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Postado em 16/02/2014 - 11:01
Entrevista Maria Ignez Mantovani
Márion Strecker

“Relação sinérgica entre museus e coleções atravessa séculos”, diz especialista

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Legenda: Presidente do conselho de administração do International Council of Museums (Icom Brasil), Maria Ignez Mantovani Franco acredita que o Estatuto já trouxe contribuições significativas (foto: Juan Esteves)

Entrevista parte da série especial Estatuto de Museus

Maria Ignez Mantovani Franco preside o conselho de administração do ICOM (International Council of Museums), é doutora em museologia e dirige a empresa Expomus, pela qual atuou em mais de 250 projetos de exposições.

Nesta entrevista, ela comenta a legislação sobre museus no Brasil e lembra que os museus tiveram sua gênese, historicamente, em importantes coleções que foram doadas ou adquiridas, dinâmica que também acontece no Brasil, felizmente.

Qual a sua visão sobre o Estatuto dos Museus e sua regulamentação? Trouxe/trará avanços para o país? Há pontos a melhorar na legislação brasileira no que se refere à arte?

Em primeiro lugar, é oportuno salientar que o decreto presidencial nº 8.124, de 17 de outubro de 2013, que veio regulamentar a Lei 11.904/2009, denominada Estatuto de Museus, e a Lei 11.906/2009, de criação do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), autarquia vinculada ao Ministério da Cultura (MinC), é sem dúvida um avanço para a consolidação de uma política pública para a área museológica, no Brasil. Creio que o estatuto já trouxe passos significativos para os museus brasileiros, como a criação do próprio Ibram, a organização do Cadastro Nacional de Museus e a recomendação quanto ao desenvolvimento de Plano Museológico para todos os museus brasileiros, independente de seu tamanho, tipologia ou configuração político-institucional. Há, sim, pontos a melhorar na legislação brasileira, mas esta dinâmica necessita de uma ampla discussão pública, que conte com o envolvimento dos vários setores interessados.

Os museus de arte brasileiros estão sendo bem geridos? E as coleções particulares, precisam de tutela do Estado?

Os museus brasileiros têm avançado muito na última década, tanto no desenvolvimento de modelos de gestão, como no desenho de novas estratégias de sustentabilidade. Os museus de arte, sobremaneira, têm buscado encontrar novos rumos de autossustentabilidade, imprimindo eficiência e transparência a suas ações. Não é possível generalizar, mas há sim como destacar alguns exemplos de museu de arte, no país, dignos de nota: a Pinacoteca do Estado, o Instituto Tomie Ohtake, o Museu de Arte Moderna e o Itaú Cultural, o Museu de Arte da FAAP, de São Paulo; a Fundação Iberê Camargo, o Santander Cultural, de Porto Alegre; os Centros Culturais do Banco do Brasil, de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília e agora também Belo Horizonte; o Instituto Moreira Salles, do Rio de Janeiro e São Paulo; Inhotim, o Palácio das Artes e a Casa Fiat de Cultura, de Belo Horizonte; a Casa Daros e o Museu de Arte do Rio de Janeiro, no Rio, entre outros.

As coleções privadas não necessitam de tutela do Estado, mas os bens patrimoniais de grande valor para a nossa sociedade precisam ser mapeados, identificados e protegidos para as futuras gerações. Isto não significa qualquer tipo de confisco ou apropriação de um bem patrimonial, por parte do Estado brasileiro, uma vez que a propriedade privada deve ser respeitada.

Este decreto deve suscitar, sim, uma série de estudos e aprimoramentos que possam conduzir a um processo de valorização do patrimônio brasileiro; futuros processos de musealização de importantes obras e coleções brasileiras só poderão ser gerados se houver um diálogo estreito entre diferentes agentes culturais e o governo. É importante registrar que os Museus tiveram sua gênese, historicamente, em importantes coleções que foram doadas ou adquiridas pelos museus, ao longo de séculos. Esta é a relação sinérgica entre museus e coleções que atravessa séculos, dando origem a importantes museus, em diferentes continentes.

No Brasil a mesma história se repete, felizmente, e nossos museus contaram com significativas doações e/ou aquisições de importantes coleções privadas. Temos hoje no país colecionadores lúcidos e desejosos de que suas obras migrem futuramente para algum museu de sua preferência ou que, não raramente, almejam alcançar a criação de uma nova instituição dedicada à preservação de sua coleção. Vamos citar apenas um exemplo emblemático recente, ou seja, a Biblioteca Mindlin, doada à USP, que ensejou a criação de uma nova instituição, na própria universidade. Em alguns casos em que a opção presente ou futura pode ser uma doação, sem ônus de aquisição, os entendimentos são mais ágeis entre o colecionador/doador e o futuro museu que acolherá a coleção; já no caso de ser necessária uma compra/aquisição, torna-se mais difícil, pois via de regra os museus brasileiros não têm conseguido manter uma política estável de aquisição de obras para seus acervos; este é, por exemplo, um ponto importante a ser estudado, ou seja, precisamos definir quais políticas públicas poderão ser adotadas para estimular e garantir a aquisição de obras específicas ou coleções completas, por museus brasileiros, evitando assim a futura dispersão de conjuntos patrimoniais de excelência.

Não há dúvidas de que os processos de avaliação e aquisição de obras pela esfera pública terão de ser conduzidos de forma eficiente e com transparência, para que haja uma correta inversão de recursos públicos (incentivados ou não) e, ao mesmo tempo, sem prejuízo dos interesses dos colecionadores e artistas, que devem receber justamente pela venda de suas respectivas obras.

O que acha da frase “Sobram museus no Brasil, mas falta gestão”?

Temos um país continental e não mais do que 3.200 museus, segundo o Cadastro Nacional de Museus, editado pelo Ibram. A expressiva maioria desses museus, referendando a má distribuição de renda de nosso país, está concentrada nas regiões Sul e Sudeste. Assim, não se pode dizer que sobram museus no Brasil, porque há muitos municípios e mesmo regiões brasileiras que não possuem museus e nem qualquer iniciativa institucionalizada de preservação de sua memória. Mais do que dizer que falta gestão, pode-se dizer que há uma dicotomia muito grande entre os museus ícones que conseguem inovar em suas formas de gestão, e uma outra gama de museus, de diferentes níveis e intensidades, que ainda lutam por obter uma vinculação jurídico-institucional e os apoios elementares à sua sobrevivência enquanto instituição cultural aberta ao publico.

Faltam museus no país?

Faltam, sim, museus no Brasil. Apenas para dar um exemplo, dentre os mais de 3 mil museus existentes e cadastrados pelo IBRAM, apenas 6% são dedicados à ciência, mesmo contabilizando os zoológicos, parques ambientais, jardins botânicos, entre outros. Sem dúvida esta é a maior lacuna que temos no Brasil, justificando que se façam esforços concentrados para reverter tais dados, em curto espaço de tempo. Os museus de ciência são geradores de conhecimento e forte elemento de apoio à educação formal. O Brasil carece portanto de uma política pública a ser endossada pelos Ministérios da Educação, da Cultura, da Ciência e Tecnologia e do Meio Ambiente, em prol da criação e melhoria de museus científicos em diferentes regiões no Brasil.

Como você compara a situação dos museus de arte no Brasil com outros países? O que temos a aprender?

Os museus de arte no Brasil estão em situação de dialogar com parceiros internacionais representativos, pois podem gerar, e têm de fato gerado, intercâmbios bilaterais expressivos, potencializadores. Destacam-se as seguintes áreas que mais suscitam mútua cooperação: exposições temporárias, ações educativas, gestão e conservação de coleções e planos de comunicação. Considero que temos a aprender com as experiências internacionais em ações que dizem respeito ao desenvolvimento de planejamento sistemático de mais longo prazo e à realização de avaliação permanente de programas, produzindo indicadores claros de performance das instituições envolvidas.

Você defende as PPPs (parcerias público-privadas) no caso dos museus de arte? Poderia citar bons exemplos de PPP nessa área?

Acho que não se pode defender as PPPs para todos os contextos, uma vez que cada instituição museológica pode ter diferente vinculação institucional. No entanto, acho que temos bons exemplos de PPPs no Brasil, como o das Organizações Sociais que administram os museus da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. É inegável o avanço e a profissionalização da rede de museus da Unidade de Preservação do Patrimônio Museológico/SEC/SP, na última década.

Na sua opinião, o colecionismo privado no Brasil merece incentivo? Se sim, que tipo de incentivo poderia ser positivo?

Acho que o colecionismo privado merece incentivo relativo às ações que qualifiquem e aperfeiçoem o conhecimento sobre a coleção (pesquisa, catalogação, publicações) e também com relação às estratégias de difusão e acesso público (exposições, mídias sociais, educativo, entre outros). Também, evidentemente, valido possibilidades de incentivo para a compra de obras privadas que possam integrar processos de musealização.

Em artigo para a Aberje, você escreveu que “o museu não é mais a configuração do passado, mas a linguagem do futuro”. Poderia explicar melhor essa ideia?

O sentido mais pleno do museu consiste em preservar o passado e o presente para transmiti-lo ao futuro. Acabo de chegar de Berlim, Alemanha, onde participei de um programa de visitas a museus e lugares de memória ligados ao Holocausto e à cultura judaica, a convite do governo alemão, isto porque estamos desenvolvendo o projeto museológico para o Museu Judaico de São Paulo. Uma das citações que ouvi favorável à existência dos museus judaicos em diferentes países foi: quando não houver mais sobreviventes do Holocausto e nem seus descendentes diretos, aí estarão os museus para assegurar a formação de cidadãos que não permitam que esta história se repita.

Com relação especificamente à questão da linguagem do futuro, não me refiro exclusivamente à alta tecnologia cada vez mais presente nos museus, mas a diversas estratégias colaborativas e inovadoras que caracterizam os museus que dialogam, no presente, com o futuro. Para dar exemplos que sejam de compreensão mais simples, podemos falar de museus que combinam programas de excelência em que o aprendizado é o foco central. Podemos falar de um programa de educação acessível, intra e extramuros, para diferentes públicos; podemos citar uma curadoria compartilhada com a participação de pessoas da comunidade; podemos lembrar os programas interdisciplinares que combinam saberes complementares e estratégias transversais; podemos falar de um programa de conservação que conte com a participação e o relato de indígenas sobre os pigmentos naturais usados na coloração de uma peça de plumária; podemos falar em processos mais amplos de musealização de territórios com benefícios sociais assegurados; podemos considerar as ousadas estratégias de compartilhamento de informação nas mídias sociais, que hoje transformam os museus em elementos ícones, seguidos por milhares de pessoas em todo o mundo; podemos ainda citar as estratégias de avaliação de público que hoje seguem metodologias diferenciadas; ou falar ainda daquele museu que não se preocupa em transmitir informações, mas em levantar questões, dedicando-se a ouvir e não só a discorrer sobre um tema, que se transforma num fórum social onde o diálogo se dá no presente, levando os cidadãos a cocriar o futuro.

Algum museu brasileiro na sua visão se enquadra nesse conceito de “linguagem do futuro”?

Creio que vários museus brasileiros têm sistematicamente buscado este caminho. Prefiro citar alguns de tipologias diferentes, exatamente para evidenciar que não apenas os museus de arte conseguem inovar: Pinacoteca do Estado (SP), Inhotim (MG), Centros Culturais do Banco do Brasil (SP, RJ, DF, MG), Museu Histórico Nacional (RJ), Museu da Língua Portuguesa (SP), Museu do Futebol (SP).