Amazônia: Uma Residência Editorial expande as possibilidades da seLecT, enquanto espaço de criação artística. Na seLecT #44, nos dedicamos a analisar e mapear o fenômeno das residências artísticas no Brasil e internacionalmente. Se não existe um modelo definido do que é ou não uma residência, a pesquisa para a produção da edição deixou claro que, mais do que ocupar um espaço ou simplesmente mudar de cidade, a experiência focada em reflexão e interlocução é central a essa prática. Outra condição implícita é o favorecimento de um deslocamento das ideias. Para isso, a residência prevê a criação de uma infraestrutura mínima, a fim de que artistas, curadores e equipes possam trabalhar e pensar juntos sobre seus percursos, escapando à demanda de produtividade que assola o meio artístico.
Então, nos ocorreu: e se a revista fosse o espaço a ser habitado pelos artistas? É certo que o projeto editorial da seLecT prevê, desde o início de sua atuação, em 2011, o convite a artistas intervirem em suas páginas, lidando com a materialidade da revista e suas formas de circulação. Isso implica que também sejam agentes no contexto editorial e não apenas temas de matérias ou objetos de reflexão. Os formatos dessas ações já incluíram edições de múltiplos numerados e uma seção intitulada Projeto de Artista, que acolhe intervenções na forma de instruções, pôsteres e outras proposições nas páginas e redes sociais da revista.
Mas, e se as ferramentas utilizadas pela própria Redação pudessem ser incorporadas nas práticas dos artistas? E se a residência fosse um espaço virtual compartilhado, comum, de reflexão a partir das demandas dos agentes envolvidos? Essas foram algumas das perguntas que nortearam a elaboração e a implementação do projeto Amazônia: Uma Residência Editorial.
A primeira condição para que ele se acoplasse aos processos editoriais da revista foi vinculá-lo ao atual escopo temático de pesquisa. Em 2021, dedicamos nossas quatro edições trimestrais às florestas e às narrativas afro-indígenas amazônicas. O caminho foi, então, situar conceitualmente a residência nesse território, inclusive pelas limitações dos deslocamentos físicos, devido à pandemia. A colaboração com a Fundação Suíça para a Cultura Pro Helvetia, que há cinco anos atua na América do Sul com um programa de fomento a intercâmbios culturais, foi decisiva para colocar o projeto de pé. Dois focos nos aproximam: o interesse nas relações entre arte, ciência e tecnologia; e em viagens de pesquisa e projetos de residência artística.
Em entrevista à seLecT, em dezembro de 2020, María Angélica Vial Solar, diretora da Pro Helvetia South America, apontou a importância do apoio às etapas iniciais de um processo artístico. “Quando um artista é capaz de explorar um tema e dialogar com um contexto específico sobre ele, para um projeto, são momentos de troca criativa, cultural e social que permitem ampliar uma percepção factual sobre o tema a ser investigado”, diz.
Criar condições para a abertura de diálogos remotos com o contexto da Floresta Amazônica foi o principal foco do programa criado para a residência editorial, que teve início em 5 de julho e se desdobrou até outubro. Após cinco meses de investigação sobre artistas brasileiros e suíços envolvidos com diferentes aspectos das florestas, convidamos para a experiência o brasileiro Denilson Baniwa, natural do Rio Negro, Amazonas, o suíço-brasileiro Guerreiro do Divino Amor e a basca-suíça Vanessa Lorenzo. Os três têm relações diretas ou indiretas com o campo de pesquisa proposto, que apresentaram em uma série de vídeos que compõem o projeto: Baniwa tem uma prática artística ativista pelas causas indígenas; Lorenzo define-se como biohacker e transita pelos fluxos comunicacionais entre natureza e tecnologia, e Divino Amor, em seus projetos de “superficções”, utiliza a revista como uma das formas centrais de circulação de seu trabalho.
Realizado completamente on-line e tendo como ferramentas as estruturas da seLecT – o que inclui materiais publicados no site, na edição digital, nas redes sociais e, principalmente, os processos de pesquisa, reflexão e discussão coletivas que uma revista implica –, o projeto foi marcado por diálogos com especialistas, acompanhamento crítico de suas pesquisas, e apresentação de estágios de suas reflexões. Não se tratou aqui da mera publicação de processos, mas, a partir do debate entre equipe curatorial, artistas e convidados, de encontrar formas inventivas de tornar suas investigações públicas dentro das estruturas da revista, fosse pela reiteração, fosse pela subversão desses códigos.
Arte, ciência e jornalismo cultural
Na primeira etapa do programa, promovemos uma entrevista coletiva com os arqueólogos Eduardo Neves e Jennifer Watling, pesquisadores ligados ao Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo. Ambos trabalham sobre a hipótese, baseada em uma investigação interdisciplinar que envolve arqueologia, antropologia e história, de que a Floresta Amazônica é resultado de interações entre as populações locais e a natureza, ou seja, uma construção antropogênica. O encontro também abriu a possibilidade de os artistas darem continuidade a contatos e trocas com os cientistas, além de colaborações e apresentações de suas pesquisas para o público da revista, como no texto Heranças Bioculturais, no qual Watling argumenta sobre suas hipóteses.
Baniwa, Divino Amor e Lorenzo também marcaram presença na reunião de pauta inaugural da edição #52 da seLecT, dedicada aos ecofeminismos, quando puderam acompanhar e participar das conversas, análises e decisões coletivas a respeito dos temas abordados na edição, bem como suas possíveis formas de materialização e circulação.
A partir da discussão das linhas gerais da edição, Lorenzo encontrou afinidades entre a pauta ecofeminista e seu projeto de pesquisa Mari Mutare. Inspirado pelas diversas mitologias nórdicas a respeito do Greenman, híbrido entre humano e planta, a artista criou uma personagem que se desdobra em textos, imagens e filtros para as redes sociais, que misturam tecnologia e discussões biológicas na criação de seres híbridos. Além da publicação de um texto que apresenta essa experiência no contexto da residência como desdobramento de encontros e conversas, Lorenzo também usa as redes sociais da revista para amplificar a circulação de seus filtros.
Divino Amor identificou-se com a linguagem das planilhas e infográficos da seção Mundo Codificado, trabalhando no mapeamento e catalogação de dados a respeito das relações entre a Amazônia e a Suíça no quesito alimentação. Formado por verbetes elaborados pelo artista a partir de suas pesquisas e imagens apropriadas da internet, o trabalho publicado é um ponto de partida dessa investigação. Se as Superficções são verdadeiras cosmogonias dos contextos abordados pelo artista, sua experiência na residência tem foco em um dos aspectos do problema. Embora apresente dados concretos de fluxos econômicos e usos ideológicos da extração e produção de alimentos, seu mapeamento tem o mesmo tom ficcional dos trabalhos anteriores, escancarando uma realidade absurda.
Já Baniwa propôs integrar o ciclo editorial ecofeminista realizando uma série de entrevistas com mulheres indígenas ativistas e artistas. O projeto de conversas surge de sua investigação sobre a Paxiúba, árvore presente no Rio Negro e em todo o estado do Amazonas, que tem as raízes para fora da terra e é capaz de mudar de lugar. “É capaz de um trânsito que desafia tudo o que as pessoas entendem sobre árvores”, diz Baniwa. Para ele, a Paxiúba, que a história Baniwa diz o fêmur de um dos criadores daquele povo, é também uma metáfora do deslocamento de pessoas indígenas.
O projeto de Denilson Baniwa começa, então, pela pesquisa da árvore desde um ponto de vista botânico e avança em entrevistas com pessoas indígenas que precisaram se deslocar, buscando entender as circunstâncias que levaram a esses trânsitos. Entre elas, lideranças, artistas e descendentes de mártires da disputa territorial do Brasil.
As três primeiras são Eliane Potiguara, Renata Tupinambá e Maial Paikan.
Essas conversas retomam a prática do artista nos campos da comunicação e lidam com as possibilidades de alcance da revista para promover o debate sobre pautas urgentes da sociedade. Os vídeos estão publicados na íntegra nos canais da seLecT e um podcast, com edição do artista e do músico Meno Del Picchia, será veiculado na Rádio ceLesTe, criando diálogos indiretos entre essas importantes vozes.
Diante das severas limitações impostas pela pandemia da Covid-19 à cultura, ao longo de 2020 e 2021, o projeto de residência editorial mostrou-se um espaço de criação e diálogo continuado em tempo de crise. A experiência nos mostra que há um processo formador na exposição das estruturas de uma revista, que pode ser utilizado pelos artistas em projetos específicos, mas com reverberações em suas produções como um todo. Foi surpreendente observar como as discussões de pauta, os formatos das seções e as possibilidades de interação com o público foram apropriados por eles, com o intuito de expandir e reverberar ideias que muito provavelmente não encontrariam o mesmo alcance em outros contextos.
O processo nos mostra que Amazônia é a primeira de muitas residências editoriais, pois, além do potencial de convívio entre artistas, pesquisadores, jornalistas, curadores e outros agentes do campo artístico e editorial, essa troca trouxe um elemento fundamental para qualquer processo de criação: a indeterminação. Os encontros inesperados possibilitaram acessar informações que não eram óbvias nem explícitas e criar diálogos que existiam em potência.
Além de uma prática fundamentada em pesquisa, o contexto de uma revista também tem um caráter de convivência, construção coletiva, busca, organização e verificação de informação que podem ter reverberações significativas na prática artística que nos interessam aqui: aquelas em que a ficção mostra os limites e as potências da realidade, em uma relação indissociável entre experimentação de linguagem e intervenção social. Alinhada com as necessidades do mundo contemporâneo, a residência no contexto editorial enfatiza a prática artística como investigação de seus objetos, temas e de seus próprios meios, tensionando também os limites entre arte e comunicação. Afinal, habitar a revista é fundamentalmente uma implicação na esfera pública e coletiva, desde o momento da criação até a comunicação com o leitor.