Em uma série de reportagens, a seLecT apresenta escolas idealizadas e geridas por artistas nacionais e internacionais, históricos e em atividade. A especificidade desses projetos está na transformação dos modelos de ensino e de trocas, isto é, como os afetos e conhecimentos são transmitidos e como podem gerar novas dinâmicas de organização do espaço ou da economia desses centros de reflexão e prática.
Escola Por Vir
Rio de Janeiro, 2017
O quarto capítulo da série sobre as escolas de artistas é dedicado a uma lanchonete de artista. Ou uma “práxis estético política” de construção de vínculos junto às comunidades da zona portuária, no Rio, que começou a ser ativada em 2017, a partir da prioridade número um do contexto em que o projeto está inserido: a fome.
“Lanchonete assim se chama porque nasceu em torno de uma cozinha”, diz a artista Thelma Vilas Boas a seLecT. “A cozinha funda os princípios de uma escola. Uma escola de mundo. Através da alimentação, a gente cria processos: de alfabetização, de politização, de reconhecimento das faltas. Quando eu trouxe o projeto pra cá, a primeira coisa que eu ouvia era ‘estou com fome’. Como você ensina qualquer coisa pra uma criança que tem fome?”.
A L<>L teve duas sedes antes de começar a gestar a Escola Por Vir. Seu primeiro porto foi a garagem do Saracvura, um espaço independente no bairro da Gamboa, onde Thelma fez funcionar durante todo o ano de 2017 uma cozinha-escola-comunitária, gratuita e aberta diariamente, oferecendo às crianças da região e seus familiares oficinas de preparo saudável de alimentos in natura, de artes, impressões gráficas, letramento e estudos de “narrativas não brancas”. No início de 2018, a L<>L migrou para o Bar Delas, boteco na esquina das ruas Pedro Ernesto e Sacadura Cabral, em frente à Praça da Harmonia, comandado pela feminista, nordestina e cabeleireira Kriss Coiffeur, no andar térreo de um imóvel ocupado há 40 anos por cidadãxs sem moradia.
Fotógrafa, paulistana, filha da classe média e branca, Thelma Vilas Boas era a identidade menos provável de habitar aquele lugar, naquele momento – o ano imediatamente após o grande teatro olímpico. Quando a Prefeitura do Rio voltava a abandonar a região portuária, após uma década de obras e tentativas de gentrificação (por exemplo, abusando da denominação “área de risco” a fim de expulsar populações locais do Morro da Providência), o projeto L<>L se adensava e se entranhava com mais apego à região.
Na introdução de sua dissertação de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da UFRJ (2018), Thelma Vilas Boas resume da seguinte forma o start da L<>L: “Este caderno conta o itinerário de uma artista que, constrangida com o não engajamento político de sua atuação artística e os limites físicos e conceituais do campo da arte contemporânea diante do crítico contexto socioeconômico, da crescente injustiça social e do anúncio do final de políticas governamentais de proteção aos direitos das minorias e dos recursos naturais, acaba por transformar sua prática por completo”.
Elege, assim, a comensalidade como prática artística, e passa a atuar na região denominada Pequena África – título que, reza a lenda, teria sido dado pelo compositor e pintor Heitor dos Prazeres. Zona portuária do Rio, composta pelos bairros de Gamboa, Saúde, Santo Cristo e Morro da Providência, a região acumula algumas das mais severas fraturas da história do Brasil. No Cais do Valongo, desembarcaram, entre 1811 e 1831, cerca de um milhão de africanos escravizados. Já no século 20, a primeira favela do Rio foi formada no Morro da Providência, por nordestinos que vieram à Capital cobrar o soldo pela participação na Guerra dos Canudos – que nunca foi pago.
“Eles foram traídos pelo governo, se amontoaram no morro e ficaram acampados. Todos se referiam ao Morro da Providência, porque lá viviam aqueles que esperavam a providência. Lá eles plantaram uma espécie que trouxeram de Canudos, do agreste, que é a Favela. Aí todos associam o morro àquela planta e surge o termo favela”, contou Thelma a um grupo de visitantes da feira ArtRio que chegou à L<>L pensando estar visitando o ateliê da artista. O espaço foi integrado este ano ao Circuito de Ateliês Aberto da feira carioca. De lá, o grupo se dirigiu ao ateliê do artista Daniel Murgel, que fica na mesma rua.
É com os herdeiros dessas fraturas que o projeto lida. “A gente foi, ao longo dos anos, elencando as chaves, as dobras, e foi descobrindo outras barreiras”, continuou Thelma. “Depois que você cuida da fome, e de uma criança que se alimenta só com coisas processadas, industrializadas, como é que a gente pode educar um corpo que tem cansaço? Uma criança preta, pobre e favelada é uma criança exausta. Ela não tem onde descansar. Então, aqui é também um lugar de descanso, de segurança, de acolhimento”.
Escola por Vir
Em junho de 2019, a L<>L propôs a um grupo heterogêneo de 30 colaboradores uma invenção coletiva. “Estamos chamando de Escola Por Vir porque este semestre pretendemos inventar junto com a comunidade, a partir da perspectiva da criança, o que é uma escola. O que pode ser uma escola para 2020. O que a gente pode imaginar como um espaço de construção de inteligência para enfrentar o horror que se instala na realidade brasileira”, diz a artista.
Seu projeto comensal e comunitário ganhou finalmente o estatuto de Associação, estruturada sobre seis eixos: alimentação, identidade e bem-estar social, educação, práticas e residências artísticas, comunicação e documentação e moradia e cidade. A associação se deslocou para o número 16 da Rua Pedro Ernesto, a poucos metros do Bar Delas. Em um galpão de 240 metros quadrados, mantém o programa que executa desde 2017 junto à população local, e paralelamente busca recursos e parcerias para garantir três anos de orçamento para a manutenção e a execução das ideias que não param de brotar.
“Estamos chegando no galpão”, diz Thelma. “Faz uma semana que a gente terminou a obra do telhado. Fizemos um mutirão, pintamos. Nesse espaço, a gente vai ter uma florestinha, pra ver plantar, produzir e comer”, indica. “Lá em cima, são dois dormitórios, para pessoas que moram fora do centro da cidade, em outras periferias, possam ter a experiência do centro. Porque é no centro que tem os equipamentos públicos que funcionam: culturais, de saúde, de justiça, educação, transporte. Então, a ideia é oferecer a possibilidade que pessoas de periferia tenham a experiência e a vivência do centro”.
Enquanto Thelma recebia o grupo da ArtRio, três ou quatro crianças desenhavam e brincavam no espaço e dois colaboradores ocupavam o galpão: o artista Roosevelt Pinheiro, que dá um curso de serigrafia no local, e uma estudante de arquitetura, que faz ali um estágio. Gente passava na rua, parava e perguntava com curiosidade: “o que vai ser aí?”.
No meio do galpão, um círculo de cadeiras com as Almofadas Pedagógicas de Traplev insinuava que havia acontecido um encontro ali. Um pouco adiante, o NBP de Ricardo Basbaum [“sigla, formada por três letras, uma espécie de motivação geral ou pretexto de trabalho (quase um programa para ações), um meio para impregnação do espaço. Quase um lugar-comum atópico”] funciona temporariamente como canteiro de horta. Mas em dias de calor, esse objeto não identificado multi-função vai para rua, vira piscina e alegria da garotada.
“O Rio de Janeiro é uma cidade quente e sem árvores. A praça da Harmonia é muito árida, não tem uma fonte. O Rio era uma cidade de fontes. Mas, quando a água começa a ser comercializada, eles fecham as fontes. Não tem onde você tomar um banho, onde se refrescar…”, diz Thelma, sobre a importância de fornecer água no galpão.
“Aqui é centro, mas é periferia. Aqui na rua, a gente fica meses pra fazer a ligação da água. O centro é ali. Mas a água aqui não chega. Fizeram o VLT, todo lado de cá da calçada por privado ao acesso à CEDAE [Companhia Estadual de Águas]. A gente, pra conseguir ter água tem que travar uma luta com a Prefeitura. Eu consegui elaborar todas as políticas que estão implicadas nesse movimento, mas, da casa do vizinho, até a esquina, ninguém tem água. Todo mundo se vira com balde, bacia…”, conta.
Sobre a mesa da cozinha, sempre frutas e legumes. Em torno da mesa, as conversas. “A partir de uma experiência vivida de chupar uma fruta, constatar que ela tem muitas sementes, a gente pode associar conceitos. Por que as frutas do supermercado não tem semente? Por que a semente é tão preciosa, a ponto de os negros africanos guardarem as sementes no cabelo? Porque o que havia de mais importante eram as sementes crioulas, por isso ficavam guardadas nos dreadlocks”.
Afrobetização
Histórias como essas dão munição para um projeto de letramento da L<>L_Escola Por Vir, em elaboração conjunta com uma professora e pesquisadora, nascida e criada no Morro da Providência. “Estamos pensando um letramento que a gente chama de afrobetização. Porque essas crianças são herdeiras da diáspora africana. No entanto, não se reconhecem como herdeiros de rainhas e reis. São crianças que não sabem de sua origem. Esse apagamento histórico é comprometedor. Uma fratura enorme da história e de sua ancestralidade”, diz.
Pela afrobetização, então, as crianças devem aprender a ler e a escrever a partir de coisas que tenham significado para elas. É uma das disciplinas a serem colocadas em prática em 2020, em meio ao que Thelma chama de uma “constelação curricular”. “São vários passos pra ir construindo um indivíduo livre, autônomo e emancipado de políticas que o acorrentam”.