É quinta de manhã e chove no Recife. Ontem, 13 de março, foram celebrados os 58 anos do nascimento de Chico Science. Todo ano, religiosamente, a cidade chora um pouco a sua perda, causada por um trágico acidente de carro. Isso porque ele é considerado o maior rockstar destas terras molhadas de mangue, de raízes expressivas, de guaiamuns gigantes.
O movimento que ele liderou mudou a perspectiva da cidade em relação às suas manifestações culturais tradicionais: o coco, o maracatu de baque solto, o maracatu de baque virado, a ciranda, o cavalo-marinho, o caboclinho, o repente. Tudo que hoje dá identidade a Pernambuco estava no ostracismo, e o rock ou o hip-hop não se misturavam com nenhum desses ritmos, etnias. Recife havia sido eleita a quarta pior cidade do mundo para se morar e, nesse cenário, a autoestima, o tesão e a consciência política expressos pelo manguebit foram incorporados a ponto de mudar não só a cultura, mas também a economia da cidade.
Da Lama ao Caos, disco de estreia da banda Chico Science & Nação Zumbi, está completando 30 anos em 2024 e, recentemente, foi eleito o melhor álbum de música brasileira dos últimos 40 anos, em votação promovida pelo jornal O Globo (2022). O álbum também figura no 13º lugar da lista dos 100 Maiores Discos da Música Brasileira da Rolling Stone Brasil (2007).
Reconhecimentos da crítica à parte, há um quê de afetividade para com a figura de Chico que o vê como um herói, um porta-voz, um rockstar, um malungo [1], que inunda sua memória num (compreensivo) desejo melancólico de o retornar à vida.
E assim ele foi o homenageado do Carnaval do Recife neste ano, juntamente com Lia de Itamaracá, que completa 80 anos. Porém, a homenagem a Chico Science, póstuma, vem como uma tentativa de resolver a sua ausência, tomando a forma de uma projeção holográfica do músico performando A Praieira, uma de suas músicas mais icônicas, por meio de Inteligência Artificial.
Minutos após a apresentação virtual, Roger de Renor, importante articulador cultural desde o movimento Mangue e imortalizado na música Macô, comentou no palco: “Muito bom estar vivendo este carnaval do futuro, no tempo de Louise, que representa todos vocês e todas vocês”. Louise França, 33 anos, filha de Chico, se apresentaria logo em seguida no mesmo palco.
Eu me pego pensando no que seria esse carnaval do futuro mencionado por Roger. O futuro é o presente, em relação aos anos 1990, e o que o configura como tal, aqui, é o uso da Inteligência Artificial?
Em 2012, no Coachella, Snoop Dogg dividiu o palco com o holograma do seu parceiro de cena e grande amigo Tupac Shakur, o 2pac. O investimento de centenas de milhares de dólares impressiona até hoje pelo realismo do virtualismo empenhado. No ano passado, o pioneiro do synth-pop, Ryuichi Sakamoto, morreu de um câncer diagnosticado em 2021. Nesse meio-tempo, desenvolveu, juntamente com o estúdio de realidade mista (mixed reality) Tin Drum, um espetáculo para ser apresentado e experienciado após a sua morte. O espetáculo chama-se KAGAMI (espelho), e trata de “um concerto em realidade mista” em que o público usa “dispositivos ópticos transparentes para ver o Sakamoto virtual tocando piano ao lado de arte dimensional alinhada com a música”. Foi lançado poucos meses após a sua morte, em Nova York. Em um texto no site do evento, o artista afirma:
Aí está, em realidade, um eu virtual.
Este eu virtual não envelhecerá e continuará a tocar piano por anos, décadas, séculos.
Haverá humanos então?
As lulas que conquistarão a Terra depois da humanidade me ouvirão?
O que serão os pianos para elas?
E a música?
Haverá empatia aí?
Empatia que se estende por centenas de milhares de anos.
Ah, mas as baterias não durarão tanto. [2]
Em 1977, a multiartista Laurie Anderson também desenvolveu um holograma de si mesma. O trabalho chama-se At the Shrink’s (A Fake Hologram) e consiste numa projeção do corpo da artista sentado em uma cadeira, narrando a experiência de ir a um psiquiatra que via as coisas de um ângulo totalmente diferente do dela. Com um quê de ironia e metalinguagem, sua imagem desaparece no final.
Laurie Anderson sempre experimentou diferentes tecnologias, e hoje trabalha em uma série criada a partir da geração, com Inteligência Artificial, de textos do músico Lou Reed, seu marido, morto em 2013. Essas composições foram compiladas numa exposição chamada I’ll Be Your Mirror (Eu Serei o Seu Espelho), em fevereiro deste ano, num processo no qual ela afirma estar “tristemente viciada” em reviver falas do companheiro com o chatbot, com um tom misto de interesse e deboche.
Neste trabalho, os dois, Anderson em vida e Reed em pós-vida?, assinam a autoria do projeto.
APAGAMENTO VIRALATISTA
O vazio. “Agora eu sou uma imagem virtual. Você pensa que está me vendo, mas eu não estou aqui”, diz Chico Science em frente a uma parede onde se lê Virtual Reality, em algum vídeo dos anos 1990.
Não vou entrar num debate ético sobre a reprodução virtual de alguém morto por meio da técnica do deep fake. Recentemente, no Brasil, esse debate foi disparado quando a Volkswagen lançou uma publicidade que trazia Elis Regina cantando com a filha, Maria Rita. A campanha estreou em junho de 2023 e tem mais de 33 milhões de visualizações no YouTube. Muita gente se emociona com Elis cantando hoje, mesmo que sob o corpo de uma atriz e graças a uma tecnologia que se autodesenvolve a cada dia (através do chamado aprendizado de máquina, o machine learning), reproduzindo seu rosto. É inegável como essa técnica pode nos afetar emocionalmente. Mas quero questionar o que estamos perdendo quando investimos energia, sonhos e dinheiro para reviver virtualmente um astro da música que não está mais aqui.
Pois parece haver uma canonização do ídolo que petrifica o curso dos movimentos. E a música brasileira (leia-se a crítica, as rádios e o mainstream) é especialista em estagnar suas referências e deixar passar o rio sem que se aperceba o fluxo, numa lógica de apagamento cruel e viralatista, dependente da crítica internacional para valorizar quem sempre esteve aqui.
Desenvolver um projeto de deep fake e ou de holograma, como o que fez reviver Chico Science, Elis Regina, Ryuichi Sakamoto ou 2pac requer a contratação de um ator/atriz, estúdio, ensaio, produtora especializada e, claro, muito dinheiro. Mas e os artistas que estão fazendo história, hoje, aqui e agora?
Por aqui temos o Grupo Bongar, de Olinda, que são verdadeiros rockstars ao vivo, com gravações em estúdio marcantes (em seus mais de 18 anos de carreira, são cinco álbuns, incluindo um produzido pelo maestro baiano Letieres Leite, da Orquestra Rumpilezz, falecido em 2021), e que apresentam composições de um coco de roda jovem e autoral desenvolvido na comunidade da Xambá, o primeiro quilombo urbano de Pernambuco e o terceiro do Brasil.
Ou como não falar de Maciel Salú, rabequeiro, caboclo de lança do Maracatu de Baque Solto Piaba de Ouro, filho de Mestre Salustiano, também reverenciado por uma das canções de Da Lama ao Caos (Salustiano Song), que carrega trabalho autoral com parcerias como Lucas dos Prazeres, outro importante nome da música contemporânea pernambucana?
Sem contar Amaro Freitas, grande promessa do ano, pianista que segue as tradições de Naná Vasconcelos e Hermeto Pascoal com técnica no piano inaugurada por John Cage. Lançou seu quarto álbum (Y’Y’) em março deste ano com estreia em Nova York e turnê marcada em sete países europeus.
Nenhum desses que mencionei, apesar de todos fazerem a cena cultural acontecer, cotidianamente, na cidade e nas suas comunidades, está nas rádios, ou no cotidiano da classe média, que, em sua preguiça intelectual, segue ouvindo as composições de Alceu Valença de 30 anos atrás, sendo esta a sua referência de música atual pernambucana.
SERTÃO TRAVA DA PESTE
Claro que temos o brega, o brega funk, como a verdadeira cena eletrônica pulsante das periferias do Recife hoje, e seu ritmo, dança e poder de mobilização têm mudado o mercado mundial da música, muito por sua capacidade de viralização através de danças de TikTok (como ignorar que Cardi B e Megan Thee Stallion samplearam seu passinho em WAP, música com mais de 1 bilhão de streamings no Spotify?, ou a nova música da cantora de reggaeton Bad Gyal com Anitta, Bota Niña, que é um brega funk, já sendo chamado de breggaeton?). Mas essa cena também decorre de um trabalho de base e insistência em produzir, samplear, investir e movimentar localmente.
Parabéns ao brega funk, autônomo, independente de qualquer gravadora ou emissora, que segue, como o funk carioca ou paulista, movimentando toda uma cadeia de músicos, produtores, artistas e grandes eventos.
E como não mencionar o trabalho de Renna Costa e toda a sua proposição estética a partir de um sertão trava da peste, em música, som, figurino, vídeo, performance de palco, presença, enfim. Talento, proposição e inovação estética é o que não falta em muitas artistas que, assim como nos anos 1990, não estão nas rádios nem contratadas de gravadoras.
Voltamos àquela mesma lama e caos, porém com a ilusão da hiperconectividade?
O QUE O MANGUEBIT TENTOU NOS DIZER
Estudando para escrever este texto, deparei-me com uma questão que nunca havia percebido. Há duas grafias para descrever o movimento Mangue: Manguebeat e MangueBit.
O manguebeat foi o termo dado pela imprensa para descrever o movimento musical que misturava groove, dub, hip-hop e punk com maracatu, coco, baião e ciranda. Talvez seguindo a tradição do termo afrobeat, foi uma solução rápida e inteligente, e uma interpretação de como o movimento se autointitulava: apenas como Mangue, ou MangueBit.
O Bit vinha, na verdade, da menor partícula de informação digital, o bit, abreviação de binary digit, dígito binário, o fundamento da ciência da computação.
Ora, era início dos anos 1990 e o digital e a internet eram uma utopia que começava a tomar forma. Ainda se ouvia apenas o que se conseguia achar ou comprar em disco, CD e fita cassete. Lia-se sobre música em revistas. E a MTV era o canal onde tudo se encontrava – com todos os seus imperialismos e limitações.
O Mangue tem como característica o constante interesse pelo universo tecnológico como forma de mudança, como instrumento de transformação, portanto, a classificação mais apropriada a essa cena cultural é a grafia MangueBit, pois “batidas envelhecem, os bits rejuvenescem a cada dia” (Hilton Lacerda).
Nessa última frase, de Chico Science, pode-se perceber como o movimento sempre teve a intenção de espalhar ideias políticas, e que a música sempre esteve ligada a uma movimentação cultural que envolvia moda, cinema, artes visuais e outras linguagens. O Bit, a informação, era mais importante do que o Beat, a batida, sozinha.
CONTRACULTURA CABOCLA
Outra particularidade do movimento foi, como afirma Rejane Sá Markman, ser uma “contracultura versão cabocla”. Por que é importante falar disso? Para além da imagem do Caboclo de Lança ser exaltada pelo movimento (Chico chegou a se apresentar com essa vestimenta tradicional na introdução do icônico show realizado no Central Park Summerstage, em Nova York, em 1995), o Mangue também falava da miscigenação entre a negritude e a natividade originária, as populações indígenas, cobocladas, nas periferias do Recife, Olinda, Jaboatão, Zona da Mata, Sertão.
Atrevo-me a dizer que não há cultura popular em Pernambuco em que essas populações não se aldearam e aquilombaram simultaneamente. E é isso que também diferencia em tantas camadas essa cena do que acontecia, por exemplo, na sempre efervescente musicalmente Salvador.
O grupo afro Lamento Negro, formado no centro cultural Daruê Malungo, e que depois seria incorporado ao Nação Zumbi, era uma banda percussiva que surgira inspirada no Olodum, e tocava afoxés e samba-reggaes. Só posteriormente o grupo passa a substituir os atabaques pelas alfaias do maracatu. O Olodum fazia história e influenciava negritudes Brasil afora, e essa música baiana predominava no Recife, inclusive nas programações oficiais do carnaval da cidade. Banda Eva, Chiclete com Banana e Timbalada dominavam o mercado e as rádios.
DJ Dolores comenta, ao contar do desenvolvimento da capa do álbum Da Lama ao Caos, que, ao se encontrar com o então responsável pelo marketing da Sony, este havia levado como referência uma capa da banda Asa de Águia. Para ele, o grupo de Salvador, com muita percussão e também nordestino, só poderia ser coisa parecida … Era esse o cenário da época.
MOVIMENTO X MOVIMENTOS
Os movimentos MangueBit e Manguebeat acabaram. Não sem revolucionar a cidade, a autoestima cultural, as diversas linguagens artísticas de toda uma geração. Mas, 30 anos depois, ainda não podemos dizer que superamos a falta, o vazio de uma nova movimentação coletiva revolucionária que ocupe esse lugar.
Será?
Em Salvador uma movimentação tem, há pelo menos 13 anos, tomado conta da cidade, mudado a forma de ocupar as ruas, fazer música, cantar. É a presença de bandas como a seminal Braunation, o ÀTTØØXXÁ, o Afrocidade, o BaianaSystem, o Vandal e toda uma geração de pagotrap [3] que desenvolve a fusão entre o pagodão, com suas percussões físicas e eletrônicas, com o trap, o rap, o afrobeat, o grime (no caso do Vandal) e guitarras pesadas de rock.
Catarse, comoção e gigantescas rodas punk fazem parte da cultura dessas bandas, que botam nas ruas de Salvador um som que mistura gêneros antes vistos como muito distantes, numa contaminação de suor, gritaria, coros e muita vontade de viver.
Boa parte disso vem com letras políticas, críticas e antirracistas, entre outras subversões. É isso, principalmente, que difere essa movimentação da do brega funk, por exemplo.
“Viemos nos preparando lá atrás para este momento em que (…) o Afrocidade não seja apenas uma banda, mas um movimento” , disse o vocalista do Afrocidade, José Macedo, quando a banda tocou com Russo Passapusso, vocalista do BaianaSystem, e Mano Brown, do Racionais MC’s, em 2020. Nessa mesma ocasião também tocou, com a big band, Vandal, autointitulado DEH VERDADEH, o primeiro grimer do Brasil, que no show ao vivo ganha contornos de pagodão, rock, gêneros que se infestam e se contaminam. Da Bahia, o produto que eles querem / Um preto gourmetizado que se esconde atrás da cor da pele, diz Vandal na música Só Eu Sei.
Em outra entrevista, ao portal Terra, Eric Mazzone, diretor musical do Afrocidade, afirma: “Somos influenciados por tudo que escutamos. A diversidade musical diaspórica é algo que nos encanta muito. Aqui podemos eleger a música de terreiro e o samba de roda como grandes influenciadores. O movimento manguebeat nos tocou bastante, a sonoridade dos tambores dialogando com a tecnologia e com a sua cultura”.
Em 2019, o BaianaSystem ganhou o Grammy Latino de melhor álbum de rock ou música alternativa em língua portuguesa, com O Futuro Não Demora, terceiro álbum da banda, criada em 2009. Em 2017, ganhou como melhor grupo de pop/rock/reggae/hip-hop/funk no Prêmio da Música Brasileira, quando também levou o prêmio Revelação. Ao todo, ganhou seis premiações no Prêmio Multishow de Música Brasileira, incluindo show do ano (2023 e 2019), grupo (2020 e 2019), canção (2019) e álbum do ano (2019).
“Não é só música, é comportamento”, disse Russo Passapusso em entrevista ao portal Tenho Mais Discos Que Amigos, em 2016.
Se não temos um movimento, um manifesto (talvez essa coisa que ficou definitivamente no século 20?), uma proposta de unidade cultural-política, temos diversas manifestações e movimentações que criam um fluxo, uma energia, que chacoalham a cena musical de uma cidade e toda uma região. E que influenciam as pessoas, com partículas de infinitude, faíscas de vida e autoestima.
Algo que me deixa reflexiva, porém, é como essas movimentações são bastante masculinas, cisgêneras e heterossexuais, em forma e conteúdo. E, em consequência, como há uma formação de cenários machistas, seja em letras ou em como se dão e reverberam os protagonismos.
Na música, onde o corpo se faz tão imperativamente presente na figura de quem canta (não à toa o termo frontman…), alguns papéis de gênero parecem estar mais estagnados do que em outras linguagens, como nas artes visuais ou na literatura, por exemplo.
E não há musicalidade sem corpo físico e todas as consequências disso. Ou pelo menos não havia, antes das Inteligências Artificiais.
NOTAS
[1] Palavra de origem kimbundu e umbundu que significa companheiro, parceiro, muito utilizada historicamente em Pernambuco nas diversas manifestações de resistências negras e quilombolas desde o séc. 19. A associação de Chico Science com um malungo vem muito do seu envolvimento com o Daruê Malungo, centro cultural liderado pelo mestre capoeirista Meia-Noite, no bairro de Chão de Estrelas, divisa entre Recife e Olinda.
[2] Agradeço a Matheus Vinhal pela troca.
[3] Segundo Mahal Pita, músico e multiartista que fez parte de algumas das bandas mencionadas, o pagotrap é um termo genérico usado para falar do pagode eletrônico e que chega depois das experimentações musicais em si, uma vez que o trap só vem a ser ouvido por aqui num momento brevemente posterior. Agradeço pelas contribuições de Mahal e também do músico e artista audiovisual Rei Lacoste, que enriqueceram a construção deste texto.