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Alunos na Escola Primária de Gando, projeto vencedor do Prêmio Aga Khan (Foto: Andrea Maretto / Cortesia Kéré Architecture)
Postado em 14/08/2020 - 8:47
Francis Kéré: edifícios para ensinar e aprender
Arquiteto africano inicia com a construção da primeira escola de seu povoado natal. Envolver comunidades no processo é sua marca registrada
Helena Cavalheiro

Nascido em Burkina Faso e titulado na Alemanha, Diébédo Francis Kéré produz uma arquitetura ímpar. Fruto de duas culturas contrastantes, suas criações se servem ao mesmo tempo do racionalismo de sua formação e das suas origens em uma comunidade africana. Curiosamente, a mistura reflete-se também na sua aparência pessoal: camisas de corte elegante convivem em harmonia com as discretas cicatrizes tribais do seu rosto.

Francis Kéré (Foto: Lars Borges(

Mais de 3 mil quilômetros separam Berlim, onde Kéré vive e trabalha, de Gando, vilarejo onde nasceu e também seu principal canteiro de obras. Na capital alemã, seu estúdio ocupa um edifício localizado próximo do Tempelhofer Feld, antigo aeroporto hoje transformado em parque. Entre arquitetos e colaboradores da Fundação Kéré – responsável pela captação de recursos e gestão dos projetos que ele realiza em Gando – trabalham com ele outras 16 pessoas. Já o seu povoado natal está localizado a cerca de 180 quilômetros em estradas de terra de Uagadugu, capital burkinabê. Com cerca de 2,5 mil habitantes, Gando não possui eletricidade, sofre com a escassez de água potável e há cerca de 20 anos era também o retrato da frágil estrutura educacional do país: sem nenhuma escola, sua população era praticamente toda analfabeta. 

A situação mudaria a partir de 2001, quando foi inaugurada a primeira escola no povoado. Com pouco mais de 200 metros quadrados de área construída, foi concebida por Kéré quando ainda era estudante de arquitetura da Universidade Técnica de Berlim. O projeto ganhou destaque a partir de 2004, quando venceu o prestigiado prêmio Aga Khan – dedicado a projetos realizados em países com presença significativa de muçulmanos – caso de Burkina Faso. A pequena escola, que abrigava inicialmente 150 crianças, foi a semente de um conjunto de edifícios que hoje atende cerca de 700 estudantes. 

Em constante processo de construção, o complexo educacional de Gando tornou-se o cartão de visitas de Kéré, que tem sido cada vez mais requisitado. Com encomendas em diversos países africanos, Europa e Estados Unidos, seu foco está em projetar edifícios públicos: escolas, centros de saúde, instalações artísticas e sedes governamentais. Também atua como professor: leciona na Universidade Técnica de Munique e já passou por Harvard e Yale. Além disso, não raro é convidado a participar de exposições e congressos, a exemplo do UIA2021RIO, o 27º Congresso Mundial de Arquitetos que acontecerá no Rio de Janeiro no próximo ano e onde Kéré será um dos principais palestrantes.

Construção comunitária
Por que tanto interesse na sua figura? Além de seu engajamento social, a história pessoal do arquiteto também conta pontos. Em resumo, em busca de ensino básico, Kéré deixa seu vilarejo natal ainda criança. O garoto não voltaria a viver em Gando – uma bolsa de estudos o levaria à Alemanha para uma formação técnica em carpintaria, que seria seguida do curso de Arquitetura. A precária estrutura escolar da sua infância deixaria marcas tão profundas que moldariam a sua missão profissional: nas suas palavras, “construir edifícios bons para ensinar e aprender”.

Mas sua história de superação, por mais potente que seja, não bastaria para receber prêmios, convites para lecionar em escolas prestigiadas ou para criar ícones arquitetônicos como o Serpentine Pavilion, projeto realizado em 2017 e que o inseriu definitivamente no star system. Kéré também é, claro, um excelente arquiteto. 

Não é preciso ir longe para compreender: o singelo projeto da escola primária de Gando já demonstra a inteligência de seu trabalho. Construído com materiais simples, o edifício é composto de três salas entremeadas por corredores abertos, tudo coberto por um telhado único. As paredes, os pisos e os tetos das salas foram feitos de argila retirada do próprio terreno. Para a cobertura foram usadas telhas metálicas curvadas, que se apoiam sobre uma estrutura leve construída com vergalhões – barras metálicas que geralmente ficam “escondidas” dentro de estruturas de concreto. As abas largas do telhado protegem o edifício das chuvas e do sol intensos. Combinadas com aberturas no teto das salas, grandes venezianas metálicas garantem a ventilação natural permanente dos espaços. Para uma região onde a temperatura pode chegar a 45ºC, é um feito e tanto. 

O processo de construção também é parte importante da prática de Kéré. “Eu não sou um grande fã de edifícios finalizados”, brinca. No caso da escola primária, o baixo orçamento obrigou-o a criar soluções construtivas que viabilizassem sua execução. Uma delas foi contar com o trabalho voluntário da comunidade. “O financiamento era limitado e sua realização precisava de todas as mãos no convés”, comenta. Sendo assim, projetou o edifício de modo que a construção pudesse ser executada por mão de obra sem experiência, mas que ainda assim garantisse um resultado com a qualidade formal e técnica desejada.

Envolver as comunidades na construção dos edifícios se tornaria sua marca registrada. Ele e sua equipe a utilizam tanto como estratégia para incentivar a apropriação do edifício pelos futuros usuários quanto como plataforma de capacitação profissional. Atualmente, Kéré conta com uma equipe de apoio local em Burkina Faso. Entre técnicos e construtores são cerca de 25 profissionais, muitos deles capacitados nas suas obras. A prática acabou criando uma rede profissional que extravasa seus projetos. Kéré comemora: “O que mais você pode querer do que o seu trabalho capacitar inúmeros outros?”

Precisão técnica, qualidade espacial, inventividade e responsabilidade social – eis um resumo do trabalho de Kéré. Luiz Fernández-Galiano, curador da exposição Elementos Primários, realizada em 2018 em Madri a propósito do trabalho do arquiteto, não poupa elogios: “Francis Kéré não é apenas o arquiteto mais importante da África, mas também o que conseguiu reconciliar em sua obra a ética e a estética”. 

Em tempo: Diébédo, em sua língua natal, quer dizer “aquele que veio organizar as coisas”. De fato, nos edifícios de Kéré pouca coisa parece estar fora do lugar.