icon-plus
Once Upon a Time (2022), de Steve Mcqueen [Foto: Juliana Monachesi]
Postado em 16/01/2025 - 3:35
Era uma vez a Terra
Mostras e publicações do MAM-SP, Pinacoteca, MuBE e Instituto Tomie Ohtake inventariam o Antropoceno

Como artista, você produz arte antropocênica? Como espectador, você vê muita arte antropocênica? Essas perguntas não estão no seu radar? Um passeio por exposições de arte contemporânea em cartaz em São Paulo neste exato momento pode ser revelador no que tange às questões levantadas. A celeste visita mostras ecológicas pela cidade com disposição psicogeográfica para buscar respostas possíveis.

Era Uma Vez (2002), videoinstalação monumental de Steve McQueen, projeta as 116 imagens enviadas pela Nasa, em 1977, nas missões das sondas espaciais Voyager I e II, que atualmente viajam além do sistema solar, o mais longe que um objeto feito pelo homem já chegou. O objetivo das imagens seria ilustrar a vida na Terra para formas extraterrestres de inteligência. A Nasa escolheu fazê-lo através de fotografias de realizações de engenharia dos seres humanos. Navios, aviões, espaçonaves, metrópoles, arranha-céus, fórmulas matemáticas: a sequência de imagens mostra uma teleologia do progresso científico sem conflitos, sem guerra ou fome ou miséria.

Era Uma Vez (2002) é sobre a arrogância da história hegemônica. Steve McQueen utiliza um efeito de fade in/fade out nas transições, sobrepondo duas imagens por alguns segundos. Acrescenta uma trilha sonora, feita em colaboração com o linguista William J. Samarin, que parte da ideia de “falar em línguas” (ou glossolalia), emulando o som e o ritmo de diferentes idiomas, sem conteúdo discernível. A julgar pelo slideshow da Nasa para ETs, a vida na Terra em 1977 consiste em seres humanos em harmonia com suas espécies companheiras e na ostentação de arquiteturas e engenharias na superfície do planeta sem implicar algum paradoxo acerca de recursos não renováveis. Em 1977, os problemas da humanidade são de outra ordem, mas algo motiva a Nasa a enviar imagens ao espaço para sobreviverem à humanidade, também à Terra, quiçá mesmo à Nasa (motivo pelo qual não deixam de se congratular pela “conquista do espaço”).

Ñamiri Bukhu Mahsu Pahtí Ku [Senhor das Noites e dos Tempos da Terra] (2024), de Bu’ú Kennedy [Foto: Juliana Monachesi]
A obra de Steve McQueen dá nome à mostra Era Uma Vez: Visões do Céu e da Terra, em cartaz na Pina Contemporânea, com curadoria de Ana Maria Maia, Lorraine Mendes e Pollyana Quintella. Última do ciclo de exposições de 2024, dedicado a temáticas da terra, a coletiva reúne 34 artistas em torno dessa chave, mas incorpora ao debate sobre o meio ambiente as abordagens artísticas sobre o espaço que se multiplicam entre as décadas de 1960 e 1980 – contexto da corrida espacial durante a Guerra Fria. Tudo no início do percurso pela mostra aponta a abóbada celeste e além dela: da tela em marchetaria Ñamiri Bukhu Mahsu Pahtí Ku [Senhor das Noites e dos Tempos da Terra] (2024), de Bu’ú Kennedy – artista da Terra Indígena Alto do Rio Negro (AM) –, que representa a entidade do título situada entre o Monte Roraima, morada dos guardiões, e o rio, casa da ancestralidade, à série de fotografias Positivo/Negativo (1970-1984), de Luiz Alphonsus, da escultura Escrito nas Estrelas… (2024), de Castiel Vitorino Brasileiro, ao perturbador trabalho sonoro de Cildo Meireles, Mebs/Caraxia, da série Blindhotland (1970-1975).

Orbit Diapason (2021), de Tabita Rezaire [Foto: Levi Fanan/Pinacoteca de São Paulo]

Urgências da Terra

O céu de Bu’ú Kennedy, integrado ao todo, contrasta com o de Luiz Alphonsus, invertido pela ação de cavar um buraco na areia da praia e fazer uma fogueira dentro, sugerindo que a luz não vem das estrelas nem da Lua, mas do centro da Terra. A gestualidade de Castiel Vitorino, cavada em um fragmento de pedra-sabão para se assemelhar a um achado arqueológico, conversa com os grafismos da tela de Xadalu Tupã Jekupé, localizada depois do percurso celestial do corredor. Titulada Pytu Ho’a /A Queda da Noite Batalha dos Deuses (2024), a pintura resume a vida na Terra para um extraterrestre que pudesse visitar a exposição: os seres não humanos estão muito desapontados com a humanidade.

Pytu Ho’a /A Queda da Noite Batalha dos Deuses (2024), de Xadalu Tupã Jekupé [Foto: Levi Fanan/Pinacoteca de São Paulo]
Para demarcar o compromisso com as urgências da Terra, faz diferença lançar um programa anual intitulado Histórias da Ecologia? No Masp, que dedica a programação de 2025 ao tema, sim. A confluência da temática nas artes está presente, seja como programa institucional, seja como um movimento de curadorias e artistas nessa direção. Importa que o assunto seja tratado em profundidade, como fez a Pina em 2024, como se vê também nas mostras Dan Lie: Deixar Ir, instalação atualmente apresentada no Projeto Octógono do museu; Cecilia Vicuña: Sonhar a Água; e outras individuais, como as de Gervane de Paula, José Bento e Sallisa Rosa. A expo que encerra o ano da Pina lança luz sobre a violência da narrativa hegemônica que resume, em seu “era uma vez”, uma versão imperialista da história, deixando de fora o resto do mundo, do Sul Global ao multiespecismo e diversidade epistemológica.

Na exposição, a maior parte das obras olha mesmo para a Terra, e estão expostas nas duas salas da Pina Contemporânea. Feral Atlas The More-Than-Human Anthropocene (2021-presente), de Anna L. Tsing com vários outros estudiosos, e Orbit Diapason (2021), de Tabita Rezaire, estão entre as obras claramente antropocênicas. A primeira é uma coleção online de ecologias características do Antropoceno, que surgem a partir de relações entre espécies não humanas e as infraestruturas construídas por humanos; plataforma de divulgação científica (espécies invasoras, pestes, patógenos, espécies aceleracionistas etc.). A segunda aborda conhecimentos de povos africanos antes das invasões coloniais acerca de abelhas e outros manejos do meio ambiente.

Site do projeto Fetal Atlas, de Anna L. Tsing, Jennifer Deger, Alder Keleman Saxena e Feifei Zhou

Tempo espiralar

Em conexão direta com as pessoas artistas na Pina, também as que integram o Panorama 38 do MAM-SP, hospedado no MAC-USP, falam do beco sem saída do Antropoceno e dos trânsitos interespecíficos. Tanto Rafael RG, com sua escultura em pedra-sabão De Quando o Céu e o Chão Eram a Mesma Coisa (2024), espécie de achado arqueológico do futuro – como Escrito nas Estrelas… (2024), de Castiel Vitorino Brasileiro na Pina, com aplicações em folhas de ouro e de prata, falam de um tempo espiralar sem distinção entre o Céu e a Terra, ressignificando muitos trabalhos vistos ali, sobretudo aqueles criados por artistas indígenas.

Escrito nas Estrelas… (2024), de Castiel Vitorino Brasileiro [Foto: Juliana Monachesi]
No Panorama abundam exemplos de obras interespécies, como no núcleo de cerâmica instalado sob o olhar sereno do território de Dona Romana. Ali se destacam formas montanhosas que constituem uma instalação inédita da longeva artista Marlene Almeida, Derrame (2024), feita com pigmentos minerais oriundos de basalto e amostras recolhidas pela artista em pontos diferentes do Nordeste. Almeida está presente nas duas exposições, a do MAM e a da Pina; nessa última por meio de um texto publicado no reader, Era Uma Vez: Escritos de Artistas Sobre o Céu e a Terra. Trata-se de um relato sobre a militância nas Ligas Camponesas da Paraíba nos anos 1960.

Outros “readers” estabelecem conexões entre mostras em cartaz na cidade de São Paulo, alimentando a nossa psicogeografia: o caderno-ensaio Barro, publicado pelo Instituto Tomie Ohtake, traz, entre as diversas imagens cuidadosamente entremeadas de pequenos textos-anotações, fotografias de cerâmicas feitas por Mauricio de Paiva, autor de outra série que o MuBE apresenta na expo Mupotyra: Arqueologia Amazônica. Em Releve o Corretor Ortográfico (2011), Paiva reúne seus registros dos geoglifos da Amazônia.

Projeção da série Releve o Corretor Ortográfico (2011), de Mauricio de Paiva [Foto: Juliana Monachesi]
A coletiva no Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia parte de estudos sobre a ação de povos indígenas ancestrais na formação da Floresta Amazônica e reúne arqueologia, arte e meio ambiente para apresentar a ocupação da região e os impactos da exploração dos recursos naturais em nome do desenvolvimento. “Mupotyra significa florescer em Nheengatu, língua geral amazônica. Ao revisitar o passado, a exibição propõe um chamado de consciência para imaginarmos novos futuros, de forma sustentável”, lemos no texto de apresentação.

Exemplo contundente da escala geológica da intervenção humana no planeta Terra é a obra Sufocamento, da série Madeira de Lei (2014-2016), de Pedro David. Registros fotográficos e arqueológicos das espécies nativas mantidas por lei nas plantações de eucalipto para produção de papel. Semeados em escala e ritmo industriais, os eucaliptos estendem-se a perder de vista e, no foco central da câmera do artista, vemos a árvore dissonante na paisagem, que na verdade é a única que pertence originalmente à paisagem, sufocada pelo Antropoceno. Essas fotos ficariam excelentes no próximo slideshow da Nasa.