Um dos segredos do fascínio que as listas provocam é sua ambivalência. Elas, aprendemos com Umberto Eco, oscilam o tempo todo entre a abertura para um infinito et cetera e um mundo que se fecha em si mesmo. Impossível não pensar nisso ao visitar a retrospectiva de Jac Leirner, em exposição na Estação Pinacoteca do Estado de São Paulo.
O conjunto de 60 obras, realizado entre 1980 e 2011, é uma sequência de projetos que reorganiza, metódica e delirantemente, elementos do cotidiano. Para criar, a um só tempo, um universo próprio e um jogo que poderia não terminar jamais.
As obras são construídas com cartões de visita, cobertores, saquinhos de vômito e cinzeiros de avião, etiquetas de preço de maços de cigarro, cédulas de dinheiro, sacolas plásticas de lojas, adesivos, rolos de Durex, coleções de todos os portes, cores e formas. No conjunto, constituem uma enciclopédia do século 20, cuja única variável constante parece ser a sua capacidade de “perturbar todas as familiaridades do pensamento”, como escreveu o filósofo Michel Foucault no prefácio de As Palavras e as Coisas.
Foucault comentava aí um texto de Borges, em que ele discorre sobre uma enciclopédia chinesa que assim enumerava a divisão dos animais: “a) Pertencentes ao imperador; b) Embalsamados; c) Domesticados; d) Leitões; e) Sereias; f) Fabulosos; g) Cães em liberdade; h) Incluídos na presente classificação; i) Que se agitam como loucos; j) Inumeráveis; k) Desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo; l) Et cetera; m) Que acabam de quebrar a bilha; n) Que de longe parecem moscas”.
Essa ordem, que paradoxalmente desordena as certezas, é o que as obras de Jac Leirner põem em circulação. Mais do que desfazer a lógica das sintaxes previsíveis, o conjunto em exposição brinca com as nossas referências mais sutis e também arraigadas. Desfaz a relação entre valor e perenidade, por operações de inversão que transformam o transitório (como o anonimato das frases escritas em notas de 100 cruzados) em monumento: o Livro (dos Cem), de 1987. E o próprio dinheiro é transformado em objeto descartável.
Leirner problematiza, como assinala o curador da exposição, Moacir dos Anjos, “os padrões formais estabelecidos pelo racionalismo nos movimentos artísticos (arte concreta e minimalismo)”, e se institui como referência da arte que inquieta porque nos impede, como as heterotopias de Foucault, de nomear “isso e aquilo”.