Desde que os situacionistas inventaram de andar por uma cidade usando o mapa de outra, circular por sistemas fechados deixou de ser uma obviedade. Assim, partir do Guia Comum do Centro do Recife para experimentar um circuito de arte expandido a outras coordenadas da cidade é uma possibilidade lúdica e libertária para embalar a escrita sobre a semana de Art.PE. A quarta edição da feira de arte contemporânea aconteceu no início de outubro, no Cais Santa Rita, em Recife, com a participação de galerias e espaços de arte da cidade, como Amparo 60, Christal, Marco Zero, Beco Street Art e Terra Brasilis; de outros estados, como Mitre (MG), Gamela (Paraiba), Galleria Continua (SP), Nara Roesler (SP-NY), Oma (SP), Lume (SP), Aura (SP), Luis Maluf (SP), Andrea Rehder (SP); e países, como Verso (Portugal).
Ao elencar a psicogeografia situacionista como uma referência de seu Guia, a artista Bruna Rafaela nos leva de volta às pesquisas recentes da revista celeste e a Guy Debord, na Introdução a Uma Crítica da Geografia Urbana (1955), citado no manifesto editorial da celeste #4: “A psicogeografia seria o estudo das leis exatas e dos efeitos precisos do meio geográfico, planejado conscientemente ou não, que agem sobre o comportamento afetivo dos indivíduos”.

ATO I – ZONA SUL <> ATO II – ZONA NORTE
Hoje a Amparo 60 está no bairro de Boa Viagem, onde a galeria realizou uma exposição em dois atos, com a Garrido Galeria. Com curadoria de Rita Vênus, Inferno – Cânticos (Atos I e II) parte do universo de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, “para torcer noções do sagrado e do litúrgico” e diluir as distâncias entre Zona Sul e Zona Norte. Em “espelhamentos entre céu e terra”, sugeridos nas obras de artistas como José Patrício, aoruaura, Marcelo Ribeiro, Anti Ribeiro, Cristiano Lenhardt e Leticia Lopes, a mostra entrelaça artistas das duas galerias e várias gerações.
Um pouco adiante de Casa Forte, onde está a Garrido, seguimos vento noroeste para a Oficina Francisco Brennand, que apresenta o Núcleo Saturno, exposição de longa duração em cartaz até outubro de 2026. Também com curadoria de Rita Vênus, a mostra reúne obras dedicadas à genealogia do deus pagão da mitologia grega antiga que é muito presente na poética de Brennand. “O núcleo é também formado por obras que, dispostas em elipse, aproximam representações de corpos dilacerados, decapitados e disformes, remetendo ao gesto violento do Saturno que, no enredo mitológico, castra com foice o próprio pai, Urano, e devora até os filhos, recaindo na Húbris, a ação desmedida”, escreve Vênus no texto curatorial.

Incrustada na Mata da Várzea, a Oficina Brennand também faz margem com o rio Capibaribe que, como escreve João Cabral, “flui como espada de líquido espesso” e faz a brisa fresca ventar pelos bairros verdes ribeirinhos da Zona Norte. Próximo ao centro da cidade, ele se junta com o Beberibe, dizem que para formar o Oceano Atlântico. Talvez seja por isso que Cícero Dias viu que o mundo começava no Recife e a sua pintura de 12 longos metros, de 1928, seja ponto de partida do modernismo brasileiro. Tem ainda o Jiquiá e o Tijipió que não entraram nessa conta. É tanta água que ninguém parece estranhar Recife ter um bairro chamado Afogados.
A artista Clara Moreira, que vive perto do Capibaribe, tem desenhado uma jiboia que aterroriza o seu bairro. No trabalho apresentado no estande da Amparo 60, a jiboia e uma mulher estão emaranhadas à ponte mais antiga do Recife, Maurício de Nassau, batizada com o nome do príncipe que governou a colônia holandesa no Nordeste do Brasil, e cujo palácio dava frente ao Capibaribe. No mais longo e caudaloso dos rios pernambucanos navegamos 2023, quando tomamos parte de um rito-instalação para outra jiboia, no projeto CapiDançaBaribéNóis.
O rio também dá nome à galeria da Universidade Federal de Pernambuco, a Galeria de Arte Capibaribe, a cargo da professora do curso de artes visuais da UFPE e curadora Joana D’Arc Lima, que este ano participou pela primeira vez da Art.PE e saiu premiada, com a Ocupação Ruídos do Efêmero, projeto inspirado em livro do historiador Antônio Paulo Rezende.
“Não existe o Recife sem o Rio Capibaribe”, escreve Bruna Rafaela no seu Guia. “Foram seus meandros que deram origem ao centro histórico e que propiciaram a construção de pontes e arcos. Do mesmo modo, é ele que reflete o pensamento inconsequente dos seus usuários. Numa cidade ensolarada como esta, está gritando o grande desperdício de um rio que não refresca porque não se banha”.
As pontes são incontáveis e frequentemente entram em disputas sobre qual a mais bonita, a mais antiga, a mais isto, a mais aquilo. “O Recife tem uma ponte chamada giratória que, acredite, não gira”, aponta Bruna no trajeto do Guia dedicado aos “lugares que não existem” – no qual também está registrado o curta-metragem Recife Frio, de Kleber Mendonça Filho. Mas não foi por ela que cruzamos o rio na caminhada conduzida. A coordenada foi outra.
PONTO DE ENCONTRO: RUA DO HOSPÍCIO, 81
Mais especificamente, em frente ao Teatro do Parque, às 9h. Local sem parque nem hospício à vista, mas uma rua comercial, de edifícios velhos e grande circulação. A caminhada “pelos locais de resistência e memória no centro da cidade” foi iniciada aqui por Bruna Rafaela com uma citação de Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino. O texto aborda duas maneiras de escapar do sofrimento. Ficamos com a segunda, que “é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.

O plano do parque não saiu, mas o teatro-jardim é um dos mais antigos equipamentos culturais da cidade. Está fazendo 100 anos em 2025! Já foi também cineteatro, encontro de artistas e boêmios ao longo de todo o século 20 e hoje abriga a Banda da Cidade do Recife. Conta Aslan Cabral que, nos anos 1960, o hotel foi palco de Orgia – Os Diários de Tulio Carella, obra confessional do dramaturgo argentino que virou cult da literatura gay. Carella veio dar aulas no curso de teatro da Universidade do Recife a convite do teatrólogo Hermilo Borba Filho, em 1960. Com a aura histórica das aventuras homoafetivas no Recife Antigo, o Hotel do Parque é um local de resistência e memória LGBTQIA+ no Brasil.

Ainda no bairro antigo de Boa Vista, a poucos quarteirões dali, na rua Visconde de Goiânia, está o ateliê de Paulo Bruscky, que recebeu muitas visitas e foi homenageado pelo projeto Cinema São Luiz na Art.PE com um programa de filmes de artista e registros audiovisuais raríssimos, datados de 1971 a 2015. A programação no cinema ao ar livre no gramado em frente à entrada da feira teve curadoria de Pedro Severien e trabalhos de biarritzzz, Lia Letícia, Juliana Notari e Karol Pacheco, entre outros.


De volta ao roteiro urbano, junto com o Teatro do Parque, o cinema São Luiz, inaugurado em 1952, é outro monumento da cidade, com a pintura mural de Lula Cardozo Ayres no foyer e os vitrais coloridos que acendem no final das sessões. A sala protagonizou o filme Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho, e reaparece em O Agente Secreto (2025), que teve ali sua pré-estreia após três anos de reformas. Entre os cinemas, importante registrar o Edifício AIP que abrigou o complexo da Associação de Imprensa de Pernambuco, onde funcionou – desde os anos dourados a 2005 – uma sala de cinema dedicada a filmes de arte, na cobertura do prédio.

LUGARES ASSOMBRADOS E ASSOBRADADOS
Mas vamos falar de fantasmas? Quem se lembra do cartaz de Retratos Fantasmas (2023)? Pois ele estampa uma imagem do fotógrafo e cinegrafista autodidata Wilson Carneiro da Cunha (1919-1986), que entre 1953 e 1983 pilotou o famoso Kiosque do Wilson, na Rua Nova, e deixou como legado um patrimônio histórico documental da cidade. Uma ampliação da mesma imagem estava em exposição no estande da Amparo.
Perto do local onde ficava o Kioske do Wilson – apontado no mapa de Bruna entre os “lugares invisíveis” de Recife e onde hoje há um quiosque de coco verde – tem “a emparedada da Rua Nova”, lenda urbana de uma noiva engravidada antes do casamento que foi literalmente emparedada pelo pai e depois virou romance histórico escrito por Carneiro Vilela. Histórias de feminicídios.
Na continuação da Rua da Imperatriz, que já foi considerada a rua mais importante de Recife e hoje é celebrizada como ponto de saída do bloco de abertura dos Carnavais, Clarice Lispector passou sua infância em um sobrado em frente à Praça Maciel Pinheiro. Mas essa não é uma história de fantasma.

POEMA ACIDENTAL
Se um dos finais possíveis para os muitos roteiros do Guia Comum é chamar atenção para os “tipos de Recife” compostos pela tipografia das letreiros no alto das fachadas, trabalhos como Não Há Vagas (2008), da artista e cineasta Lia Letícia, contribuem fartamente para a pesquisa. E se o intuito é compor um poema acidental para uma geografia afetiva, vamos para Arte É Comércio (2010-2025), composição mural com placas de estabelecimentos comerciais com o termo “arte”. A partir daqui, a dica é se perder.
Serviço
Tudo dá, Lia Letícia
Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam),
Rua da Aurora, 265, Boa Vista, Recife, até 9/11
Núcleo Saturno
Oficina Francisco Brennand, Rua Diogo de Vasconcelos s/n, Várzea, Recife
Até setembro de 2026
Vermelho Cruel – Marcio Almeida
Galeria Amparo 60
Rua Prof. Eduardo Wanderlei Filho, 187, Recife
Até 31/10
Garrido Galeria
Rua Samuel de Farias 245, Santana, Recife