Está em cartaz no Instituto de Arte Contemporânea, em São Paulo, a exposição Carimbos, de Carmela Gross. A curadoria de Ricardo Resende reapresenta ao público a série que dá título à mostra, desenvolvida entre 1977 e 1978 pela artista. Exposta pela primeira vez, em 1978, na finada Galeria de Artes Gráficas, da qual Mônica Filgueiras e Raquel Arnaud eram sócias fundadoras, 45 anos distanciam os dois momentos.
A partir da premissa de que a série Carimbos existe além de seu resultado materializado na aplicação de carimbos em mais de uma dezena de folhas de papel com os rabiscos e garatujas estampados em série, a mostra associa as obras ao seu processo de produção. Por dois anos, Carmela Gross estudou reproduções em livros das pinturas dos impressionistas franceses e, por um processo minucioso de isolar e achatar até a síntese máxima traços e pinceladas, reduziu-os ao rabisco, à mancha. Esses elementos foram então replicados em carimbos, como “extrapolação de um princípio burocrático”, em que a “artista sufocava o princípio de autenticidade do gesto artístico”, como define Paulo Miyada no texto “A geógrafa, a má revisora e a espeleóloga”. O processo inegável da ação do tempo na série reside no dispêndio de tempo empregado em sua fabricação, assim como no quase meio século necessário para o seu reconhecimento como algo a ser preservado, agora em uma instituição dedicada a tal tarefa. O IAC tem como projeto a preservação de arquivos de artistas constituintes do que reconhecemos hoje como arte contemporânea brasileira.
Durante uma fala com Carmela Gross e a curadora Galciani Neves, organizada pelo IAC por ocasião do lançamento de um projeto do instituto que oferece bolsas de pesquisa para estudantes universitários e recém-formados, perguntei à artista como ela encarava o tempo como matéria nessa série: “Foi o primeiro trabalho em que me senti realizada, naquele momento, em todos os aspectos, na técnica e execução, na prática em que havia me especializado por anos, no resultado”. Assumiu também que os papéis que são hoje o produto final ficaram esquecidos por muito tempo, largados, e que a faziam lembrar daquela situação, de todo o esforço árduo, braçal, físico e mental, encerrando-se quando a exposição acabou, com quase nenhum visitante. Parte do conjunto pertence, hoje, a Bernardo Paz, fundador do Instituto Inhotim.
Ainda que para um público especializado, a exposição no IAC tem outros ares. O público não é massivo, mas colossal, se comparado ao do Gabinete em 1978. O tempo é outro e o interesse pela série aumentou ao longo dos anos, assim como o nome e a trajetória de Carmela Gross, como artista, ganharam outra escala. Mas o que salta aos olhos é a generosidade da expografia e o trabalho de Gross – digo, o trabalho e o esforço do fazer artístico –, a contradição interna do trabalho (ser compulsivo ao mesmo passo que mecanicamente simples), e isso ser visível aos olhos nas matrizes, nos esboços, nos convites, reportagens e tudo aquilo que não é obra, mas integra o trabalho da artista. Se tomarmos a mercantilização da força de trabalho como gasolina e motor do capitalismo, como argumenta o pesquisador britânico Peter Osborne, Carimbos é ainda mais ambígua e contraditória. São as horas de ateliê, de repetição das mesmas formas, além de trocas, conversas e todo o trabalho afetivo feito por Gross ao longo dos anos, que fazem a série ser o que é na atualidade. Hoje, mais pessoas estão fazendo arte e pensando sobre arte, afirma Carmela em conversa com Galciani Neves. Isso implica um processo de aprendizagem para quem trabalha diretamente com arte e para todas as outras pessoas que fazem outras coisas. Os compradores são apenas alguns, mas o tempo é múltiplo e é compartilhado. Que venham os próximos 45 anos de Carimbos, para olhar e pensar de novo sobre seus significados.
Carimbos – Carmela Gross
Até 13/5
Instituto de Arte Contemporânea (IAC)
Av. Dr. Arnaldo, 120/126 – São Paulo
www.iacbrasil-online.com/