I. A concretude da matéria
Desde o início de abril, obras da artista paulista Amelia Toledo (1926-2017) ocupam o Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia (MuBE), ícone da arquitetura de Paulo Mendes da Rocha (1928-2021). Essa reunião póstuma de contemporâneos toma, a princípio, ares de júbilo. O rigor dos traços do arquiteto enternece com a vibração dos gestos da artista. A concretude do edifício contribui para a percepção do caráter construtivo que permeia a prática de Toledo. A materialidade pulsa. O benefício é mútuo, ainda mais para o público, que vê renovada a sua experiência em um espaço familiar.
A areia que se espalha no interior da edificação especialmente durante a ocasião funda novos ritmos. As ondulações dos percursos convidam ao deslocamento que enfrenta a resistência do solo e, consequentemente, do próprio espaço. O corpo devaneia entre imagens e materialidades, nos lembrando que todo território possui irregularidades, seja ele topográfico, conceitual, ou poético.
Amelia Toledo emergiu na cena artística em um período em que a abertura das possibilidades criativas foi responsável pela recentralização da experiência na prática artística. Ao público, demandou-se o abandono da passividade, ao artista, exigiu-se o compromisso com a experimentação, com a pesquisa plástico-visual e a exploração do campo sensível para além da visão. Se o trabalho de Toledo, muitas vezes configura qualidades hápticas, evocando o desejo de se engajar fisicamente com suas formas, seja fazendo soar rochas marinhas – seus Dragões Cantores (2007) –, ou atravessar e ser atravessado por seus campos de cor – em Caminhos da Cor (2010-2024) –, a exposição acerta em realocar a experiência no corpo.
Somos surpreendidos ao constatarmos que a assepsia do museu pode ser dissolvida, que suas entranhas podem ser, de fato, espaço para a especulação imaginativa e para encarar o prazer como meio de reflexão. Se o silêncio ainda ecoa nas suas paredes, este é sinal de uma diversão introspectiva, aberta à percepção de coisas que dificilmente seremos capazes de expressar, mas que não deixam de provocar e convocar memórias e sensações.
II. Museus e mausoléus
Amelia Toledo: Paisagem Cromática, com curadoria de Fernando Limberger e Daniela Gomes Pinto, concilia a formulação de Paul Valéry, em seu ensaio O Problema dos Museus, de 1931. O poeta inaugura o texto afirmando: “Não gosto tanto dos museus. Muitos são admiráveis, nenhum é delicioso” [1]. Não é preciso, de fato, gostar dos museus que operam com princípios de conservação e classificação, para admirá-los. Inegável, porém, que, após Valéry, eles se tornaram construções ainda mais admiráveis.
Durante o século XX, observamos a consolidação das instituições da arte. Em especial, aquelas voltadas para a apresentação de arte moderna e contemporânea proliferaram pelo globo, constituindo-se, também, como marcos arquitetônicos, verdadeiras esculturas que abrigam outras obras de arte. O caráter icônico desses edifícios, muitas vezes, sobressai aos próprios trabalhos que apresentam.
São múltiplos os projetos que reforçam essa tese, do Guggenheim, de Frank Lloyd Wright, em Nova York, ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói, projetado por Oscar Niemeyer. Há, também, o Museu de Arte de São Paulo de Lina Bo Bardi, além do Milwaukee Museum, nos Estados Unidos, de Santiago Calatrava, o Centro Georges Pompidou, de Renzo Piano, em Paris, entre muitos outros. O MuBE integra esta prolífica lista.
O edifício de Mendes da Rocha é mais do que um abrigo. É um totem horizontalizado, instalado em um dos bairros mais nobres da capital paulista. A “pedra do céu”, como ficou conhecido, comporta-se como uma espécie de antimuseu, tendo em vista que, além de não apresentar coleção, as galerias encontram-se abrigadas no subsolo e uma monumental viga de concreto de sessenta por doze metros é o elemento que sinaliza sua existência.
Anos após Valéry, Theodor Adorno se debruçou sobre as analogias entre o museu e o mausoléu, para além da fonética. De fato, poderíamos compreender o MuBE como uma espécie de cripta, fazendo retumbar os sentidos primeiros da elaboração plástica tridimensional. Afinal, muitas das estruturas que hoje reconhecemos como resultados dos esforços construtivos de nossos antepassados, integrando o universo tipológico daquilo que nomeamos escultura, encontram-se relacionados ao universo ritualístico dos mortos. Das urnas e vasos funerários de diferentes culturas ao redor do globo à imago romana, que originou o gênero do retrato, a arte esteve à serviço da morte.
III. Natureza e paisagem
Escultura e arquitetura são linguagens artísticas intimamente relacionadas ao espaço. De início, eram construções que descontinuavam a paisagem natural, instalando nela suas formas artificialmente produzidas. A paisagem constituiu-se como gênero artístico somente muitos séculos depois das primeiras manifestações na paisagem. Sua categorização nos é herdada da Europa do século XVII, arraigada na compreensão do homem como mestre do mundo natural, capaz de agir diretamente sobre seus meios para atingir seus fins supostamente esclarecidos.
A institucionalização da paisagem é atravessada, também, pelo empreendimento colonial, então em curso nas Américas, que além da expropriação dos territórios, prescrevia expedições para mapear “cientificamente” aquele espaço. Participavam dessas viagens artistas, responsáveis por transpor em imagens aquilo que era observado, tornando aparente o que se escondia sobre o véu da distância ultramarítima.
Resulta dessa escolha uma prática multifacetada direcionada pela investigação sobre o espaço e aquilo que o constitui. Mesmos seus trabalhos em pintura tratam da espacialidade para além daquela constituída pelo campo pictórico. Em Campos de cor (1995-2009), por exemplo, a artista justapõem telas de tamanhos diferentes, mas com tonalidades que se avizinham no espectro cromático, em uma composição que ocupa o canto do museu.
Ao nos aproximarmos dessa zona de cor, somos banhados pela luz que ali reflete o calor solar do laranja. Um dos espaços mais desprivilegiados da arquitetura desponta como o protagonista de sua atitude poética. Na série de pinturas Horizontes (2012), por sua vez, a divisão horizontal, repousando na disposição ortogonal, provoca devaneios de paisagem, evocando o limite da visão que distingue solo e céu.
O espaço pictórico de Toledo também é rico em texturas, ainda que penda seguidamente ao mono ou bicromático. Estas resultam tanto do suporte, que, servindo de sustentação ao fazer pictórico, não desaparece completamente sobre as camadas de tinta, quanto pela sobreposição e justaposição de pinceladas de tonalidades próximas que dão a impressão de fazer vibrar suas superfícies no encontro com nossos olhos. Esses índices gestuais, por sua vez, aparecem decupados em suas séries de aquarelas Ideogramas do Acaso (1988) e Caligrafias (1983), ausentes na mostra.
Toledo não se furta de investigar as propriedades dos materiais. Sobressai, todavia, o caráter sintético da linguagem plástica da artista. Resultam de sua prática, esculturas, pinturas, fotografias, objetos e instalações que articulam, muitas das vezes, dois elementos, sejam eles contrastantes, ou familiares. Seus primeiros experimentos no campo da escultura, provém de exercícios de passagem do bidimensional ao tridimensional, cortando e dobrando chapas de aço e lâminas de cobre. Se estão ausentes os primeiros resultados de suas investigações, do final da década de 1950 e posterior, encontramos estruturas tardias onde subjaz a mesma ordem construtiva, como Vírgula (1989-2022), além das esculturas expostas na parte externa, como Fatias de Horizonte (1996) e Conjunto de Cortes na Cor (1992).
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IV. Errâncias
Logo no início da exposição, após nos debruçarmos sobre as vitrines com os esboços e documentos referentes aos projetos públicos da artista – como a Estação Cardeal Arcoverde do Metrô do Rio de Janeiro e para o Complexo Viário João Jorge Saad, em São Paulo – que reforçam o entrelaçamento entre arte e arquitetura, encontra-se uma fotografia sem título (2009), feita pela artista. A imagem, que também havia ilustrado Das Viagens do Juca pela Natureza (2000), livro ficcional de Toledo, é simultaneamente o anúncio e o resumo daquilo que encontraremos nessa reunião de suas obras. A pedra ampliada e aproximada ao olhar pela fotografia resulta em uma imagem entre a abstração e a paisagem, a transparência e a opacidade, a técnica e a natureza, como a nos lembrar que esta última não se convenciona por bordas rigorosas.
A relação entre escalas também reverbera nas suas Guaches (1959-1960), imagens cósmicas-microscópicas, como aquelas que poderia ter observado pelas lentes dos instrumentos de seu pai, o pesquisador de anatomia patológica Moacyr Amorim de Freitas, ao qual auxiliou no laboratório durante sua juventude. Essas figurações do impossível constituem o que há de mais refinado e intrigante em sua produção em papel, onde muitas vezes a literalização da natureza pode se impor.
Suas Minas de cor (2006-2021), por sua vez, contrapõe o acabamento industrial, resultado de processos maquínicos, e o natural, que advém do contato prolongado com outros elementos naturais. São herdeiras do Poços dos anos 1970, por isso demandam a vertigem do corpo. Dentro desses cilindros, o brilho dos materiais se replicam, incendeiam os olhos que se debruçam sobre eles. O trabalho, frente às nossas urgências climáticas, adquire novos significados. As minas, mais do que fontes prenhes de cor, prescrevem o ideal da virtual infinitude dos recursos minerais. Pura miragem.
Um apito, contudo, faz lembrar da realidade coercitiva da instituição, que, devido ao sucesso da mostra, elegeu como estratégia a restrição temporal da experiência do público naquele espaço. Cada grupo tem direito a passar apenas meia hora para visitar o espaço. Um tempo ínfimo, mero grão de areia na cronologia do mundo e um instante insuficiente para mergulhar, de fato, na magnitude da pesquisa de Toledo. O museu pode ser divertido, mas talvez, no fundo, prefira não o ser, ou ainda tenha muito o que trabalhar para de fato não limitar a experiência com aquilo que apresenta.
Referências
[1] VALÉRY, Paul. O Problema dos museus. Trad. Sônia Salzstein. ARS, São Paulo, v. 6, n. 12, 2008, p. 31.
[2] VALENTIM, Fabio (Org.) Um guia de arquitetura de São Paulo: doze percursos e cento e vinte e quatro projetos (1925-2018). 1a Ed. São Paulo: Edita Escola da Cidade; Martins Fontes, 2019. p. 252.
[3] ADORNO, Theodor W. Museu Valéry Proust. In: Prismas; crítica cultural e sociedade. São Paulo: Ática, 1998, p. 173.
Serviço:
Amelia Toledo: Paisagem Cromática
06 de abril a 04 de agosto de 2024
Museu Brasileiro de Escultura e Ecologia (MuBE)
Av. Europa, 218 – São Paulo/SP
André Torres é Mestre em Linguagens Visuais pelo PPGAV-EBA-UFRJ (2016) e Doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio (2023).