Como artista, você produz arte antropocênica? Como espectador, você vê muita arte antropocênica? Essas perguntas não estão no seu radar? Um passeio por exposições de arte contemporânea em cartaz em São Paulo neste exato momento pode ser revelador no que tange às questões levantadas. A celeste visita mostras ecológicas pela cidade com disposição psicogeográfica para buscar respostas possíveis.
Era Uma Vez (2002), videoinstalação monumental de Steve McQueen, projeta as 116 imagens enviadas pela Nasa, em 1977, nas missões das sondas espaciais Voyager I e II, que atualmente viajam além do sistema solar, o mais longe que um objeto feito pelo homem já chegou. O objetivo das imagens seria ilustrar a vida na Terra para formas extraterrestres de inteligência. A Nasa escolheu fazê-lo através de fotografias de realizações de engenharia dos seres humanos. Navios, aviões, espaçonaves, metrópoles, arranha-céus, fórmulas matemáticas: a sequência de imagens mostra uma teleologia do progresso científico sem conflitos, sem guerra ou fome ou miséria.
Era Uma Vez (2002) é sobre a arrogância da história hegemônica. Steve McQueen utiliza um efeito de fade in/fade out nas transições, sobrepondo duas imagens por alguns segundos. Acrescenta uma trilha sonora, feita em colaboração com o linguista William J. Samarin, que parte da ideia de “falar em línguas” (ou glossolalia), emulando o som e o ritmo de diferentes idiomas, sem conteúdo discernível. A julgar pelo slideshow da Nasa para ETs, a vida na Terra em 1977 consiste em seres humanos em harmonia com suas espécies companheiras e na ostentação de arquiteturas e engenharias na superfície do planeta sem implicar algum paradoxo acerca de recursos não renováveis. Em 1977, os problemas da humanidade são de outra ordem, mas algo motiva a Nasa a enviar imagens ao espaço para sobreviverem à humanidade, também à Terra, quiçá mesmo à Nasa (motivo pelo qual não deixam de se congratular pela “conquista do espaço”).

Urgências da Terra
O céu de Bu’ú Kennedy, integrado ao todo, contrasta com o de Luiz Alphonsus, invertido pela ação de cavar um buraco na areia da praia e fazer uma fogueira dentro, sugerindo que a luz não vem das estrelas nem da Lua, mas do centro da Terra. A gestualidade de Castiel Vitorino, cavada em um fragmento de pedra-sabão para se assemelhar a um achado arqueológico, conversa com os grafismos da tela de Xadalu Tupã Jekupé, localizada depois do percurso celestial do corredor. Titulada Pytu Ho’a /A Queda da Noite Batalha dos Deuses (2024), a pintura resume a vida na Terra para um extraterrestre que pudesse visitar a exposição: os seres não humanos estão muito desapontados com a humanidade.
Na exposição, a maior parte das obras olha mesmo para a Terra, e estão expostas nas duas salas da Pina Contemporânea. Feral Atlas – The More-Than-Human Anthropocene (2021-presente), de Anna L. Tsing com vários outros estudiosos, e Orbit Diapason (2021), de Tabita Rezaire, estão entre as obras claramente antropocênicas. A primeira é uma coleção online de ecologias características do Antropoceno, que surgem a partir de relações entre espécies não humanas e as infraestruturas construídas por humanos; plataforma de divulgação científica (espécies invasoras, pestes, patógenos, espécies aceleracionistas etc.). A segunda aborda conhecimentos de povos africanos antes das invasões coloniais acerca de abelhas e outros manejos do meio ambiente.

Tempo espiralar
Em conexão direta com as pessoas artistas na Pina, também as que integram o Panorama 38 do MAM-SP, hospedado no MAC-USP, falam do beco sem saída do Antropoceno e dos trânsitos interespecíficos. Tanto Rafael RG, com sua escultura em pedra-sabão De Quando o Céu e o Chão Eram a Mesma Coisa (2024), espécie de achado arqueológico do futuro – como Escrito nas Estrelas… (2024), de Castiel Vitorino Brasileiro na Pina, com aplicações em folhas de ouro e de prata, falam de um tempo espiralar sem distinção entre o Céu e a Terra, ressignificando muitos trabalhos vistos ali, sobretudo aqueles criados por artistas indígenas.
Outros “readers” estabelecem conexões entre mostras em cartaz na cidade de São Paulo, alimentando a nossa psicogeografia: o caderno-ensaio Barro, publicado pelo Instituto Tomie Ohtake, traz, entre as diversas imagens cuidadosamente entremeadas de pequenos textos-anotações, fotografias de cerâmicas feitas por Mauricio de Paiva, autor de outra série que o MuBE apresenta na expo Mupotyra: Arqueologia Amazônica. Em Releve o Corretor Ortográfico (2011), Paiva reúne seus registros dos geoglifos da Amazônia.
Exemplo contundente da escala geológica da intervenção humana no planeta Terra é a obra Sufocamento, da série Madeira de Lei (2014-2016), de Pedro David. Registros fotográficos e arqueológicos das espécies nativas mantidas por lei nas plantações de eucalipto para produção de papel. Semeados em escala e ritmo industriais, os eucaliptos estendem-se a perder de vista e, no foco central da câmera do artista, vemos a árvore dissonante na paisagem, que na verdade é a única que pertence originalmente à paisagem, sufocada pelo Antropoceno. Essas fotos ficariam excelentes no próximo slideshow da Nasa.