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As Dez Maiores, nº1, Infância, Grupo IV (1907), primeira de série de pinturas abstratas que propõe estudo visual das idades do homem, vistas sob uma perspectiva espiritual (Foto: Jerry Hartman-Jones/ Cortesia Serpentine Gallery, Londres)
Postado em 24/10/2016 - 12:37
Hilma af Klint: Traços do infinito
A artista sueca, considerada hoje a pioneira da abstração, determinou que sua obra fosse tornada pública somente 20 anos após sua morte. Acreditava que o mundo não estava pronto para compreender o significado de suas visões
Jennifer Higgie

Em 1907, a artista sueca Hilma af Klint estendeu uma folha de papel de 3 metros no chão de seu ateliê, em Estocolmo, e começou a primeira de uma série de pinturas abstratas. O resultado foi uma série de obras enormes, de uma beleza estonteante, feitas em guache e aquarela, que ela terminou em um ano. Intituladas As Dez Maiores, eram um estudo visual das quatro idades do homem sob uma perspectiva espiritual. A primeira da série, As Dez Maiores, nº 1, Infância, Grupo IV, é alegre como um dia ensolarado: flores estáticas flutuam entre palavras intraduzíveis como “oo” ou “Vestalasket”, que despencam pela parte inferior da imagem como notas graves psicodélicas; cores rosadas em tons desérticos cortam velozes um fundo de céu azul-escuro. Em As Dez Maiores, nº 2, Infância, Grupo IV, uma enorme bola amarela cruza com outra idêntica, azul-escura, e floresce em um verde vivo, enquanto espirais eufóricas ameaçam se dissolver em um delirante afresco azul-claro. Em As Dez Maiores, nº 6, Idade Adulta, Grupo IV, palavras inventadas e estranhas formas de letras se espalham loucamente pelo fundo rosa pedregoso, como uma algaravia de grafite cósmico. Em As Dez Maiores, nº 9, Velhice, Grupo IV, os detalhes se dissolveram; o infinito é sugerido em uma extensão cósmica, onírica – um nada delicado, sem contornos.

as Dez maiores, nº2, Infância, Grupo IV (1907), representação da primeira idade do homem na forma de esferas e espirais eufóricas (Foto: Jerry Hartman-Jones/ Cortesia Serpentine Gallery, Londres)
as Dez maiores, nº2, Infância, Grupo IV (1907), representação da primeira idade do homem na forma de esferas e espirais eufóricas (Foto: Jerry Hartman-Jones/ Cortesia Serpentine Gallery, Londres)

Hilma af Klint – Uma Pioneira da Abstração é, sem dúvida, uma das exposições mais extraordinárias que já vi. Ela  viajou para a Hamburger Bahnhof – Museum für Gegenwart, em Berlim, em junho 2013, e para o Museo Picasso Málaga, na Espanha, em outubro de 2013. Com curadoria de Iris Müller-Westerman, a mostra inclui cerca de 130 pinturas e cem obras em papel, muitas das quais foram expostas pela primeira vez desde a morte da artista, em 1944, aos 81 anos. Obras abstratas puramente minimalistas – por exemplo, a série Parsifal, de 1916 – se alternam com pinturas mais declaradamente celestiais e até figurativas – cisnes, pombos e corpos se misturam em uma celebração alucinógena de erotismo e espiritualidade; uma sala preta com as três enormes Peças de Altar, de 1915, que Af Klint desenhou para um templo ainda não construído, equiparam-se à obra tardia de Mark Rothko. A surpreendentemente delicada e detalhada série Árvore da Sabedoria, também de 1915, inaugura os desenhos botânicos obsessivos de Af Klint, como as refinadas Violetas Floridas com Diretrizes, da Série 1 (1919) ou Cevada: Um Trabalho sobre Cereais, de 1920. Seu trabalho posterior inclui os “mapas”, que apareceram em 1932 como premonições da guerra que envolveria o mundo. Em Um Mapa: Grã-Bretanha (1932), por exemplo, uma cabeça posicionada sobre a Europa desfere chamas escuras em direção ao Reino Unido.

As Dez Maiores, nª6, Idade Adulta, Grupo IV (1907) (Foto: Jerry Hartman-Jones/ Cortesia Serpentine Gallery, Londres)
As Dez Maiores, nª6, Idade Adulta, Grupo IV (1907) (Foto: Jerry Hartman-Jones/ Cortesia Serpentine Gallery, Londres)

Escrita automática
Af Klint nasceu em 1862. Em 1879, ela começou a participar de sessões mediúnicas e, em 1880, sua irmã morreu, tragédia que estimulou o interesse da artista por religião e espiritualidade. Em 1896, entretanto, Af Klint, que havia sido uma aluna aplicada da Academia Real de Belas Artes, em Estocolmo, decidiu rejeitar a representação da realidade externa em suas pinturas e começou a praticar escrita automática, ou psicografia – aproximadamente, 30 anos antes dos surrealistas. Ela se envolveu estreitamente com um grupo de quatro mulheres, todas interessadas em espiritualidade, escrita automática e desenho, que foram influenciadas pela teosofia e os ensinamentos de Rudolf Steiner. Elas chamavam a si mesmas de “As Cinco” e continuaram a se reunir pelo resto de suas vidas. Em 1904, durante uma sessão espiritualista, Af Klint soube por um guia espírita, Amaliel, que havia sido “comissionada” para fazer pinturas no plano astral. Entre 1906 e 1908, pintou as primeiras 111 obras que compreendiam o início da série As Pinturas do Templo. Parou durante quatro anos para cuidar da mãe, antes de criar mais 82 pinturas entre 1912 e 1915, assim completando a encomenda. No abrangente catálogo da exposição, Müller-Westerman cita Af Klint descrevendo seu processo de trabalho: “As pinturas foram feitas diretamente através de mim, sem qualquer desenho preliminar e com grande força. Eu não tinha ideia do que as pinturas deveriam representar; entretanto, trabalhei com rapidez e segurança, sem jamais modificar uma única pincelada”.

Fontes espirituais
A história da vida e obra de Hilma af Klint não é simplesmente a descrição de uma mulher extraordinária, mas um estudo sobre como foi escrita a história da arte tradicional: a grosso modo, um reflexo do mercado, visto por homens. Em 1970, Pontus Hultén, então diretor do Moderna Museet, recebeu a oferta de todo o espólio de Af Klint, mas o recusou, aparentemente rejeitando sua obra por causa da relação com o espiritualismo. De modo semelhante, a artista não teve sequer uma nota de rodapé na recente exposição no MoMA-NY Inventando a Abstração, 1910-1925. A curadora da mostra, Leah Dickerman, justificou a exclusão da artista por não estar convencida de que suas pinturas sejam arte. Isso é absurdo. Af Klint estudou em uma escola de arte e esteve profundamente envolvida nas discussões artísticas da época. É difícil não pensar que ela foi excluída por causa de seu espiritualismo e pelo fato de que suas obras não estão em grandes coleções: em seu testamento, Af Klint estipulou que elas não poderiam ser vendidas, embora obras individuais possam ser liberadas para apoiar a manutenção da coleção, e somente para uma instituição (isso ainda não aconteceu). Mas Kandinsky, Mondrian e Malevich, todos astros da exposição no MoMA – e, deve-se notar, parte de sua coleção –, beberam profundamente das mesmas fontes espirituais que Af Klint. (Cabe aqui uma citação de Kandinsky em Sobre o Espiritual na Arte, de 1911: “A verdadeira obra de arte nasce do artista – uma criação misteriosa, enigmática e mística”.) No entanto, felizmente, houve curadores que apoiaram a obra de Af Klint: em 1983, no Museu de Arte do Condado de Los Angeles, o curador Maurice Tuchman incluiu 16 de suas pinturas na notável exposição O Espiritual na Arte. E, em 2006, o Camden Art Centre de Londres realizou a primeira exposição de suas obras no Reino Unido, intitulada Um Átomo no Universo.

Em 1944, Af Klint morreu após uma queda (curiosamente, foi o mesmo ano da morte de Mondrian, Malevich e Kandinsky). Em seu testamento, ela deixou mais de mil pinturas, aquarelas e desenhos, e 27 mil páginas de cadernos – que o Moderna Museet está digitalizando – para seu sobrinho, Erik af Klint. Hoje, o legado é propriedade de uma fundação dirigida por sua família. Ela também estipulou que sua obra só deveria ser mostrada ao público 20 anos após sua morte. Acreditava que o mundo não estava pronto para compreender o significado de suas visões. Esperamos que agora esteja.


Tradução Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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