“Não é um festival de teatro, nem uma mostra de dança, mas tem um pouco de tudo isso.” É dessa forma que a organização da Mostra Farofa do Processo se apresenta. O evento, nascido em 2020, chega à quarta edição com nome e formato transmutados, mas ainda com o “movimento” como principal pressuposto. O novo Farofa de Processo começa no próximo sábado, 2/3, em São Paulo, na Casa do Povo, Oficina Cultural Oswald de Andrade e no Teatro de Contêiner. A ênfase no OFF (do inglês, ‘fora’) no que até o último ano era a FarOFFa explicava a criação e existência de um evento de teatro paralelo à Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITSP) que, este ano, começa um dia antes, sexta-feira, 1/3, e segue com programação até 10/3.
Por não ser nada e tudo ao mesmo tempo é que o festival tem a premissa de apresentar de maneira aberta processos e situações ainda em possibilidade de especulação. Outros formatos de encontros, rodas de conversa, formações online e presenciais, sessões de vídeos, somam-se à programação. Sem tema ou adjetivos que definem um assunto, a comunicação da mostra apresenta a quarta edição a partir do conceito de tempo. “É bonito ver que, a cada ano que passa, o festival vem ganhando mais força. Estou animado de poder fazer parte dessa troca e acompanhar outros trabalhos de amigos”, conta à ceLesTe Preto Vidal, que estará em cartaz com o solo Terror Noturno.
Entre produções de São Paulo, Baixada Santista, Espírito Santo e Piauí, o partido é a exibição de obras já apresentadas anteriormente. Sem estreias, o público ganha uma chance de ver e rever peças.
Especulação
Olhando para a programação da Mostra (com um site super legal), lendo as sinopses e biografia dos participantes, a divulgação toda, a sensação é que são conjuntos de trabalhos que tomam o presente enquanto ficção. Terror Noturno, apresentado por Vidal, narra a vida de um homem com dificuldades para dormir. No delírio, o personagem entende que está aprisionado no próprio pesadelo (ou sonho), ligado ao seu passado. Vidal, que assume a interpretação, dramaturgia e concepção, conta que “o personagem revive cenas de filmes de terror quase em forma de sonho, criando uma releitura onde o protagonismo, alterado para o corpo de um homem negro (completamente demonizado) que luta para nao ser o ‘vilão” que todos esperam, muda completamente essas narrativas predominantemente brancas”.
O sonho como recurso narrativo aparece também em Magnólia, apresentada pela atriz e diretora Marina Esteves, que narra a história de uma mulher negra cansada de carregar o fardo de seu gênero e raça, ou o terror como gênero, como em Stalking, em que uma mulher passa a sofrer assédio no ambiente de trabalho; a peça, criada por Elisa Volpatto, Livia Vilela, Paulo Salvetti e Rita Grillo, parte da recriação da história de abuso sofrida desde 2015 por Vilela. A distopia, ficção, especulação de futuro e passado parecem ângulos possíveis para um olhar crítico do presente, pautado em assuntos básicos para compreender o hoje: corpo, gênero, raça e classe. A ficção surge então como filtro do que se vive diariamente, como possibilidade de interpretação do real. “Comecei a ver a linguagem do terror como uma possibilidade de me aproximar dos meus medos e cada vez mais me apropriar das histórias dos meus”, conta Vidal.
Que histórias são contadas?
“O teatro é feito por compartilhar histórias, ter essa abertura de contar um pouco da minha é uma satisfação enorme. Esse projeto está em processo e já vai fazer 6 anos. Tudo o que eu tinha lá no começo era a história de um tio que eu mal conheci, porque foi morto aos 17 anos, quando eu tinha 4. E essa história sempre me assombrou. Aos poucos fui percebendo que o que me pegava era a imagem dele (um homem preto retinto). E cada vez mais entendendo que meu “terror’ não era pela figura do meu tio, mas sim pelo que a sociedade faz com nossos corpos”, conclui o artista sobre o processo de criação da peça e a apresentação para o público.
Outra história contada ao longo dos dias de Farofa é a relação do artista e político Abdias do Nascimento com o diretor e dramaturgo Augusto Boal, a partir das vozes do Coletivo Legítima Defesa. Exílio: Notas de Mal Estar que Não Passa é um experimento cênico que parte da “transcriação da poética” do exílio vivido por Nascimento. As peças escritar por Boal para o Teatro Experimental do Negro (TEN) e os textos escritos por Nascimento são a base da performance que cruza passado e presente, como informa a comunicação do Coletivo em seu Instagram. Apesar da distância temporal da produção intelectual de Abdias do Nascimento, é somente em 2020 que o livro O Quilombismo é publicado pela Editora Perspectiva, reunindo um compilado de textos e ensaios do autor.
No teatro as coisas talvez sejam menos previsíveis que nas artes plásticas, e nas sessões dos próximos dias quem quiser pode conferir se as observações do texto fazem sentido. No site da Farofa você encontra as sinopses, informações e datas das sessões. Vale lembrar que a mostra terá ações e ferramentas para atender acessibilidade e inclusão de diversos públicos.
Serviço
Farofa do Processo
2 a 10/3
Casa do Povo, Oficina Cultural Oswald de Andrade e Teatro de Contêiner
São Paulo
faroffa.com.br