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Still do filme Jogue o Seu Eu Fora (2003), de Bernadette Corporation [Foto: cortesia Casa de Cultura do Parque]
Postado em 05/09/2024 - 4:47
Gentileza gera violência
Novo filme de Yorgos Lanthimos não vê saída para a cafetinagem da vida; exposição dos coletivos Claire Fontaine e Bernardette Corporation aponta linhas de fuga

É uma temeridade buscar pontos de contato entre o filme Kinds of Kindness (2024), em cartaz nos cinemas, e a mostra de vídeos dos coletivos Claire Fontaine e Bernardette Corporation, apresentada na Casa de Cultura do Parque até 8/9, mas não nos esqueçamos de que uma das razões de ser mais ancestrais das obras de arte é disparar conversas, o que exige delas certa ambiguidade, e, de nós, alguma abertura. Então, conversemos. 

Certa vez, o crítico e tradutor Modesto Carone referiu-se à obra de Kafka como realista. As sufocantes cenas kafkianas não deveriam ser lidas como um universo surreal, afirmou seu principal tradutor para o português do Brasil, elas descrevem o mundo administrado tal como ele é, com toda a sua estranha ordem, uma mistura de violência e burocracia. A observação vale para o filme Kinds of Kindness (2024), ou Tipos de Gentileza, do diretor grego Yorgos Lanthimos – vencedor do Globo de Ouro de melhor direção por Pobres Criaturas em 2023. As três histórias, nas quais os mesmos atores desempenham personagens diferentes, cartografam formas de dominação pelo desejo apresentando situações análogas aos tipos de abuso que vivemos em ambientes de trabalho, relacionamentos e que persistem até mesmo quando acreditamos ter nos livrado deles. 

Não é fácil reconhecer, mas, parafraseando Modesto Carone, vivemos exatamente as “relações de poder no modo-cafetinagem” (conforme a psicanalista Suely Rolnik) que o filme descreve. Livrar-se das gentilezas obscenas não parece possível, a não ser em meio a “zonas de opacidade”, como as registradas pelos filmes da “artista-pronta” Claire Fontaine e do coletivo Bernardette Corporation. Da moda transgressora nos anos 1990 aos protestos antiglobalização dos anos 2000, esses “experimentos audiovisuais” subvertem linguagens, subjetividades e temporalidades, e lembram que um outro mundo já foi possível.

Referências a Kafka são recorrentes nos trabalhos de Claire Fontaine, tanto no filme Assistentes (2011) quanto no texto Estrangeiros por Toda Parte, colado nos muros de Paris em 2005 e retomado como título da atual edição da Bienal de Veneza. O texto integra a coletânea de panfletos e ensaios Greve Humana: Por uma Prática da Liberdade, que será lançada pela Glac edições na Casa de Cultura do Parque, em São Paulo. Os textos, escritos entre 2005, quando Claire Fontaine foi criada por seus “assistentes” Fulvia Carnevale e James Thornhill, e 2024, desestabilizam o mundo da arte com ideias como a expressão libertária da subjetividade feminina, inspirada pela crítica Carla Lonzi, e o “materialismo mágico”, influenciado pela cientista social Silvia Federici.

Still do filme Jogue o Seu Eu Fora (2003), de Bernadette Corporation [Foto: cortesia Casa de Cultura do Parque]
Still de Jogue o Seu Eu Fora (2003), de Bernadette Corporation [Foto: cortesia Casa de Cultura do Parque]

O lançamento será neste sábado, 7/9, véspera do encerramento da mostra Jogue o Seu Eu Fora, com curadoria do editor Leonardo Araújo Beserra. Às 16h, Fabrícia Jordão, Geórgia Kyriakakis e Pablo Vieira discutirão o livro e a exposição. Seis filmes de curta-metragem são apresentados em monitores com fones de ouvido num dos corredores da casa modernista, que apresenta também um acervo de obras de arte e outras mostras temporárias. Quatro filmes são projetados em tela grande, inclusive os dois mais extensos: Jogue o Seu Eu Fora, da Bernadette Corporation, e Instruções para a Partilha da Propriedade Privada, de Claire Fontaine, um manual para destrancar fechaduras com grampos e clipes. 

Get Rid of Yourself, que, segundo Beserra, também poderia ser traduzido por “livre-se de si”, reúne diversas vozes, cenas gravadas nos protestos de 2001 contra a cúpula do G8 em Gênova e leituras feitas pela atriz Chloë Sevigny. Um narrador descreve como se perde de si mesmo em meio ao tumulto para se tornar um “ser comum”. Uma sequência gravada durante a fuga da repressão capta o puro movimento e traduz visualmente essa potência do comum. Trata-se de uma imagem verdadeira por causa da sua inexatidão e não apesar dela, assim como o filósofo Georges Didi-Huberman afirma acerca das fotografias do Sonderkommando de Auschwitz, em especial a de nº 282, na qual nada se vê, senão relances de galhos de árvores, mas que revela o gesto de insubordinação sob pressão implacável.

CONTÉM SPOILERS
Estar disponível em horários alternativos, viajar deixando filhos por conta própria ou sobrecarregando familiares, cuidar dos filhos dos outros abandonando seus próprios, ajustar os mesmos documentos a novos formatos, refazer tarefas por míseros motivos, ter suas comunicações monitoradas por gestores, ratear presentes para o chefe duas vezes por ano (aniversário e Natal), prestar contas sobre nutrição, vida amorosa e hábitos culturais fazem parte da rotina dos mundos do trabalho. Acrescente-se desejar fazer tudo isso, ainda que sua renda não cubra todas as despesas, uma vez que nem todos conseguem ter um trabalho e muitos devem precisar do seu. A precarização e a plataformização intensificaram tão exponencialmente esses ossos de tantos ofícios que nada descreve tão bem a forma atual da exploração quanto a figura de um chefe mais interessado que seu funcionário atenda aos mais aleatórios caprichos do que pela produção propriamente dita. 

Sempre com um sorriso gentil, o personagem do lendário ator Willem Dafoe no primeiro conto representa uma tal concentração do capital que pouco importa para ele o que se produz, pois a atividade econômica a ser explorada é a economia libidinal proporcionada pela incitação e administração do gozo do seu funcionário, interpretado por Jesse Plemons (o irmão iletrado em Ataque dos Cães, 2021). Quem quer que já tenha sido interrompido para uma conversa fiada enquanto estava trabalhando pode entender como realistas as cenas nas quais o chefe gere os mínimos detalhes da vida íntima do funcionário e pouco se importa com o trabalho em si.

Frames do vídeo Instruções para a Partilha da Propriedade Privada (2006), de Claire Fontaine [Fotos: cortesia Casa de Cultura do Parque]

Nos contos seguintes, Emma Stone, atriz principal de Pobres Criaturas, vive personagens que, apesar de características extraordinárias que os homens não têm, emaranham-se também em relações de poder cafetinas. No primeiro caso, ela serve partes do corpo para alimentar o delírio do seu marido e, no, segundo, integra uma seita cujos adeptos só podem ter relações sexuais com o casal de líderes, e bebem água abençoada por suas lágrimas. O casamento heterossexual monogâmico e o neoesoterismo apresentam mecanismos de captura dos fluxos desejantes análogos aos da exploração do trabalho, ou mais perversos, talvez, pois essas mulheres se destroem tragicamente por causa de suas próprias potencialidades, seja Liz, que consegue sobreviver numa ilha deserta depois de um naufrágio, ou Emily, capaz de encontrar a mulher sagrada buscada pelo casal místico e que se insurge duplamente, contra o casamento e a seita. Por sinal, foi a própria Emma Stone quem dirigiu o possante Dodge durante as filmagens.

A recusa ao trabalho pelo funcionário Robert nem remotamente se assemelha aos “gestos de greve humana” conforme Claire Fontaine, que superam a “dicotomia entre a vida no sentido político e a vida nua”. É notável que o limite ético para sua obediência seja causar a morte de uma outra pessoa que, por sua vez, segundo Raymond, o chefe, não se importa com isso, aceita sua própria matabilidade. Robert foi capaz de obedecer às ordens de drogar sua esposa para interromper gestações ao longo de anos. A comunicação da recusa é uma cena metalinguística. Como um diretor de cinema ou teatro, o chefe pede que ele a repita em pé e sentado. A classe artística também opera no sistema das “máquinas desejantes”, conforme expressão de Deleuze e Guattari. 

Aparentemente, Robert se vê livre da grande máquina despótica para reconstruir sua vida. Mas a mais crítica observação do filme sobre a exploração capitalista do desejo é que nunca se está fora dela. Mesmo demitido, ou desligado como dizem os gestores, Robert continua sendo monitorado. A diferença é que, mesmo implorando para ser readmitido, sua situação é irreversível caso mantenha sua recusa.

Os desfechos trágicos dos três contos (avisamos sobre spoilers) indicam um panorama pessimista. Talvez as linhas de fuga do filme de Yorgos Lanthimos estejam nas fotografias macro de objetos específicos, nas imagens que indicam o pensamento das personagens e nas cenas oníricas. A fotografia e o cinema são revolucionários, afirmou Walter Benjamin em 1936, em parte porque a câmera descortina um “inconsciente óptico” que escapa às outras formas de arte. Atuando como um psicanalista em busca de lapsos, ênfases e evasivas nos discursos, a câmera revela pequenos objetos, esgares e microrreações nunca antes considerados. Em Kinds of Kindness esse tipo de imagem talvez não salve as personagens, mas expõe a sobrevivência de uma dimensão de opacidade em suas subjetividades, uma forma de vida ainda imune à “megamáquina”. É por causa de um sonho que Emily identifica a mulher capaz de ressuscitar os mortos, mas é por causa de suas proezas ao volante que a perde.

O CASAMENTO HETEROSSEXUAL MONOGÂMICO E O NEOESOTERISMO APRESENTAM MECANISMOS DE CAPTURA DOS FLUXOS DESEJANTES ANÁLOGOS AOS DA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO, OU MAIS PERVERSOS, TALVEZ, POIS ESSAS MULHERES SE DESTROEM TRAGICAMENTE POR CAUSA DE SUAS PRÓPRIAS POTENCIALIDADES

Still do vídeo Um Fogo É um Fogo não É um Fogo (2006), de Claire Fontaine [Foto: cortesia Casa de Cultura do Parque]
Há certa analogia entre essa dimensão onírica que sobrevive nesses personagens e certos vídeos de Claire Fontaine, como Nada mais Vai Bem (2018), em que uma roleta gira sem parar, sem nunca apontar um número, e Um Fogo É um Fogo não É um Fogo (2006), que oferece a contemplação de um contínuo crepitar. A artista conta que Marcel Duchamp, que inspirou seu nome, gostava de observar a roda de bicicleta girando como uma espécie de passatempo, assim como apreciava observar o fogo. Nessas situações de greve humana, ao menos, não contribuímos para as máquinas cafetinas.

Tratamos de cineastas e artistas europeus, mas de assuntos bem brasileiros. A violência disfarçada de cordialidade nas relações de poder é tão típica da nossa realidade quanto a capacidade de subvertê-las em transes coletivos nos quais provisoriamente nos despimos dos nossos eus. Restam as questões sobre quanta opacidade realmente conseguimos criar e em que medida nossas situações de liminaridade acabam sendo capturadas como a “Black Bloc Butique na entrada do Palais de Tokyo”, cujos clientes Claire Fontaine deplora. 

 

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter et alt. Benjamin e a Obra de Arte. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. São Paulo: 34 Letras, 2011.

FONTAINE, Claire. Greve Humana: Por uma Prática da Liberdade. São Paulo: Glac edições, 2024.

ROLNIK, Suely. Esferas da Insurreição: Notas para uma Vida não Cafetinada. São Paulo: n-1 edições, 2018.