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Postado em 11/10/2024 - 3:10
“F—A—C—T”

“… you gave me something to remember…”
Filme na TV, agosto de 2016.

 

i.

.    Estava sentada à mesa, cadeira da beirada.

(… ao chegar a lugares, sempre hesito quanto a minha posição, onde permanecer, onde sentar, de onde falar… porque isso é definidor. Não exatamente essa escolha é o definidor de tudo o mais, mas ela sublinha uma definição, bem como subscreve uma indefinição…)

.    Comia mais tarde do que todes aquele dia.

.    As duas, F e C, haviam passado a manhã inteira naquele quarto, um apêndice nos fundos da casa. Estavam costurando. Vazado do cômodo, só se ouvia o maquinário ziguezagueando voraz, alinhavando uma conversa a 4500 RPM.

.    Ainda à mesa, ouvi a porta ranger.

.    Era F.

.    Havia enfim deixado o quarto de costura nos fundos e agora se devolvia à vista do restante da casa. Trajava um vestido ainda por terminar…

.    Pausou para mostrar.

.    Camadas urdidas ou ainda por urdir, uma obra já suficientemente tramada para se vestir e convocar-nos a ver, o que estava ali e o que ainda não se encontrava; a supor de que jeitos poderia vir a ser.

ii.

.    Da cozinha, F se enveredou pelo corredor. Um longo e retilíneo corredor, passagem para os outros cômodos da casa.

.    Um par de fileiras de ripas de madeira acompanhavam a extensão da passagem. Uma fileira de cada lado, afixadas às paredes com pequenos pregos, dispostas na altura dos cotovelos. Feito vetores de força, faziam da perspectiva do corredor ainda mais longilínea e afunilada quando avistado de fora. Um duto afiado.

(“… há muito tempo, quando nos mudamos para cá, não existia esse corredor. Foi preciso abrir caminho pelos cômodos para construí-lo, pra criar conexão com os fundos…”)

.    Um corredor veloz, crescido no centro da casa, sem aberturas visíveis que não a das portas que o ladeiam. Uma passagem pouco arejada, desafeita às distrações — camadas de papéis de parede envelhecidas e estratificadas, rasgos, manchas, fotografias, superfícies reflexivas, todo tipo de potenciais atratores de desvio, aos poucos, com as incessantes idas e vindas, eram absorvidos pela indiferença repetitiva do movimento, restavam borrões indiscerníveis na periferia do perceptível…

.    Um corredor como comumente se arquitetam corredores: vias expressas, de ritmos e orientação muito bem delineados, calculáveis, 0-1, musculatura hábil e secretora, um pressurizador de fluxo, sem dia e sem noite, com a dinâmica claro/penumbra oscilando de acordo com o deslocar entre cômodos, com o abrir-e-fechar-de-portas — um tipo de manutenção de sua aerodinâmica, para além das oscilações luminosas providenciadas pela instalação elétrica.

.    Se não fosse pela porta semi-aberta do escritório — geralmente semi-aberta, a lingueta defeituosa nunca viera a ser substituída, uma vazão contingente na matemática do corredor —, projetando um facho luminoso a certa altura desse tubo-abismo-corredor, estaria totalmente escuro por agora.

iii.

.    Conforme F o adentrava, mais para o meio do caminho, deparou-se com A, que saltava obstinado de seu quarto — o primeiro no extremo oposto do corredor — para o escritório, precipitando-se na direção de F.

.    Caminhava preso ao celular pela orelha, desajeitado, executando o trajeto retilíneo de todos os dias, alternando de uma porta a outra 24/7.

.    F não se conteve. Interceptou o movimento apressado e certeiro de A para lhe dizer:

.    “— Olha, pai, olha o que eu fiz!”,

convidando-o a uma pausa improvável, interpelando a sua coreografia habitual.

.    A se interrompeu com dificuldade, ainda recalculando a rota, do pretendido movimento na direção do escritório, agora extraviado ao voltar-se para o chamado distante de F.

.    À porta do escritório, semi-aberta, A hesitou.

.    Olhou F. (“— Olha…”)

.    A viu F. Deixou o celular pender.

.    Perscrutou F de cima a baixo…

iiii.

.    Não sei ao certo o que viu.

.    Cada qual via algo de diferente em F.

.    Inevitável dizer, contudo, que a sucessão de acontecimentos no corredor havia sido atravancada.

.    Não conseguiria precisar por quanto tempo. As unidades de medida conhecidas estavam rearranjadas; as condições atmosféricas habituais no corredor, chacoalhadas; as computáveis e previsíveis trajetórias, excedidas.

Incerteza, entendida matemática e cientificamente, não é a mesma coisa que desconhecimento. Incerteza em termos científicos e climatológicos, é uma medida precisa do que sabemos. E conforme nossos sistemas computacionais se ampliam, eles nos mostram cada vez mais quanto não sabemos.” [1]

.    Suspensão; no intervalo da qual A, buscando vazão, uma outra desembocadura para as estranhas e mais recentes reconfigurações de si, respondeu-lhe, transbordando comoção:

.    “— Que bonito, filha!

.    O celular chamou A de volta.

.    “— A…? A, você tá aí?

.    “— O-oi! tô ouvindo…

.    Aquele frágil arranjo se desmantelou num átimo. Tão breve quanto se desmanchou, A sumiu no escritório, a porta semi-aberta outra vez.

.    F seguiu adiante, à procura de T. Desapareceu no próximo cômodo à esquerda.

.    C ainda esperava nos fundos.

.    No corredor, sem conexão, sem sinal de pessoas outra vez.

.   


v.

.    Assistia a tudo da cozinha, ainda à mesa, de onde se podia ter uma vista privilegiada do corredor; não uma que me garantisse antever seu percurso narrativo, mas sim vê-lo indefinir-se.

.    O diálogo do filme na TV, um volume chiado na base dos acontecimentos, escapara para dentro do
duto esse tempo todo,

.    “— …. you gave me something to remember…

.    Não tenho certeza da veracidade do dito na canção, mas era como ressoava no corredor naquele dado instante. Você me deu algo…

.    “— Olha…

vi.

.    Dois meses depois, A faleceu.

.    Havia subido no telhado para consertar a antena da casa, não era possível assistir a TV. Caiu cerca de 3m de altura. Não resistiu às complicações do traumatismo craniano.

(Em meados do século XX, cientistas alegaram que as tvs de tubo e o cérebro humano eram sistemas análogos. Experimentos da neurociência com luzes estroboscópicas levaram cientistas a estudar o funcionamento interno de televisores de tubo sem a necessidade abri-los. O mesmo acontecia com o cérebro humano. Quando submtides às luzes estroboscópicas, as alucinações produzidas por nossos corpos fornecem informações de nosso funcionamento, sem a necessidade de abri-los.)

vii.

.    Semanas após o falecimento de A, C mudou-se para o apartamento onde moro.

.    Certa vez, regressei ao endereço. Voltava de quando em quando para buscar alguns pertences de C.

.    Estava sozinha.

.    Atravessava o corredor, em direção ao primeiro quarto no extremo oposto da passagem — onde A e C costumavam dormir.

.    Era fim de tarde.

.    A porta do escritório, semi-aberta; o semi-círculo luminoso projetando-se nas paredes quadrangulares do corredor, anelando-o a certa altura.

.    Na travessia de volta, algo vindo da parede, de súbito, me puxou.

.    Deixei a pilha de roupas que carregava cair, espalhando-se pelo chão.

(Um par de fileiras de ripas de madeira acompanhavam a extensão da passagem… Feito vetores de força, faziam da perspectiva do corredor ainda mais longilínea e afunilada… Um duto afiado.)

.    Um dos pequenos pregos que sustentavam as ripas de madeira havia se afrouxado e se apontava protuberante para distante da parede. Enganchou na manga de meu casaco, agarrando-me junto à parede, à altura do risco luminoso.

.    “— Olha…

Cada uma dessas ‘áreas’ de caos poderia ser representada por topografias similares às do Conjunto de Mandelbrot, como as ‘penínsulas’ incluídas ou ocultas dentro do mapa — de tal modo que parecem ‘desaparecer’. Essa ‘escrita’ — da qual algumas partes somem, algumas apagam a si mesmas — representa o próprio processo segundo o qual a Rede já está comprometida, incompleta aos próprios olhos, definitivamente incontrolável. Em outras palavras, o Conjunto de M, ou algo do gênero, pode se revelar útil para a ‘armação’ (em todos os sentidos da palavra) do surgimento da contrarrede como um processo caótico, ou, para usar uma expressão de Ilya Prigogine [ganhador do prêmio Nobel de química de 1977], uma evolução criativa.” [2]

viii.

.    A progressão havia sido frustrada, mais uma vez; o convite, refeito.

.    Uma vazão contingente na matemática do corredor, subjacente ao próprio hábito.

Notas:
[1] Trecho citado de “A Nova Idade das Trevas: A tecnologia e o fim do futuro”, de James Bridle. São Paulo: Todavia, 2020. p. 26-57;
[2] Trecho citado de “TAZ: Zona Autônoma Temporária”, de Hakim Bey. São Paulo: Veneta, 2018. p. 34-36.

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Rodrigus Pinheiro
(1994, RJ) é artista-pesquisadora, realiza um trabalho de ficção especulativa a partir de diferentes mídias, pensando a noção que propõe de “perfomatividade inalgoritmável”. Desde 2021, cria com a artista-pesquisadora Lucas Silva (1994, RJ) no duo 100%genuine, uma ficção especulativa alien transmídia que investiga acerca de como as afetações psico-cognitivas que vivenciamos online impactam na fabricação de nossos corpos, repertórios imaginativos e realidades.