O processo curatorial de Rodrigo Moura para selecionar as 500 fotografias que foram recentemente adquiridas pela coleção do Inhotim e as 400 imagens expostas na Galeria Claudia Andujar, durou 5 anos. Neste período, quatro entrevistas foram gravadas em vídeo. A primeira aconteceu em 2012, no apartamento da artista em São Paulo, sem pretensão cinematográfica e com o intuito de recolher dados biográficos para a escritura de um texto. Na segunda entrevista, realizada durante viagem com a artista a território indígena, em Roraima, Moura se deu conta de que não estava só coletando informações, mas articulando conceitos curatoriais por meio da linguagem fílmica. Assim nasceu o “filme-curadoria” A Estrangeira, que juntamente com uma grande exposição, um seminário e um ritual de pajelança inauguraram, no final de novembro, em Inhotim, um pavilhão inteiramente dedicado à obra de Claudia Andujar.
Das linguagens artísticas, a fotografia talvez seja a mais viajante. Ela pode ser vivenciada em sua plenitude no espaço editorial – na página de revista ou de jornal –; no espaço expositivo, em grandes ampliações; no espaço educativo, em projeções durante palestras e seminários; e no espaço fílmico de um documentário.
A maioria das fotografias da carreira de Claudia Andujar foram feitas com destino editorial. Seu primeiro contato com a tribo Yanomami, povo que iria impulsionar sua atuação pessoal e profissional por 40 anos, aconteceu graças a uma reportagem encomendada pela revista Realidade, em 1970. Muitas outras fotografias foram publicadas em veículos como The New York Times Magazine e LIFE. Revisadas durante o trabalho curatorial de Rodrigo Moura junto aos arquivos da fotografa, as séries de imagens das tribos Yanomami ganham hoje sentidos ampliados nas paredes de um centro de arte contemporânea.
“Estou cada vez menos interessado nas fronteiras rígidas que separaram a arte contemporânea de outras manifestações culturais”, explica Rodrigo Moura a seLecT. “Incorporar as obras indígenas feitas por xamãs e ter no Inhotim esse acervo que conta a história de Claudia com os Yanomami faz parte de uma ação indigenização que está na ordem do dia das instituições culturais”.
A atitude está alinhada, por exemplo, com o 34º Panorama da Arte Brasileira, com curadoria se Aracy Amaral e Paulo Miyada, que promove o encontro de esculturas litorâneas pré-históricas com obras de cinco artistas contemporâneos. “Quando demos hoje o conceito de arte se dissolvendo, se esgarçando a ponto de esfarelamento total, em comparação a séculos anteriores, este não deixa de ser um tempo em que nos indagamos muito frequentemente ‘O que afinal vem a ser arte?’”, indaga Amaral em texto do catálogo.
Filme-curadoria
É possível discernir no filme A Estrangeira, uma exposição. Há continuidades evidentes entre o filme e o modo como as obras se organizam no espaço expositivo da Galeria Claudia Andujar. A começar pela estrutura: a exposição está dividida em quatro blocos e o filme em quatro entrevistas, realizadas em três cenários: a cidade-máquina São Paulo, onde Andujar vive desde 1955, quando chegou no Brasil; a floresta, casa dos Yanomami; e a construção do pavilhão em Brumadinho. “Entre os Yanoammi fui chamada ‘a mulher estrangeira’, ou ‘a mulher que não é Yanomami’, mas também me chamaram de mamãe”, diz Andujar a Moura na primeira das entrevistas a Moura.
Neste primeiro segmento do filme, descobrimos que na infância, na Hungria, com pai e mãe ausentes, a menina Claudine foi criada pelos empregados e assimilou deles as crenças em mitos transilvânicos, como fadas e dragões. Na juventude, encantou-se por tribos ciganas e imitava-os vestindo longas saias. Hábitos que, depois, viriam a facilitar sua permeabilidade em relação à vida mítica dos povos da floresta amazônica.
Assim como a montagem do filme, a edição das fotografias na galeria permanente Claudia Andujar também obedece uma ordem territorial. A primeira sala apresenta a Amazônia, espaço natural em que se deu a pesquisa de Andujar entre 1970 e 2010. O conjunto de fotografias da mata e de vistas aéreas funciona como ritual de iniciação ao tema. “A Amazônia está grudada em nós, pregada às nossas faces. É desses lugares que nós alimentamos os nossos espíritos”, declamou Ailton Krenak, militante indígena dos direitos humanos e um dos convidados para o seminário Cosmovisão Yanomami.
Depois do contato com a mata, as seguintes salas do generoso espaço expositivo de 1600 mts2 colocam o visitante de cara com o protagonista desta história: o homem Yanomami, sensivelmente retratado em seus costumes e em sua intimidade preservada da civilização ocidental – até que o governo militar atravessasse o território indígena com a estrada Perimetral.
Câmera dançarina
Aqui estão expostas séries inéditas de retratos e registros de rituais festivos de enorme impacto. São imagens que, segundo apontou o antropólogo Rogério do Pateo no seminário, “subvertem o paradigma do realismo fotográfico”. Elas penetram no campo do imaterial, do invisível e do espiritual, envolvendo os corpos ritualísticos em luz. Editadas em modo sequencial, as imagens guardam comovente semelhança com a instalação “Teteia”, de Lygia Pape, também exposta em caráter permanente no Inhotim. “Eram as entradas de luz na maloca que eu usava para mostrar a ligação entre o mundo de cima e o ser humano”, continua Andujar na entrevista a Rodrigo Moura.
“Os espíritos vem do alto. Eles vem todos enfeitados. Então a luz é muito importante. É ela que conduz esses espíritos para o encontro com o xamã”. Interessada em mostrar os caminhos mutantes da luz que faz a ligação entre a vida e a morte, Claudia conta que movimentava a câmera, para mostra-las “andando”.
Confronto e encontro
As máculas e consequências da invasão ao território indígena são o tema do terceiro bloco da galeria. Aqui estão expostas fotografias que exprimem o contato com o homem branco. Com este segmento da exposição se relaciona a palestra do curador Moacir dos Anjos, que fechou o dia de seminários com afirmações contundentes. “A história indígena é uma história de roubos e saques. Povos indígenas são reminiscentes de uma guerra de colonização que permanece ativa até hoje”, disse Dos Anjos diante de uma fotografia de um índio torturado por fazendeiros e garimpeiros ilegais.
As imagens que Andujar fez do confronto índios e brancos nunca chegaram a esse grau de violência. Talvez porque a artista esteve sempre envolvida em movimentos de defesa dos direitos indígenas. O território – sua delimitação e proteção – foi questão central de sua trajetória. “Na vida tive dois momentos importantes”, disse ela, abrindo o dia de seminário, sentada ao lado de Davi Kopenawa Yanomami, xamã e importante liderança política no cenário indígena brasileiro e mundial. “Um foi quando conseguimos a demarcação da terra Yanomami, junto com Davi, em 1992. O outro momento está acontecendo aqui”.
O evento de inauguração do pavilhão reuniu povos e líderes indígenas, missionários, antropólogos, artistas, curadores de arte contemporânea, galeristas, empresários e banqueiros (a galeria foi patrocinada pelo Banco Santander). Para coroar o acontecmento, os xamãs realizaram dois rituais de pajelança. Mas o clima de festa e confraternização não impediu que questões delicadas fossem tocadas. Afinal, a terra que agora hospeda esse novo templo Yanomami em Minas Gerais, pertence a um empresário de mineração, o colecionador Bernardo Paz.
“Nós somos inimigos da mineração, matando peixe, poluindo peixe. Nós índios protegemos o pulmão da terra. Sem índio, o pulmão do nosso país e da terra não vai ser protegido”, protestou Davi Kopenawa, ao enumerar os perigos a que seu povo continua exposto. O fato dessas questões terem sido abertamente ditas, confirma que o pavilhão Claudia Andujar será lugar de verdades e encontros frutíferos.
Lugar de encontro
A série Marcados (1981-83) – consagrada no meio da arte contemporânea quando exposta na 27ª Bienal de São Paulo e na mostra Histórias Mestiças, em 2014 – é o testemunho do comprometimento e do estreitamento de laços com os povos da floresta.
A série de retratos em que os índios estão marcados com números é quase um acerto de contas da artista com seu próprio passado de perseguições – sua família foi dizimada pelo nazismo. “Os judeus eram marcados com a estrela de Davi para morrer. Eu estava marcando os Yanomami para que eles sobrevivessem”, declarou a fotografa a respeito da campanha de saúde desenvolvida entre tribos.
Essa trajetória de trocas culmina no espaço curatorial dedicado aos desenhos feitos por índios com materiais introduzidos pela artista: papel e pincel atômico. “A indigenização dos circuitos e dos discursos das artes está no horizonte imediato desta curadoria, ampliando o diálogo entre os campos indígenas e não indígenas”, conclui, em texto de parede, Rodrigo Moura, no último segmento da exposição.