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Vista de Sun of Consciousness. God Blow Thru Me – Love Break Me (2025), de Precious Okoyomon, e Cerrado Infinito, de Daniel Caballero [Foto: Levi Fanan/ Fundação Bienal e cortesia do artista]
Postado em 24/10/2025 - 8:56
Fora da estrada
Cerrado em disputa na 36ª Bienal de São Paulo: um encontro entre as obras de Precious Okoyomon e Daniel Caballero

O presente texto parte de três motes objetivos e simples e pretende-se que assim permaneçam para o bem do desenvolvimento do raciocínio e, sobretudo, para evitar mal-entendidos. São eles, em primeiro lugar, a defesa, pelos curadores da 36ª Bienal de São Paulo, da ideia de internacionalismo da mostra para explicar o menor número de artistas brasileiros em detrimento dos estrangeiros. 

O segundo ponto é a participação de Precious Okoyomon no que tem de exemplar: convidada a fazer um trabalho comissionado para a mostra – e conhecida pelos jardins que constrói como esculturas vivas –, a artista britânico-nigeriana veio ao Brasil e se encantou com o que viu do Cerrado mineiro, sobretudo o do Inhotim. Okoyomon então fez um jardim, supostamente de vegetação nativa, de plantas exóticas e invasoras do bioma.

O terceiro dado estrutural que embasa a presente crítica é o fato de que a curadoria da 36ª Bienal sabia da existência da pesquisa do artista brasileiro Daniel Caballero, que há mais de 10 anos faz um trabalho de pesquisa botânico-política sobre o Cerrado. A Bienal tentou contratá-lo como consultor, mas ele negou a solicitação de participação, ao não ser creditado como artista colaborador. 

A partir dessas três problemáticas, e após um primeiro contato com o trabalho de Okoyomon, celeste entra em contato com o artista, que havia recém-figurado na revista. Na edição #3, a pesquisa de Caballero se estendeu por várias páginas de deambulação pelas ilhas de Cerrado em São Paulo, obras engendradas pelo artista e jardineiro radical. De suas investigações é que nos chega, no meio de arte, a consciência de que grande parte do bioma nativo da cidade de São Paulo é o Cerrado. 

Vista da instalação de Sallisa Rosa na 36ª Bienal de São Paulo © Levi Fanan/ Fundação Bienal

Enquanto a experiência da exposição tropeça, logo na entrada, na disputa de terras e territórios para a qual a curadoria não quis atentar, alguns metros adiante, a instalação de Sallisa Rosa opera um contraponto didático ao trabalho da Precious Okoyomon. Feita integralmente de material que a artista recolheu no Parque Ibirapuera, a obra estabelece uma relação entre dentro e fora sem se apresentar como um grande teatro imperialista. As duas entrevistas entrelaçadas criticamente, a seguir, foram feitas no final de setembro, com Daniel Caballero e Precious Okoyomon, nesta ordem.

Cerrado Infinito, de Daniel Cabellero [Foto: cortesia do artista]

INTERNACIONALIZAÇÃO GERAL E IRRESTRITA

Tema embolorado. Tão velho que a bienal derrubou o “internacional” do nome há décadas. Discussão datada. Certo? Não do ponto de vista da curadoria da 36ª Bienal de São Paulo. Uma bienal internacional não pode se concentrar nos artistas locais, ela deve se abrir para o mundo e as artes de ponta de todos os lugares. Em resposta a uma pergunta da revista celeste na coletiva de imprensa, tanto Thiago de Paula Souza, cocurador, quanto Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, curador-geral, argumentaram que  a relevância internacional da Bienal de São Paulo implica que seja o lugar pra se conhecer a produção internacional, o que – deduzo – dispensaria a curadoria de se preocupar tanto com a arte brasileira. 

De resto, a noção de “arte internacional de ponta” da curadoria está bastante longe da realidade. Um exemplo: a obra da alemã Isa Genzken é exatamente do mesmo conjunto de trabalhos, mesmo conceito, mesma proposta estética, mesmo tudo, que a artista expôs na própria Bienal de São Paulo em 2010. Na ocasião, a instalação mais diversa em elementos constitutivos, intitulada Strassenfest (2009) era de fato cutting edge, realizada no ano anterior à vinda para o Brasil. Na presente edição, a obra de dez anos atrás, Schauspieler (2015), inferior em tudo à exibida em 2010 é, por óbvio, mais velha também. Ou seja, a curadoria não se deu ao trabalho de pesquisar as bienais passadas.

POR QUE O CERRADO ESTÁ MORRENDO?

Está dando o que falar a situação periclitante das plantas que integram a obra Sun of Consciousness. God Blow Thru Me – Love Break Me (2025), ou, na tradução divulgada, Sol da Consciência. Deus Sopra através de Mim – O Amor Me Quebra (2025), de Precious Okoyomon. É o primeiro trabalho que o visitante encontra à entrada do Pavilhão da Bienal. Dias depois da abertura, postagens e comentários de visitantes nas redes sociais davam conta de que várias plantas estavam morrendo ou mortas. Em entrevista à celeste, a artista esclarece que “a obra é uma escultura viva e escolhi as plantas pensando deliberadamente em seus ciclos de vida, ou seja, algumas coisas estarão morrendo, outras estarão num estado de dormência, e algumas coisas estarão florescendo o tempo todo”. 

Okoyomon explica que entende os jardins como composições ou paisagens sonoras, em que as coisas se desenrolam lentamente: “A obra da Bienal tem a duração de cinco meses, portanto todo um novo ecossistema vai emergir. Não quero ver apenas coisas vivas e bonitas, quero vê-las morrer, voltar à vida, florescer, dar frutos. Quero dizer, esse é o ponto principal, é como a vida é. Este é o milagre de tudo isso. Tudo lá está em seu próprio espaço-tempo, e as pessoas esquecem que estamos no meio do inverno”. A artista conta que não vê separação ou hierarquia entre natureza e humanidade e que é fundamental testemunhar os ciclos da natureza sem evitar a morte. “É desconfortável; nem sempre será a maneira como se vê a beleza, mas para mim a coisa toda é importante – o ciclo inteiro é importante”, afirma.

Vista de Sun of Consciousness. God Blow Thru Me – Love Break Me (2025), de Precious Okoyomon [Foto: Levi Fanan/ Fundação Bienal]

FORA DA ESTRADA, FORASTEIRO?

Corta para o Cerrado Infinito, work in progress do artista Daniel Caballero iniciado em 2015 na Praça Homero Silva, ou Praça da Nascente, na zona Oeste de São Paulo. Caballero replantou ali as espécies nativas do Cerrado que haviam feito parte de uma instalação do artista em uma galeria. Amigos, artistas ou não, e simpatizantes passaram a se dividir em mutirões de ressignificação da praça: “Havia um grupo de ambientalistas trabalhando na Praça da Nascente; juntamos a vontade de descolonizar aquela vegetação, e fomos plantar a vegetação nativa, tirando o gramado e árvores de compensação ecológica, que engenheiros agrônomos mandavam sem critério pra lá”.

Para quem não sabe, o Cerrado é mais da metade da cidade de São Paulo, ensina Caballero. “A percepção humana sobre ecologia tem várias limitações e o Cerrado, que só recentemente começou a ser considerado bonito, é muito mal compreendido. O movimento agrofloresteiro sugere uma pacificação entre o humano e o natural, perpetuando a ideia agrícola de fertilidade da vegetação, uma utopia de urbanoides podendo ser também silvícolas.” Ou seja, tanto pela cultura, que as pessoas consideram “mato de terreno baldio”, “erva daninha”, “planta de entulho”, quanto pela adesão ao discurso da ecologia “arvorecêntrica” e agrícola, o Cerrado tem sua sobrevivência ameaçada. De acordo com Caballero, mesmo entre ambientalistas há preconceitos sobre o bioma. “As pessoas da permacultura acham que estão vendo as letras verdes da Matrix, que entenderam tudo, entram na terra vermelha do Cerrado, dizem que é pobre e precisa ser curada, e mudam o bioma irreversivelmente, decretando seu fim. Isso é colonizador.” 

Sobre paralelos entre a sua obra e a de Precious Okoyomon, Caballero prefere reforçar as divergências: “Eu sou do Cerrado da terra. Agora temos um Cerrado… do reino. Vi o trabalho na Bienal do ponto de vista pictórico, paisagístico, mas não tem muito de Cerrado em si, tem alguns arbustos genéricos que passam pelo Cerrado, mas também estão presentes na Amazônia e na Mata Atlântica, o que em arte, dependendo do conceito, não seria um problema”. Ele aponta, então, o desencontro simbólico entre as duas pesquisas. “Mas, como ativista da terra vermelha, para mim é chocante um Cerrado com terra preta de jardinagem!”

Cerrado Infinito, de Daniel Cabellero [Foto: cortesia do artista]
JARDIM DA RESILIÊNCIA

Precious Okoyomon esteve no Brasil no começo de 2024 para pesquisar o Cerrado. “Fiquei por duas semanas, fiz trilhas em Minas Gerais, na Floresta Nacional, por um dia inteiro, tomei notas, guardei sementes, tirei fotos, porque tudo começa com uma pesquisa física intensa.” Durante essa viagem descobriu o que queria fazer. “É um jardim de resiliência, cuja ideia me veio ao observar as árvores que crescem um centímetro a cada ano, as pedras gigantes que têm 13 milhões de anos.” O pensamento, então, foi “como seria dar a essas plantas nativas, essas plantas lindas e negligenciadas, um espaço para prosperar e ter esse resultado”. 

Depois do término da exposição, Okoyomon já definiu o destino das plantas, tudo será replantado em diferentes bairros, especificamente em lugares que a artista encontrou e onde conversou com pessoas interessadas. “Encontrei, por exemplo, esse lugar onde todas essas mulheres se reuniram para começar a fazer essa horta radical, que vão cuidar do meu algodoeiro. É como se estivesse construindo esse relacionamento com o meio ambiente de São Paulo.”

Quando a entrevista se volta para o trabalho que a artista realizou no Pavilhão da Nigéria na Bienal de Veneza de 2024, seu discurso e de Caballero pela primeira vez se aproximam. Precious Okoyomon conta que a instalação foi feita com plantas de Lagos, mas que encontrou em Veneza, nos arredores do Pavilhão, “essas ervas daninhas lindas que geralmente são como detritos ou, a maioria delas, como a mimosa ou jasmim, de crescimento rápido, como também espinhoso, erva-de-bruxa e coisas assim. Todas essas coisas que eu queria cultivar são coisas que as pessoas geralmente tentam matar. Então eu pensei, ok, essa torre de amor e resiliência deveria ser cercada por tudo que todo mundo está sempre tentando matar”.Vale mencionar, aqui, a instalação de Rosana Palazyan na 56ª Bienal de Veneza (2015), também feita com ervas daninhas.

NO CERRADO, A TERRA VERMELHA É REVOLUCIONÁRIA, INDOMESTICÁVEL, SELVAGEM, É NOSSA POSSIBILIDADE DE NOS DESLOCAR E ESCAPAR DA VISÃO FUNCIONALISTA, QUE TRANSFORMA TUDO EM ÚTIL. A TERRA PRETA SIMBOLIZA A FERTILIDADE DO AGRO QUE MATA O CERRADO
Cerrado Infinito, de Daniel Cabellero [Foto: cortesia do artista]

TERRA VERMELHA É INDOMESTICÁVEL

“A terra preta é da decomposição orgânica, fertilidade e abundância, e nós, como ‘Humus Sapiens’, fizemos a escolha de ser agricultores: uma ecologia agrícola, que desenvolveu nossas sociedades, mas também determinou o uso colonial e capitalista da terra. No Cerrado, a terra vermelha é revolucionária, indomesticável, selvagem, é nossa possibilidade de nos deslocar e escapar da visão funcionalista, que transforma tudo em útil. A terra preta simboliza a fertilidade do agro que mata o Cerrado”, conclui Daniel Caballero sobre o maior problema que identifica na instalação de Precious Okoyomon na Bienal. 

Sobre o uso de terra de jardinagem, Okoyomon explica que “queria usar um solo super saudável. Esse solo preto muito rico em nutrientes compensa o fato de as plantas estarem em ambiente fechado. Quer dizer, não é natural fazer um jardim dentro de casa. Então, eu queria usar esse solo extra fortificado para ajudá-las e mantê-las saudáveis ​​e vivas”. Como falar eticamente sobre o Cerrado sem enfrentamento da destruição do Cerrado? Como falar em Bienal descolonial quando a Bienal adota a lógica capitalista que destroi o Cerrado? “Outros biomas importam”, resume Caballero. No afã de ser internacional, contemporânea, diversa e interespecífica, a 36ª edição será lembrada como a Bienal colonial porque excluiu outras tantas diversidades. 

PARA QUE SERVE O SILÊNCIO?

Que onda. A pessoa pisando em ovos para usar palavras como diversidade ou silenciamento, como se não pertencessem mais a seu vocabulário. As duas palavras informam toda a história das exposições, mas parece inadequado fazer um jogo de palavras ao tratar de uma exposição que discute marcadores raciais no sistema da arte, em um contexto informativo em que a racialização, tanto da negritude como da branquitude, é um assunto relevante. Quando foi que paramos de tentar dizer as coisas? É um bom problema que tenham ficado mais difíceis de dizer (quanto maior a empatia entre os falantes, mais complexo é dizer o que se pensa, porque cada palavra mal escolhida, cada ideia não conferida trai o solo comum da ética), mas quando foi que paramos de tentar dizer as coisas?