quando você está no domínio do digital, não há distância (remotness), você está nadando nesse mar porque, como você diz, nós habitamos esses dados.
Em 2006, em um seminário na Bienal de São Paulo, você mostrou que o exército israelense operava a partir de matrizes do pensamento de Deleuze e Guattari, e fundamentava-se, também, na obra de artistas e arquitetos como Gordon Matta Clark e Bernard Tschumi. Quinze anos depois, essa sofisticação intelectual, ainda que para fins tão condenáveis, todavia é subjacente às ações do exército israelense?
EW: A sociedade israelense é uma sociedade bastante letrada e você tem diferentes tipos de pessoas letradas em toda sorte de campos. Quando Israel precisou entrar em uma guerra urbana, o que quer dizer, ocupar novamente as cidades palestinas, não havia, ou havia pouca doutrina militar para uma guerra urbana. E, para entender a cidade com um ambiente complexo, o único corpo de trabalho consistente que existe são os estudos pós-coloniais, mostrando como as cidades são dispostas em camadas, com identidades e fricções internas. Estudos urbanos mostram essas complexidades e práticas artísticas, seus modos de usar. Por isso os militares foram atraídos para essa filosofia. Para entender a cidade não como um conjunto de prédios, mas como um sistema complexo e de camadas, no qual o sentido e a fisicalidade operam juntos. O foco estratégico e o mais importante produto de exportação de Israel hoje são as cibertecnologias e, infelizmente, há uma enorme quantidade de sofisticação que é testada em um tipo de população cativa, nos palestinos. Essa tecnologia está disponível e é um dos mais significativos ativos de Israel, também porque é vendida para países que nominalmente são inimigos, ou você os entende como inimigos, como a Arábia Saudita. O que é perturbador é que, em vez de o mundo dizer “não, você não pode prosseguir com esse sistema de apartheid colonial”, o que os países fazem é importar essas ideias e o que vemos é que os militares gregos usam drones e tecnologias de controle de fronteira israelenses, e entendo que isso ocorre também no Brasil, um assunto para vocês pesquisarem.
O Oriente Médio, e Israel em particular, é um foco recorrente dos trabalhos que você dirige no Forensic Architecture. Como é a sua relação com o país onde você nasceu? Você voltaria a viver lá? Por quê?
EW: Esta é uma pergunta complicada e estou feliz em poder falar disso. Não é muito comum me perguntarem. Israel é onde eu cresci. Eu me sinto o filho desse lugar. Minha formação, política e intelectual, apesar de eu não ter estudado lá, vem dessa matriz, dessas forças, e também, até certo ponto, das complexidades e contradições desse lugar. E, obviamente, gosto muito. Minha família está lá, minhas duas irmãs mais novas. A mais velha é uma célebre diretora de teatro (Einat Weizman) e, talvez, a pessoa mais odiada no país. Tenho uma vida paralela que opero com ela, através do seu trabalho em Israel, teatro-documentário. Recém-terminamos uma peça muito controversa, escrita com prisioneiros palestinos. A ministra da Cultura, essa famosa ministra que nós temos, Miri Regev, cancelou o festival de teatro, por causa dessa peça e em todo lugar que é apresentada o teatro fecha imediatamente depois, seu orçamento é cortado ou é bloqueado com cercas. Mas penso que Israel é um lugar que vale a pena lutar pela descolonização e pela liberação da israelo-palestina de um sistema que ceifa todo o desenvolvimento criativo e intelectual de todas as pessoas que vivem lá. É um lugar que me toca muito, não é simplesmente algo de que eu me desassocio. Não penso que eu poderia ter um emprego e, obviamente, não poderia operar a partir de lá no momento. Mas é o lugar que mais me importa. Minha reação à política é visceral, é algo que me parte o coração continuamente, porque em todo momento eu acredito que podemos romper e aí é, de novo, um ataque a Gaza, a violência da Nakba em curso… Há certos sinais que me encorajam, como o colapso dos centros, na última eleição, uma eleição em que a oposição a Netanyahu foi totalmente engolida, comprada, e ele conseguiu trazê-la para dentro de sua coalizão. Isso indica o que estamos dizendo há tempos, que a força democrática em Israel é a luta pela Palestina. A luta pela Palestina e a luta pela democracia são a mesma coisa. E os partidos palestinos no Parlamento israelense são a nossa única esperança. Eu só queria ver minha mãe votando no partido palestino pela primeira vez. Penso que então teríamos uma chance. Mais uma eleição e ela estará lá.
Do seu ponto de vista, qual é a relação em arte, arquitetura e design?
EW: Quando apresentamos na Documenta de Kassel um caso do envolvimento do serviço secreto alemão no assassinato de um imigrante turco por um grupo neonazista, as resenhas diziam: isso não é arte, isso é evidência. Depois da Documenta, esse trabalho foi apresentado em um inquérito parlamentar, confrontando o serviço secreto. A defesa argumentou: isso não é evidência, isso é arte. Nós estamos muito confortáveis em nos mover entre esses dois territórios. Há alguma coisa semelhante entre as práticas curatoriais e forenses. Nos dois casos precisamos apresentar as coisas, precisamos gerar debate, defender um ponto em relação ao visual, ou qualquer outra forma de expressão, em uma discussão política ou cultural. E tanto o curador quanto o forense precisam apresentar material para o seu fórum. Trabalhamos com curadores brilhantes e isso nos permite entender as imagens, como interrogá-las, como mostrá-las e como extrair mais informações do que as disponíveis aos olhos. E, realmente, em um mundo em que as mais comuns das evidências são as evidências em vídeo, o que mais se precisa são cineastas, artistas e fotógrafos integrados a equipes com cientistas e advogados, a fim de compreender esse meio. Então é quase uma opção natural trabalhar com artistas, porque precisamos interrogar esteticamente. Entretanto, há problemas nisso também. Certa vez, conversando com um advogado com quem estávamos trabalhando, falava sobre algo que chamo de estética forense. E ele me disse: Eyal, faça-me um favor, se você for alguma vez chamado à tribuna, nunca mencione a palavra estética. Porque no Tribunal isso é considerado o oposto de prova.
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