As análises publicadas sobre o O Silêncio da Tradição: Pinturas Contemporâneas, exposição coletiva no Centro Universitário MariAntônia (USP) que contou com organização de Rodrigo Naves e texto curatorial meu, são surpreendentes tanto pelos diagnósticos de alto nível que apresentam quanto pela confusão que conseguem fazer sobre as próprias leituras.
Digo isso porque a espécie de fôlego crítico desses textos põe em movimento uma trilha de problemas que, há décadas, são menosprezados pelo debate nacional. O fato é que, quando uma questão da cultura permanece retraída à câmara de ecos da economia, formular balanços se transforma numa travessia sem mapa. Mas a poeira levantada por esses textos reascende problemas cuja volta ao tabuleiro se faz necessária – e é isso o que motiva uma tentativa de resposta à altura.
As críticas de André Torres, divulgada no Estado de São Paulo, e de Fabrício Reiner, publicada na revista DasArtes, tiram a prova da existência de tramas reflexivas não triviais. Os textos captam bem o preâmbulo da mostra: deixam claro que não se trata de uma vontade conservadora ou de um elogio ao passado, mas, sim, de certo engajamento sobre a pintura enquanto campo de conflito calibrado para frente. Mas, ao partirem para analisar os trabalhos da mostra, fazem precisamente o contrário.
Se os textos reconhecem a necessidade de uma “tradição que nos ensine a traí-la”, ambos reduzem todos os trabalhos a uma dependência direta da produção de Paulo Pasta. Numa espécie de achatamento que confunde tradição com a adaptação de procedimentos, o resultado é que experimentação vira um receituário de perguntas a se responder. E quando se toma o trabalho do “mestre da pintura paulista” enquanto programa, esquecemos o que Pasta fez de melhor: reformular as perguntas das gerações anteriores.
Estou convencido de que a história de uma “tradição do silêncio”, que intitula o texto de Torres, seria certeira se, por “tradição”, o autor não se referisse a uma ideia de escola. A diferença, afinal, entre tradição e escola não é de grau, mas de natureza. Uma tradição parte de certo conjunto de questões encravadas em estruturas históricas específicas, cuja reformulação frente às exigências históricas do presente é o seu combustível. Uma escola, ao contrário, vive em perguntas fixas – ao modo de certo programa pedagógico. Mas a pressa para interpretar as problemáticas de cada artista sob o regime da pintura de Pasta encaminha ambas as leituras a uma insistência pela naturalização de estruturas passadas.
Na aposta por uma ordem comum de finalidades aos princípios do “mestre”, não me surpreende que as torsões internas de cada artista se apresentem anestesiadas em prescrições gerais. Acontece que esses trabalhos não são interessantes por seguirem princípios hereditários, mas porque conseguem rearticular esses princípios de modo a gerar problemas novos. Quando as análises falam em “gestualidade controlada” ou “dimensão introspectiva”, estão descrevendo efeitos, não causas.
O fato é que uma tradição não incorpora hereditariedade, trata-se de inverter a lógica dada e recolocar o conjunto de perguntas de certos debates sob um novo tecido histórico. Mas, na medida em que os textos insistem em falar de uma linhagem, de uma escola, de um mestre acompanhado dos seus discípulos, acabam cristalizando perguntas que deveriam permanecer em movimento diante do fluxo incerto da realidade. Isso porque as críticas, no lugar de integrar os trabalhos à consciência histórica da qual fazem parte, edificam um muro que constrange o conjunto à bússola do “mestre da pintura paulista”.
Não precisamos disso ir muito longe para entender a ratoeira: essa repetida tradição que “nos ensina a traí-la” acompanhada da “memória formal que o artista negocia, tensiona e reconfigura” terminam erguidas sob as alavancas de Pasta ao patamar de centro estático do redemoinho. Tempo, organização cromática, pinturas meditativas, elementos da arquitetura… Volta e meia esses termos se repetem em ecos do mesmo tom. E, constrangidos aos debates sobre a pintura de Pasta dos anos 1990, os textos equacionam os trabalhos em uma corrida atrás da própria sombra.
Entre o “mestre da pintura paulista” e a reiteração das especificidades que tomam os artistas no confronto com a tradição, o esforço em colocar essas produções placa a placa com o real termina reduzido a um impulso por responder questões de três décadas atrás. No limite de uma teoria da arte, os textos são bem-sucedidos. Mas, ao se aproximarem dos trabalhos, lançam as cartas ao ar. Transgressão vira ordem, assim como experimentalismo vira repeteco e tradição equivalente de escola. De fora para dentro, como indica o protocolo.
Gabriel San Martin é escritor e crítico de arte. Foi o responsável pelo texto curatorial da exposição “O silêncio da tradição: pinturas contemporâneas”, organizada por Rodrigo Naves no Centro MariÂntonia (USP).