O levante indígena segue relegado a notas de rodapé na leitura crítica que vem sendo produzida sobre a 59a Bienal de Veneza. Apesar de dois pavilhões no Giardini (que abriga 29 das 80 participações estrangeiras) e três no Arsenale (que abriga 30 outras “representações nacionais”) destacarem a narrativa descolonial de povos originários em oposição à história hegemônica da arte ocidental, além de eventos paralelos ou pavilhões nacionais em outros locais de Veneza, como é o caso da participação supostamente “polêmica” da Bolívia.
O Pavilhão do Chile, no Arsenale, recebe a exposição Turba Tol Hol-Hol Tol. Na língua Selk’nam, Hol-Hol Tol significa o “coração das turfeiras”, segundo Hema’ny Molina, escritora e artesã Selk’nam, presidente da Corporación Selk’nam Chile, e fundadora da Fundación Hach Saye, organização criada em 2019 para contribuir com o desenvolvimento da cultura Selk’nam e seu território enquanto pessoa jurídica, uma vez que os Selk’nan não são reconhecidos juridicamente no Chile, além de promover ações que apoiam e defendem a biodiversidade e os ecossistemas da Terra do Fogo.
O site oficial do projeto para a Bienal de Veneza informa que as turfeiras precisam com urgência de conservação. Os pântanos da Patagônia estão em perigo porque o planeta está cada vez mais quente e árido. “Sua conservação está intrinsecamente ligada ao bem-estar futuro da humanidade e, na Patagônia, ao renascimento do povo Selk’nam. As turfeiras estão clamando para serem representadas como um corpo vivo, assim como o povo Selk’nam também está clamando para ser reconhecido como uma cultura viva. Juntos, reivindicamos uma sociedade de cuidado mútuo: as turfeiras e os povos do pântano são indivisíveis.”
No review de Alex Greenberger para o site da ArtNews, publicado na quinta, 21/4, durante a semana de preview da Bienal para a imprensa e convidados, a participação chilena é destaque por causa das filas que se formam na entrada do pavilhão. “Acrobacias hightech que tendem a chamar a atenção, como Realidade Virtual e elementos interativos, são uma faca de dois gumes – podem ser altamente divertidas, mas também podem parecer uma perda de tempo se a estratégia chamativa não compensar. Um exemplo disto na Bienal de Veneza deste ano está no Pavilhão do Chile, que ostentava filas de mais de 20 minutos para entrar no Arsenale nos dias de abertura”, escreve o crítico. “Alguns diziam que a espera não valia a pena, embora os visitantes perseverantes pudessem ver uma instalação fílmica tecnicamente complexa focada nas turfeiras da Patagônia.”

Greenberger apresenta a obra da exposição Turba Tol Hol-Hol Tol como “criação do artista Ariel Bustamante, da historiadora de arte Carla Macchiavello, do arquiteto Alfredo Thiermann e da cineasta Dominga Sotomayor”, acrescentando que Camila Marambio também atuou como curadora do pavilhão, mas deixando a lista de indígenas Selk’nam participantes restrita a uma referência ao site da representação nacional do Chile: “Membros do povo Selk’nam também estiveram envolvidos em sua criação; uma extensa lista de créditos pode ser encontrada no site do pavilhão”.
O crítico, portanto, deixa em segundo plano o tema urgente da mostra, “seu foco é o povo Selk’nam e sua dependência do ambiente natural da Terra do Fogo, que atualmente enfrenta a ameaça de destruição ecológica”, para discorrer sobre as filas que se formam na entrada do pavilhão: “A espera para ver esse trabalho deve-se à solicitação ao público que assista ao vídeo do começo ao fim. Apenas oito pessoas são permitidas por vez, e o trabalho dura cerca de 15 minutos. Uma vez lá dentro, os espectadores sobem uma rampa e entram em uma sala com tela panorâmica. A tela em si não é como uma tela tradicional encontrada em um cinema – é tão fina quanto uma camada de pele, e os visitantes são instruídos a não tocá-la porque é feita de um tipo de material biológico não revelado”.
Na realidade, o material biológico é “revelado” no material de divulgação sobre Turba Tol Hol-Hol Tol: Para projetar os filmes no pavilhão do Chile, foi desenvolvida uma pele de biomaterial pela equipe do laboratório de indústrias criativas sinestesia.cc em colaboração com o Fab Lab da Universidade do Chile. A pele é um biocompósito à base de componentes 100% orgânicos que contém extratos de algas, colágeno e ácido acético clacial, entre outros, que atuam como agentes estruturantes, plastificantes e conservantes naturais, criando uma pele autossustentável, translúcida, ultrafina capaz de concentrar a luz por meio de micropartículas sem perder a transparência, transformando-se em uma tela de retroprojeção biodegradável, que ao manter contato com umidade, toque e agentes externos, se degrada e pode ser colonizada por fungos e musgos, sua durabilidade até o momento é de aproximadamente 3 meses e estima-se que cerca de 6 meses depois, começará a se decompor, tornando-se facilmente parte da terra novamente. Além disso, sua composição permite que eles sejam unidos entre si por selagem a quente, evitando o uso de colas e outros produtos químicos para a criação de grandes películas.

Prossegue Alex Greenberger em seu review: “Quando o filme começa, os espectadores são convidados a se sentar no chão e permanecer em silêncio – não que seja fácil conversar sob a trilha sonora alta da obra, cuja vibração e estrondo podem ser fisicamente sentidos. Um assistente me descreveu esse aspecto do pavilhão como um banho de som. O filme em si é um pouco difícil de descrever porque muitas de suas imagens beiram a abstração. No início, a câmera paira sobre o que parece ser uma turfeira. Então a câmera afunda lentamente na turfa e vai gradualmente mais fundo na terra. Sonoramente, a instalação se torna cada vez mais intensa conforme a câmera desce – o efeito simula um estado primordial em que os visitantes são aparentemente colocados em estreita conexão com a natureza”.
O filme em si é um pouco difícil de descrever? É um mergulho no ecossistema que garante a vida dos Selk’nam e, aliás, garante a vida de todos os seres que vivem no planeta, é um manifesto pela preservação ambiental, é um grito de socorro, acompanhado por cantos ancestrais dos Selk’nam, um povo que, até recentemente, pensava-se que havia sido extinto, e que se encontra em franca disputa jurídica para ser reconhecido legalmente e respeitado no Chile. E esse manifesto é abrigado pelo Pavilhão Nacional do país. Não se parece um pouco com a situação sem precedentes do Pavilhão Nórdico, a poucos metros dali, no Giardini, que dedica pela primeira vez na história o seu espaço expositivo ao povo Sámi?
“Então há um período de silêncio, e a câmera volta a subir. Uma vez acima do solo novamente, há escuridão. Formas espectrais emergem desse vazio, correndo em círculo e cantando enquanto o fazem. Depois que o filme termina, os espectadores podem sair por onde entraram e são convidados a tocar ao longo do caminho os campos de musgo transportados para o pavilhão.” O crítico faz parecer desimportante o convite a tocar nos campos de musgo, mas uma parte do pantanal da Patagônia foi cuidadosamente transportada até Veneza para fins pedagógicos acerca da rica diversidade desse bioma. Não é pouca coisa poder tocar o solo dos povos do pântano que a civilização ocidental decretou extintos, mas que seguem resistindo ao desastre colonial e ambiental (leia-se “moderno”) que pode vir a extinguir toda a humanidade.

“O pavilhão do Chile até agora provocou opiniões discordantes, com alguns encantados com os elementos imersivos e outros decepcionados depois de esperar tanto tempo para entrar. Mas as longas filas fazem parte da experiência da Bienal de Veneza, e normalmente são reveladoras – mostram em quais pavilhões as pessoas estão realmente interessadas. A estratégia do Chile poderia render um prêmio? Parece improvável, embora o burburinho certamente esteja aumentando”, termina o review da ArtNews, em evidente atestado de que o autor e a publicação absolutamente não perceberam do que se trata. O Leão de Ouro para representação nacional foi vencido pela artista Sonia Boyce, que ocupa o Pavilhão do Reino Unido com uma sinfonia às histórias invisibilizadas de musicistas negras em seu país. É sobre isso.