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Postado em 29/10/2024 - 6:04
Guia turístico de rios e córregos de São Paulo
Confira a rota pelas águas ocultas do Saracura, um monumento histórico invisível do bairro do Bixiga

São Paulo recebeu mais turistas em 2024 do que qualquer outra cidade do país. Certamente, não é por causa de seus rios. Estes mal passam pela cabeça de quem mora aqui, muito menos pela de quem vem de fora. Apesar de São Paulo ser cortada de ponta a ponta pelo Pinheiros e pelo Tietê (reduzidos no nosso imaginário a vias automotivas expressas), poucos lembram da enorme trama de afluentes encoberta pela força civilizatória do asfalto. Por isso, preparamos uma rota pelas águas ocultas do Saracura, um monumento histórico invisível que nasce na Bela Vista, corre pelo Bixiga e conflui com seus irmãos no Vale do Anhangabaú.

Aqui tem uma nascente

Perto do cruzamento da Dr. Seng com a Rua Rocha, dentro de uma pequena ruela sem saída chamada Garcia Fernandes, temos o Edifício Seng de um lado e um barranco arborizado do outro. No muro que segura o barranco, um estêncil avisa aos navegantes: “Aqui tem uma nascente”. Sob os nossos pés, o nascimento: águas do Saracura estão brotando. Procure um dos dois bueiros na ruela e se aproxime para ouvir o córrego passando por baixo de você. 

Monumento à barbárie

Saindo da ruela em direção à descida da Rua Rocha, observe do seu lado esquerdo o edifício Ascent Paulista Select (o nome é uma infeliz coincidência). Repleto de studios de 18 a 36 metros quadrados, com coworking, espaço fitness, room para delivery e espremido como um grande lego entre a rua e o prédio ao lado, ele não deveria sequer existir. Isso porque está sobre a Grota do Bexiga que, assim como o bairro em si, deveria ser patrimônio tombado. Sua construção foi aprovada pela Conpresp em janeiro de 2021 – plena pandemia de Covid-19 – junto a outro empreendimento imobiliário na Rua Almirante Leão. Os moradores do Bexiga se manifestaram; eles temem o apagamento, não apenas ambiental e histórico, mas também material – de suas próprias casas – pela especulação imobiliária.

Seguimos o curso do córrego pela Rua Rocha. Logo em seu início estende-se um grande terreno verde e murado, também parte da Grota do Bexiga. Em 2023, após mais de dois anos de luta, o Conpresp finalmente aceitou o recurso feito pelo coletivo Salve Saracura para barrar uma construção aqui.

Ler, tomar um café

Nossa rota desce toda a extensão da Rua Rocha. O caminho é cheio de terrenos planos, lava-jatos, estacionamentos, até começarem os prédios antigos e as casinhas charmosas que caracterizam o bairro. No número 416, onde antes ficava o Mercadinho do Toninho, está o Mercadinho Simples – um filho da Livraria Simples, localizada mais à frente. Lá temos café e um sebo com paredes altas, cheias de livros. O mesmo ambiente hospeda vários tipos de eventos, de saraus a shows, de seminários a lançamentos, rodas de samba e exibição de filmes projetados em uma tela pendurada no teto (que, na verdade, é a versão upcycled do teto de um carro). Mais para a frente, avistamos um display de madeira, debaixo do toldo de uma casa, exibindo uma seleção de livros. A Livraria Simples oferece todos os títulos que você encontraria em uma livraria e outros que você não encontraria, com sessões divididas em cada ambiente. E que ambiente. Com quintal, lugares para sentar enquanto folheia páginas, uma cozinha que cheira ao café delicioso servido lá e, se você estiver com sorte, a companhia de um gatinho preto, o Toninho.

Sítio arqueológico

Ao fim da Rua Rocha, chegamos na Praça 14-Bis, onde antes ficava o Vale do Saracura. A julgar pela quantidade de obras destinadas à futura estação do metrô, não parecemos interessados no passado. No entanto, o passado resiste: é aqui que as escavações da Linha Laranja do metrô “encontraram” o sítio arqueológico do Quilombo Saracura, um dos principais quilombos da capital paulista. “Encontraram” porque o Iphan autorizou a empreiteira a dispensar os estudos arqueológicos antes de cavar. Foram escavadas centenas de objetos da vida quilombola, como louças e vestimentas. 

Nesse quarteirão ficava também a Quadra da Vai-Vai, apontada em 2014 pelo mesmo Iphan como de possível interesse histórico e cultural. A escola de samba, indissociável da história do Bexiga, teve de se mudar para que o metrô viesse. Como resultado, está há mais de dois anos sem espaço.

A indignação com esses desterros físicos e simbólicos organizou-se na Mobilização Estação Saracura/Vai-Vai. Sua principal exigência não é contra o acesso ao metrô, mas contra o apagamento do passado negro do Bexiga.

Tudo de subterrâneo

Aqui, seguimos pela Avenida 9 de Julho, pelo lado direito, em direção ao Vale do Anhangabaú. No caminho, um aviso branco pichado sobre uma parede preta nos diz: “OUÇA O RIO”, antes de atravessarmos a rua. É ali, na Rua Delegado Everton com a 9 de Julho, que podemos escutar o Saracura mais uma vez. É ali que, pela primeira vez, podemos assisti-lo passar sob os nossos pés, espiando através de uma longa grade no meio da rua. 

Passamos por baixo de um sem-número de viadutos. Uma floricultura enorme usa o viaduto Júlio de Mesquita Filho como teto; ao entrar, o pé-direito gigante e crescente e as luzes brancas sobre as flores geram uma sensação insólita.

Um mundo dentro do nosso

Depois do Viaduto Martinho Prado, vamos sair da avenida para chegar na Rua Álvaro de Carvalho, número 427. É a entrada da Ocupação 9 de Julho. Aos domingos, a cozinha da ocupação serve almoço para financiar sua luta e para produzir quentinhas distribuídas pela cidade junto ao Movimento MSTC e a Casa Verbo. Na ocasião da produção deste guia, provei iscas de pirarucu com arroz, vinagrete de feijão manteiguinha e farofa, bem servidos em um pratinho de ágata. Comi as delícias observando as janelas do refeitório compartilhado interno, revestidas com transparências coloridas de fotos ampliadas de palmas de mão. A instalação é uma de muitas espalhadas pelo espaço, algumas feitas pelas crianças durante a Oficina de Arte Ocupa. Levei meu pratinho para devolver na bacia de louça suja (ninguém aqui é sua mãe!), e parei para tomar um café no Café do Jorge, instalado na marcenaria. Jorge passa os cafés individualmente, enquanto seus gestos são copiados com precisão pela pintura pendurada acima de sua cabeça. Com meu café, passei nos corredores pela galeria de arte Reocupa e pela loja do MSTC, que ficam dentro do edifício. Saí para o pátio e assisti a um sem-número de coisas notáveis acontecendo: pessoas cortando cabelo em um espaço de cabeleireiro improvisado, onde também havia uma tevê que exibia um jogo do Corinthians, animando vários dos presentes; há o refeitório externo dentro do esqueleto estrutural do que era um grande galpão; há garrafões de água mineral sendo levados e trazidos para todos beberem gratuitamente; há pinturas coloridas em todas as paredes; há música, crianças, cachorros, horta e arte. Na Ocupação há muito de tudo, uma generosidade tremenda, um mundo melhor que o de fora.

O que é uma Saracura?

É uma ave pernalta que habita rios, mangues e pântanos, de nome tupi: sara’kura. Um rio que habita o solo, que liga o espaço físico, histórico e político em seu caminho. Seguimos sua rota até o Vale do Anhangabaú, onde sua água se une ao Ribeirão do Itororó e o Córrego Bexiga. Nasce aqui o Ribeirão Anhangabaú. Seu nome vem do tupi anhanga, diabo, um rio assombrado ou amaldiçoado, de água salobra. A sua rota, até o Rio Tamanduateí, terá de ficar para outro dia.


PARADAS

1 Nascente do Saracura
2 Área preservada da Grota do Bixiga
3 Mercadinho Simples
4 Livraria Simples
5 Praça 14-Bis em obras e antiga quadra da Vai-Vai
6 Ouça o rio aqui
7 Ocupação 9 de Julho

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