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Página desdobrada do livro Ympressos Paraguassu, da Sociedade da Prensa, criado entre as cidades de Cachoeira e Sào Félix [Foto: Reprodução/Claudia Chaves e Marcelo Pinheiro]
Postado em 13/12/2024 - 4:39
Fluxo sem leito: uma viagem tipográfica ao Recôncavo Baiano
Entre as memórias resgatadas por projetos e publicações de Gilberto Tomé e do coletivo Sociedade da Prensa, a história de uma gráfica submersa, de impressoras e ferramentas tipográficas afogadas, da linguagem afundando na água escura do alagamento

“Eu sei que o mundo é um fluxo sem leito”, cantou Caetano Veloso em seu disco de 1982, Cores, Nomes. Conhecido por estabelecer relações entre a cultura brasileira e sua expressão midiática, o artista foi pioneiro em trazer veículos de comunicação em massa para o centro de debates sobre arte e crítica em nosso país. “Fui o primeiro artista do Brasil a fazer televisão sem fingir que era inimigo da televisão. Fui o primeiro compositor brasileiro a entrar na televisão dizendo: eu estou na televisão, gosto de televisão, acho o maior barato”, diz ele em sua famosa entrevista ao programa Vox Populi, da TV Cultura, ainda em 1978. Arrisco dizer que, para além de seu carisma e de sua verve vanguardista, a intimidade de Caetano com tais meios se deve também às suas raízes em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano.

A cidade fica a 80 quilômetros da capital Salvador, onde, em 1811, após a chegada da corte portuguesa ao país e a liberação do exercício da imprensa no Brasil pela corte de Dom João VI séculos depois de México e Peru, por exemplo, foi criada a primeira gráfica particular brasileira, a Silva Serva, responsável por rodar o jornal Idade d’Ouro do Brazil, o primeiro periódico produzido em uma imprensa privada a circular por aqui. Seu fundador, o comerciante e tipógrafo português Manoel Antônio da Silva Serva, foi responsável também por criar, em 1812, As Variedades ou Ensaios de Literatura, tida como a primeira revista brasileira.

Só isso já serviria para estabelecer uma conexão entre o papel de difusão da informação representado pelo estado da Bahia e a atitude agregadora e crítica de um de seus maiores expoentes contemporâneos. Porém, avanço um pouco mais: a uma distância de aproximadamente 40 minutos de carro de Santo Amaro fica a cidade de Cachoeira, localizada às margens do Rio Paraguaçu, onde, na outra margem, está o município de São Félix. Unidas por uma ponte férrea, ambas as cidades são definidas localmente como “terras mães da Independência”, título que está relacionado, e muito, com a presença de gráficas históricas em seu território. Afinal, não é de hoje que a imprensa exerce uma função fundamental na noção de emancipação, e nas duas cidades é possível encontrar máquinas que atenderam a propósitos políticos e revolucionários por mais de 250 anos. Impressoras como testemunhas ativas das transformações industriais, sociais e estéticas que compuseram o Brasil como hoje o entendemos, que vivenciaram e ajudaram a relatar não só a Independência, como também todas as mutações que se seguiram, o Estado Novo, a ditadura militar, a abertura política, tudo isso, além, é claro, das histórias de seu próprio entorno. Em 1990, muitas dessas máquinas foram desativadas. E, pouco tempo depois, como é apenas justo, surgiram pessoas interessadas em contar as suas histórias.

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Fotografia de um dos tipos móveis presentes no território do Recôncavo Baiano realizada durante viagem da Sociedade da Prensa à região [Foto: Reprodução/Claudia Chaves e Marcelo Pinheiro]

Quem me contou essa história foi o Gilberto Tomé, artista gráfico e professor paulistano que conheci acompanhando como assistente suas aulas no Curso Tatuí de Publicação, ciclo de formação de publicadores sob a ótica da editoração independente promovido pela editora Lote 42. Assim como eu, Tomé chegou a esse campo quando muitas águas já haviam rolado, como se diz, e sua primeira aproximação aconteceu há alguns anos, quando, circulando por uma feira de publicações alternativas, ele travou contato com a Sociedade da Prensa, coletivo soteropolitano formado então por Laura Castro, Tiago Ribeiro e Flavio Oliveiras. Já naquela época, o trio de artistas gráficos havia realizado um trabalho significativo a respeito do assunto, levando notícias das gráficas de Cachoeira e São Félix para a capital na forma de uma feira batizada de Ympressos Paraguassu, um documentário realizado por eles no Recôncavo e um livro de artista todo fabricado a partir de imagens e conceitos fornecidos pelo rio, que, segundo notaram, era protagonista na história da formação daquelas cidades-gêmeas.

Outro vocativo para Cachoeira é “porta de entrada para o sertão”, epíteto relacionado ao fato de que o município era a última parada das embarcações que subiam à Baía do Iguape antes de o rio encontrar sua foz na Baía de Todos os Santos. Tratava-se, portanto, de um ponto estratégico para distribuição e comércio de bens no fim do século 17, ligando de forma direta as rotas fluviais, que traziam produtos agrícolas como a cana e o tabaco, às rotas terrestres que conduziam ao sertão, ao Recôncavo, a Minas Gerais e a Salvador, que então era a capital da colônia. A corrente de mercadorias e a mineração de ouro no Rio das Contas contribuíram para o avanço da região, logo transformada em polo econômico e cultural com larga expressão política e papel ativo nas batalhas pela independência da Bahia no século 19 – onde, não por acaso, foram instaladas impressoras que escoavam quantidades incalculáveis de impressos estado adentro. E foi com algumas delas, 200 anos depois, que a Sociedade da Prensa compôs parte do livro Ympressos Paraguassu, a publicação que vários editores e artistas, entre eles Gilberto Tomé, puderam folhear e a partir dela criar em seus imaginários pessoais a noção de que, em um canto na Bahia, existia um patrimônio gráfico, um verdadeiro tesouro.

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Fragmento de periódico preservado pelo Arquivo Público de São Félix

“Você precisa conhecer”, disse a Tomé algum dos publicadores que nos anos que se seguiram ao lançamento da publicação da Sociedade da Prensa peregrinaram para Cachoeira e São Félix e de lá retornaram com a experiência demarcada em relevo sobre seus corpos e seus projetos. Você precisa conhecer. E, em 2023, quando a derradeira onda da pandemia já havia quebrado e no horizonte se divisavam outra vez possibilidades mais amplas de locomoção, ele empreendeu sua viagem, levando consigo muito mais do que uma resma de papel e interesse. Dez anos antes, ele lançara Mestres Tipógrafos: Impressões de Vida, publicação feita em conjunto com os três profissionais da impressão tipográfica na cidade de São Paulo que são os protagonistas do trabalho, formado por entrevistas sobre seus procedimentos, operações técnicas, maquinários de composição e impressão e, por extensão, sobre suas vidas. “Através da memória oral obtive relatos de suas biografias, sobretudo no que se refere aos ofícios que desempenhavam”, diz Tomé. “Conviver com suas memórias, não só as que saíram de suas lembranças faladas, mas as que impregnavam seus lugares de trabalho, levou-me a reconstituir certos recortes de tempo e espaço do século 20 na cidade de São Paulo.” Ou seja, ao desembarcar em Cachoeira o artista já havia refletido sobre as relações entre território e registro gráfico. O que fazia, agora, era inteirar-se de como elas se tornavam manifestas em outras localidades e como ele, um visitante, poderia percebê-las.

Passado o estranhamento inicial, proveniente não só da brancura de sua pele e de seus olhos claros, como também de seus quase dois metros de altura, que contrastavam com a paisagem demográfica local, foi-lhe concedido o direito de se aproximar. É fato que se preocupava com a advertência que alguém lhe fizera, ainda em Salvador, sobre certo recurso cachoeirano de confundir forasteiros com informações desencontradas, prática comum e funcional no intuito de preservar suas comunidades de investidas do pensamento colonialista. Aproximar-se com respeito e interesse verdadeiros, pensava ele, era o caminho para que o território se revelasse e o acolhesse. Ademais, levava consigo uma espécie de carta de recomendação, os nomes de Castro, Ribeiro e Oliveiras, que já eram conhecidos ali por terem feito o trabalho que fizeram com interesse e respeito igualmente genuínos. O lançamento do livro Ympressos Paraguassu havia acontecido alguns anos antes na cidade de Cachoeira e contou com uma mesa formada pelos próprios mestres impressores, colocando-os no centro do debate histórico e econômico suscitado por aquelas máquinas.

Fragmento da publicação Livrocidade Água Preta, feita por Gilberto Tomé em 2014 a partir do curso do Rio Água Preta, em São Paulo [Foto: Cortesia do artista]

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Influenciados pelo livro Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, em que um dos personagens centrais é um velho impressor, os criadores da Sociedade da Prensa definiam seu território de origem, a Ladeira do Taboão, em Salvador, como uma “universidade de saberes”. É o que me diz a artista Laura Castro, rememorando o potencial autônomo do bairro de Santo Antônio Além do Carmo, hoje gentrificado, mas que, na época, se movia ao ritmo de estabelecimentos que iam dos tradicionais impressores de literatura de cordel até sapateiros. Flavio Oliveiras, também criador da Sociedade da Prensa, cuja morte durante a pandemia do Coronavírus configurou uma das maiores perdas da cena de produção gráfica independente não só da Bahia, como de todo o país, era filho de um sapateiro e uma costureira, e não é descabido supor que tenha sido isso, entre outras coisas, que o levou a rodar tantos cartazes com os dizeres “carrego nas mãos o meu saber” e a se tornar uma das maiores referências em impressão serigráfica e fomentação cultural dentro de sua comunidade. Em 2013, o grupo rodou um primeiro livro impresso inteiramente com os recursos que possuíam e foi esse resultado de um processo baseado na economia de meios que os animou a se aprofundar em pesquisas e estudos sobre as possibilidades que existiam, literalmente, ao alcance de suas mãos.

Na primeira viagem que fizeram a Cachoeira com esse intuito, foram confrontados pela cena de vários tipos móveis e clichês parcialmente soterrados na parte de trás de uma das gráficas. A história e a linguagem soterradas e em franco estado de sedimentação, pensaram então, e talvez ali já começasse a se formar a ideia do que Castro chamou de “sambaquis tipográficos”.

Denominados concheros em espanhol, os sambaquis são considerados os primeiros registros da presença humana no litoral do Atlântico e trata-se de verdadeiros monumentos pré-históricos. São formados por materiais orgânicos e calcários como conchas, ossadas de aves e roedores, excrementos, diversos tipos de vegetação, às vezes ultrapassam os 30 metros de altura, podem ser encontrados em determinados pontos de toda a costa brasileira e, para diversas etnias pré-colombianas, eram os santuários onde seus mortos deveriam ser sepultados.

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O primeiro gráfico que Gilberto Tomé conheceu também foi o encarregado da Gráfica Líder, seu Addison. Apesar da digitalização dos processos de impressão, que o fizeram instalar uma pequena impressora offset da marca Multilith, ele mantinha intacta sua intimidade com o maquinário tipográfico que possuía, um arsenal que ia de simples minervas às complexas plano-cilíndricas de marcas como a alemã Heidelberg e a brasileira Catu. Além das impressoras, o patrimônio da Líder consistia ainda em numerosos tipos móveis, vinhetas, clichês e os materiais de sua aplicação, todos armazenados de forma caótica nas gavetas. Mais que isso, maltratados pelo tempo e pelo descaso que abatera a região quando do acelerado processo de industrialização no Sudeste do país, e, mais tarde, pelos mesmos agentes que, em meados dos anos 1980, foram responsáveis por emprestar oxigênio à produção gráfica da região. São relembrados com nostalgia os tempos da construção da barragem de Pedra do Cavalo, da Votorantim, em 1985 – a chegada de construtores civis e suas famílias deu uma injeção de crescimento a Cachoeira, São Félix e outras cidades próximas, reavivando consideravelmente os empreendimentos locais, até que, em 1989, após a barragem ter enchido seis anos antes do esperado, suas comportas tiveram de ser abertas, despejando centenas de milhares de litros de água de forma violenta e arrasando as cidades que outrora prometera abastecer e proteger das cheias do Paraguaçu. Quando Tomé segurou os tipos móveis da Gráfica Líder pela primeira vez, reparou como estavam danificados e ainda nem imaginava o esforço que os gráficos haviam feito para que eles ainda estivessem ali.

Nessa enchente, contou-lhe Addison, ao verem as águas se aproximando e prevendo o estrago das máquinas, os gráficos correram e as besuntaram de graxa. Dias depois, escoada a água, descobriram em meio aos destroços que o efeito desejado fora alcançado: apesar da ferrugem evidente, a oleosidade da graxa havia expelido a umidade dos sistemas internos das impressoras, cuja recuperação teria sido extremamente trabalhosa, se não impossível, não fosse o entendimento profundo e a intimidade dos trabalhadores com seu maquinário e equipamentos de trabalho. Não consigo deixar de pensar nisso: uma gráfica histórica completamente submersa. Impressoras afogadas. Tipos móveis, letras e imagens, a linguagem afinal, se desprendendo de seus locais de armazenagem e afundando na água escura, que avança, incansável.

Foram atos provenientes desse tipo de senso de sobrevivência e manutenção mínima que permitiram que, tanto tempo depois, Tomé entrasse em contato com aquele material e, em conjunto com gráficos como Addison, realizasse e seguisse até hoje realizando trabalhos impressos que, de natureza artística, buscam registrar histórias assim. A primeira impressão que realizaram, composta com tipos móveis, enfeitada com ornamentos que remetiam à corrente do rio e impressa em papel colorido, trazia uma única palavra na vertical, as quatro sílabas descendo em um movimento de cascata: cachoeira.

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Do outro lado do rio fica outra gráfica histórica, a Sãofelista. Ali, Tomé conheceu seu Antônio, o proprietário, que lhe mostrou, encostada nos fundos, uma prensa de pelo menos 200 anos já resignada com seu destino de sucata. Violência, falta de memória, descaso e o resultado: a história do país vendida pelo peso do ferro. Em uma das tardes que passou na Sãofelista com seu Antônio, revirando gavetas de tipos móveis e inteirando-se do maquinário, Tomé surpreendeu-se com o desapego com que o velho gráfico lidava com aquelas relíquias. Distante de qualquer fetichização, ele lhe contou de uma vez que uma excursão escolar aportou por ali e como ele distribuiu vinhetas e clichês entre as crianças, feito fossem brinquedos. Não é absurdo imaginar essas peças jogadas entre um balde de plástico e um caminhãozinho da Mattel e, mais tarde, varridas para o esquecimento.

O absurdo é saber que, nessa mesma tarde, seu Antônio mostrou um clichê específico, que representava um navio e, a julgar pela cor acobreada da liga metálica usada em sua confecção, devia ter pelo menos um século de vida. “É o vapor de Cachoeira”, disse seu Antônio, e então, com os dois pés bem fincados no chão do Recôncavo, Tomé, enfim, compreendeu a letra daquela antiga canção do Caetano que dizia: O vapor de Cachoeira/ não navega mais no mar. A história fluindo e refluindo, indo e voltando, sempre correndo: o vapor de Cachoeira não navega mais no mar.

Quando, com seu desprendimento característico, seu Antônio tentou presentear Gilberto com o clichê, este recusou, com sua elegância também característica, dizendo “não posso ficar com ele, pois estaria contribuindo para a depauperação de vosso acervo”. O que fez foi pegar emprestado o objeto para ajudar a compor o projeto que desde então vem trabalhando, a publicação Suspiros Tipográficos, cujo intuito é ordenar e preservar a memória dessas pequenas e resistentes gráficas brasileiras, mantendo viva nossa história por meio dessa técnica que parece apontar para os primórdios da cultura humana e sua necessidade vital de estabelecer conexões: a impressão.

Fragmento da publicação Livrocidade Água Preta, feita por Gilberto Tomé em 2014 a partir do curso do Rio Água Preta, em São Paulo [Foto: Cortesia do artista]

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A entrevista com Gilberto Tomé foi realizada por meio da plataforma Google Meet porque, quando este texto começou a ser escrito, ele estava longe, justamente em Cachoeira, em ocasião dos festejos de Nossa Senhora da Boa Morte, um dos eventos religiosos mais importantes e tradicionais da cidade. Me conecto com ele da minha casa, um apartamento pequeno no bairro da Pompéia, em São Paulo, cuja única janela se abre para a Praça Homero Silva, chamada Praça da Nascente por conta do rio que nasce ali, o Água Preta. Penso que é uma coincidência feliz, considerando que, há uma década, em 2014, Gilberto realizou por aqui o Livrocidade Água Preta, projeto que sobrepunha diversos tempos históricos do bairro por meio de cartazes, todos colados ao longo do percurso do rio pelas ruas e vielas não só da Pompéia, como também da Vila Anglo e da Vila Romana, até desaguar, por fim, na publicação homônima, hoje item de colecionador. Quando pergunto se ele já havia construído uma ponte entre esses dois rios, o Água Preta e o Paraguaçu, é com surpresa que ele me responde que não, que nunca tinha pensado nisso dessa forma, mas concorda que, afinal, faz mesmo muito sentido. Tomé conheceu a praça através de uma amiga que um dia o chamou para praticar Tai Chi Pai Lin ali, prática que ele realiza há vários anos e segundo a qual a água é nutrida pela energia do metal, que, por sua vez, simboliza os pulmões, a própria respiração. É interessante notar que os rios se uniram por esse canal, o metal dos tipos móveis, vinhetas e clichês do processo de impressão tipográfica, além da matéria mesmo das antigas impressoras.

Apesar das falhas de conexão crescentes, consigo captar o que ele me diz. Ele fala sobre paisagens maternas, sobre a impermanência. Me conta que, se está em Cachoeira, é para estabelecer diálogos acadêmicos entre instituições daqui e pesquisadores, por exemplo, da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), onde há uma das maiores bibliotecas do país dedicada a livros raros, muitos deles impressos e manufaturados com maquinário e equipamentos que permanecem na região – sim, sobretudo isso é importante, que a fortuna gráfica baiana permaneça em território baiano e se mantenha viva, ativa, em uso constante, visando permitir que a comunidade tenha acesso à sua própria história e, por meio desses equipamentos, ao direito de contá-la. E contá-la outra vez. E ainda outra.

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Desde 1982, quando do lançamento do disco Cores, Nomes, é provável que a sensação de “fluxo sem leito” tenha crescido e se transformado devido à velocidade com que hoje as informações circulam e rapidamente se desgastam. Tomé me contou ainda outras histórias, algumas delas sobre expedições portuguesas em Macau, na China, no fim do século 16, que resultaram em imagens religiosas particularíssimas que podem ser encontradas ainda hoje em Cachoeira, como vitrais adornados por motivos orientais e uma misteriosa Nossa Senhora com traços chineses. Da mesma forma, Laura Castro me falou sobre uma espécie de “caça mágica”, disposição de espírito baseada na abertura para as experiências que pode resultar no contato com diversos elementos que, aos mais atentos, revelam um sentido profundo, e relacionou isso com a história de seu livro Inês: Pequena Antologia do Passado, conjunto de poemas sobre sua trisavó africana, Inês de Castro, homônima daquela que, segundo as lendas, foi nomeada rainha depois de morta. Composto inteiramente nas gráficas do Recôncavo, cruzaram o caminho da autora dois clichês carregados de significado: o primeiro representa uma mulher sem rosto e o segundo, a ponte que une Cachoeira a São Félix sob o laço e a coroa de Oxum, orixá que reina sobre as águas doces.

Macau, Salvador, Cachoeira, São Félix, Pompéia, hoje eu também sei: o mundo é mesmo um fluxo sem leito. Uma corrente contínua costurada pelos cursos desses rios invencíveis.